A Feira do Livro,
Mais dias, mais pessoas, mais temas e mais vozes
Com 62 debates, 164 convidados e mais de 55 mil visitantes, a terceira edição d’A Feira do Livro se firma como um dos principais festivais literários do país
08jul2024 • Atualizado em: 10jul2024Mais de 77 horas de debate com 164 autoras e autores nacionais e internacionais, que atraíram cerca de 55 mil pessoas durante nove dias. Maior em público e mais extensa, a terceira edição d’A Feira do Livro também se superou em diversidade, tratando de temas como literatura e psicanálise, música e poesia, língua portuguesa e matemática, diplomacia e humor, firmando o festival literário paulistano entre os maiores eventos culturais do país.
Cumprindo mais um ano seu propósito de ocupar os mais de 15 mil metros quadrados de espaço público – área usada como estacionamento da praça Charles Miller, no Pacaembu –, com livros, autores e leitores, a feira recebeu mais de 150 expositores. Foram editoras, livrarias e instituições ligadas ao livro e à leitura que reforçaram a bibliodiversidade e promoveram atividades durante o festival.
Com o objetivo de recompor o acervo de bibliotecas escolares e comunitárias do Rio Grande do Sul atingidas pelas enchentes, uma campanha coletou doações de livros durante o festival literário. Mais de 40 mil exemplares foram doados, atingindo a meta estabelecida para os nove dias de evento — um livro por criança atingida pelas chuvas.
Queridinhos
Entre os destaques das 62 mesas que aconteceram em dois espaços, o Palco da Praça e o Auditório Armando Penteado, a argentina Camila Sosa Villada fez o público rir e se emocionar ao falar sobre sua “Transescrita”. “Meus pais me ensinaram a ler e escrever quando tinha três ou quatro anos. Eu sabia que tinha esse superpoder comigo, o poder da palavra”, disse ela, que lançou três livros n’A Feira e provocou uma das maiores filas de leitores para autógrafos.
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Com plateia lotada, a mesa “Narrativas antirracistas” trouxe ao Brasil a escritora Jamaica Kincaid, que participou de conversa com o historiador Henry Louis Gates Jr. Os dois discutiram o papel da escrita no antirracismo e falaram sobre sua experiência no país. “O Brasil tem sido um país que nega sua negritude”, disse Gates.
A praça também foi palco de manifestações políticas, como na noite em homenagem ao Rio Grande do Sul, com a mesa “Uma noite em Porto Alegre”, que reuniu os escritores gaúchos Mar Becker, Jeferson Tenório, Clara Averbuck, Veronica Stigger, Morgana Kretzmann e Paulo Scott. Depois dos protestos sobre a tragédia das chuvas no estado, os escritores leram uma carta aberta pedindo a renúncia do prefeito da cidade, Sebastião Melo.
Os “60 anos do golpe” de 1964 foram lembrados no encontro entre o historiador Luiz Felipe de Alencastro e o escritor Marcelo Rubens Paiva. Os dois lembraram perseguições, censura e assassinatos cometidos pelos agentes da repressão, para não esquecermos de repetir “Ditadura nunca mais”. Já o historiador e político português Rui Tavares, que participou de duas mesas, discutiu os desafios da democracia e o papel da arte na sociedade “Agora, agora e mais agora”.
A poesia ganhou o seu merecido espaço no festival literário com a participação de nomes de destaque da cena contemporânea, como a mesa “Asma, boca e cova profunda” que reuniu as poetas Adelaide Ivánova e Mar Becker no auditório Armando Nogueira. O Palco da Praça ainda recebeu a poeta Bruna Beber e o ator Gregório Duvivier, que fizeram o público gargalhar ao compartilhar a origem de sua produção poética e seu humor na mesa “Poesia na praça”.
Temas da vida íntima retratados na literatura também comoveram o público, como na mesa “Infinitos lutos”, que reuniu o psicanalista Christian Dunker e a escritora e psiquiatra Natalia Timerman. Em debate concorrido, a psicanalista e escritora Vera Iaconelli e a psicóloga e ativista indígena Geni Núñez falaram sobre trabalho de cuidado, maternidade, gênero e monogamia na mesa “Formas de afeto”.
Recordar é viver
No ano que marca seis décadas do golpe civil-militar no Brasil, além da mesa “60 anos do golpe”, outros debates ressaltaram a importância de se preservar a memória do país. Na conversa “Ditadura nunca mais”, Camilo Vannuchi e Pádua Fernandes, autores de livros sobre a resistência ao regime militar, defenderam que a luta pela memória da ditadura não interessa só às famílias das vítimas. Conhecer os crimes do Estado é direito da sociedade.
Na mesa “Sempre Paris”, a jornalista e tradutora Rosa Freire d’Aguiar relembrou como só se reconheceu cidadã aos 25 anos, quando se mudou do Brasil, que vivia o auge da ditadura militar, para a França, na década de 70, e participou de sua primeira manifestação.
A presença do ministro do Meio Ambiente e da Fazenda no governo Itamar Franco, Rubens Ricupero, na mesa “Meninos, eu vi”, lançou um olhar de confiança para o futuro do Brasil que, segundo ele, “recuperou a normalidade”. A memória individual também esteve presente na mesa “Páginas de um país”. Maria Adelaide Amaral e Ivan Angelo conversaram sobre suas carreiras, seus livros e sobre uma geração que redefiniu o jornalismo e brilhou na literatura brasileira.
Reavaliar a própria vida a partir da morte ou quase-morte também é uma maneira de recordar — e produzir literatura. Na mesa “Em busca do pai”, com a poeta Julia de Souza e o ensaísta José Henrique Bortoluci, os autores discutiram sobre como escrever sobre figuras paternas que enfrentaram doenças antes de morrer. Na mesa “Virada de jogo”, o ex-jogador Walter Casagrande e o educador Rodrigo Hübner Mendes falaram de suas autobiografias, que contam como driblaram dificuldades e deram novos sentidos às suas vidas.
Já a escritora argentina Camila Fabbri ensinou outra maneira de lembrar. Na conversa “O dia em que apagaram a luz”, nome de seu livro publicado pela Nós, ela relembrou o incidente em que 194 pessoas morreram em um incêndio em uma boate em Buenos Aires, em 2004. Ela havia ido à apresentação do dia anterior, mas muitos de seus amigos estavam presentes no dia da tragédia e acabaram se tornando personagens da obra.
Escravidão e racismo
Além da mesa “Narrativas antirrascistas”, que reuniu Jamaica Kincaid e Henry Louis Gates Jr., a discussão sobre os séculos de escravidão e seus ecos foi tema de diversas discussões. O aclamado ensaísta, poeta e ficcionista norte-americano Jabari Asim contou como sua ficção preenche lacunas da história apagada de pessoas escravizadas na mesa “Reescrita da escravidão”. O legado do ativista político e escritor estadunidense James Baldwin foi lembrado na mesa “James Baldwin, 100”, que reuniu o escritor Evandro Cruz Silva e o pesquisador Ronaldo Vitor da Silva.
A vida, ideias e legados de André Rebouças, engenheiro e uma das principais figuras intelectuais no movimento abolicionista no Brasil, foram debatidos na mesa “Avenida Rebouças”, entre a historiadora Hebe Mattos e a professora Ana Flávia Magalhães. Já as profundezas do racismo brasileiro foram abordadas pelo ator e dramaturgo Clayton Nascimento, autor do premiado monólogo Macacos, na mesa “Perspectiva amefricana”, com a colunista da Quatro Cinco Um Juliana Borges.
Mazelas do mundo e do Brasil
O genocídio palestino, os significados da guerra entre Israel e o Hamas e as perspectivas do conflito mais urgente da atualidade foram debatidos na mesa “De São Paulo a Gaza”, com o ensaísta e tradutor húngaro Peter Pál Pelbart e o escritor e filósofo Vladimir Safatle, mediados por João Paulo Charleaux.
Nesse mundo de incertezas quanto ao futuro, em que a extrema direita tem conquistado espaço em várias partes do mundo, o historiador português Rui Tavares sugeriu, em conversa com o cientista político Sergio Fausto na mesa “Esquerda e direita sem extremos”, que forças democráticas apresentem propostas que mobilizem o desejo no lugar do medo.
Já os avanços e perseguições de ontem e hoje à comunidade LGBTQIA+ foram tema da mesa “Livros e livres”, com o historiador James Green e Renan Quinalha, colunista da Quatro Cinco Um, e mediação de Helena Vieira. A violência também foi tema em “Violências familiares”, com a brasileira Tatiana Salem Levy e a argentina Claudia Piñeiro, que discutiu a violência contra a mulher, retratada em suas literaturas, que tornam essas narrativas mais próximas do alcance político. “A violência faz parte de nossas narrativas porque faz parte de nossas vidas”, disse Salem Levy.
Outras questões sociais que estão no centro do debate no nosso país foram retratadas. Referências na filantropia, Neca Setubal e Inês Lafer falaram sobre a responsabilidade individual e alertaram sobre o ponto de não retorno na questão social na mesa “Transformação social”. As relações entre política, religião e crime no país foram discutidas pelo jornalista Bruno Paes Manso e o romancista Dan, que retratam a ascensão de milicianos em seus livros, na mesa “Faroeste caboclo”.
A defesa da população indígena e do meio ambiente deram a tônica das mesas “Diários yanomani” e “Natureza em chamas”. Vindos de Roraima, pesquisadores yanomami deram testemunho da destruição causada pelo garimpo e pediram: “Brancos, escutem nossas palavras”. E o documentarista João Moreira Salles e o ambientalista Pablo Casella discutiram as implicações culturais, políticas e ambientais da devastação de biomas brasileiros.
Literatura em abundância
Como um bom festival literário, não faltaram conversas sobre a literatura produzida no Brasil e mundo afora, especialmente por autores argentinos, portugueses, franceses e estadunidenses, que marcaram presença na praça Charles Miller.
A primeira mesa do festival, “Mundo do crime”, foi focada na afirmação da escritora francesa Hannelore Cayre de que até os sentimentos se tornam reféns do dinheiro e que o Estado trata mal os vulneráveis. Em conversa com o escritor argentino Michel Nieva sobre ficção científica e especulativa, na mesa “Entre bois e mosquitos”, o escritor brasileiro Joca Reiners Terron disse que “os políticos se apropriaram da ficção. O papel do escritor é produzir realidade”.
Na mesa “Apenas escritoras”, a escritora argentina Betina González e a brasileira Andréa del Fuego falaram sobre como o mercado editorial ainda invisibiliza a escrita feminina. No mesmo final de semana, Stênio Gardel falou das inspirações do seu romance vencedor do National Book Award e dos muitos significados da literatura na mesa “A palavra que resta”.
Os escritores estreantes Iara Biderman e Odorico Leal comentaram sobre como a realidade do país atravessa seus contos na mesa “Tantra e canibais”. Em “A parte maldita brasileira”, a crítica literária Eliane Robert Moraes e o romancista Reinaldo Moraes falaram sobre as fronteiras entre a pornografia e o erotismo.
Direto d’A Feira, a escritora carioca Eliana Alves Cruz gravou dois episódios para o programa literário Trilha de Letras, que apresenta na TV Brasil. Em “Trilha de letras: Caetano W. Galindo”, a autora tratou com o tradutor, escritor e ensaísta paranaense sobre a literatura como fuga das estruturas prontas sobre a complexidade da vida, inteligência artificial e arte. Já em “Trilha de letras: Nara Vidal”, a escritora mineira disse que “A ideia da pureza é empobrecedora”, referindo-se à ideia de eugenia, abordada no seu último romance; e como a ficção pode preencher as lacunas da História.
Na última mesa d’A Feira do Livro 2024, “Tempo mãe”, a escritora Silvana Tavano analisou o hibridismo entre literatura e pesquisa que ressuscita passados e inventa novos futuros. “Escrevemos para inventar vidas: as nossas, as dos outros, as daqueles que não existem”, afirmou.
Vozes marginais e musicais
A literatura que vem da periferia e se mescla com outras expressões culturais também marcou presença n’A Feira. Na mesa “Vidas pelas margens” a autora paulistana Lilia Guerra conversou com a apresentadora Roberta Martinelli sobre os livros e personagens inspirados em seu cotidiano como moradora da periferia. O poeta Sérgio Vaz, fundador do sarau literário Cooperifa, agitou o Palco da Praça com a mesa “Flores da batalha”, título de seu último lançamento. O rapper Rashid e a slammer Mel Duarte discutiram o papel das periferias na renovação da poesia brasileira na conversa “Slam, rap e periferia”.
Dois grandes nomes da música brasileira também lançaram suas memórias n’A Feira. Martinho da Vila falou sobre o apagamento da cultura negra no samba em conversa sobre sua autobiografia Martinho da vida (Record) na mesa “Devagarinho e sempre”. Nando Reis conversou sobre sua composição mais autobiográfica, Pré-sal, que inspirou livro com desenhos, colagens e anotações, na mesa “Infância recomposta”.
A versão sonora da literatura também esteve n’A Feira. A atriz Alice Carvalho, que interpretou Coração apertado, de Marie NDiaye, em audiolivro, conversou sobre a experiência com a escritora e roteirista Beatriz Bracher na mesa “Palavra contada”.
E na “Homenagem a Leiko Gotoda”, Rita Kohl e Luara França celebraram o legado da pioneira da transposição direta da literatura japonesa para o português, e discutiram os desafios da tradução. As palavras também foram tema da mesa “Palavras, palavras, palavras” , em que os linguistas Caetano W. Galindo e Marcos Bagno falaram sobre os caminhos do português e defenderam que a linguagem neutra não descaracteriza o idioma e que disputas em torno da língua refletem exclusão e racismo.
Além das humanas
Quem esperava que A Feira do Livro fosse ficar restrita às humanas, se enganou. Até porque, separar ciências humanas de exatas é um erro, como defendeu Marcelo Viana na mesa “Matemática para quem é de humanas”. N’A Feira, o matemático e diretor do Instituto de Matemática Pura e Aplicada também falou da importância da divulgação científica e sobre a disparidade de gênero na área.
Um dos campos científicos mais agitados dos últimos anos no Brasil, a arqueologia foi tema da conversa “Admirável novo mundo”. Em conversa com o arqueólogo Eduardo Neves, Adriana Abujamra e Bernardo Esteves falaram dos novos ventos que sopram na arqueologia em meio à controvérsia, estabelecida há décadas, sobre os registros dos primeiros humanos no continente americano.
A Feira teve direito ainda a debates sobre artes visuais e alimentação. Na mesa “Minha língua”, a artista visual Lenora de Barros refletiu sobre arte, linguagem e sua trajetória desde os anos 70. “À mesa com Rita Lobo” trouxe a cozinheira, apresentadora de TV e escritora falando sobre comida de verdade, levar as pessoas à cozinha e sobre o Guia Alimentar para a População Brasileira.
Professores no centro
Durante a semana, uma programação voltada para professores ocupou o Palco da Praça em duas trilhas: Praça de Aula e Seminário de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas.
Com conversas focadas em questões fundamentais nos dias de hoje nas escolas, A Feira do Livro trouxe as mesas “Racismo e antirracismo nas escolas”, “Saberes ancestrais na sala de aula”, “Catástrofe climática e racismo ambiental” e “Ler o Brasil”. Além disso, o festival trouxe uma “Aula pública de Libras”.
Já o Seminário de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas levou ao Palco da Praça cinco debates sobre o fomento à leitura: “Ler na tempestade”, sobre como tratar as crises climáticas com jovens; “A solidão do livro, a solidão da tela”, explorando como lidar com a nova geração e os efeitos do uso excessivo da tecnologia; “Literatura negra: estar na estante é o bastante?”, que abordou como fazer a literatura negra circular; “Leitura obrigatória”, sobre as escritoras mulheres que serão abordadas pelo vestibular da Fuvest; e “Formar leitores, formar professores”, que discutiu como professores podem contribuir (ainda mais) no fomento à leitura.Os jovens também estiveram no centro, dessa vez como público, em duas mesas sobre literatura young adult: “Sobre bruxas, cosmos e crushes” e “Novos repertórios”. A Feira contou ainda com uma mesa sobre literatura infantojuvenil, “ABCXYZ”, na qual Sérgio Rodrigues e Daniel Kondo apresentaram o poema visual que marca a estreia de Rodrigues na literatura infantil.
A Feira do Livro 2024
29 jun.—7 jul.
Praça Charles Miller, Pacaembu
A Feira do Livro é uma realização da Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos voltada para a difusão do livro no Brasil, e da Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais. O patrocínio é do Grupo CCR, do Itaú Unibanco e Rede, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, da TV Brasil e da Rádio Nacional de São Paulo.
Peraí. Esquecemos de perguntar o seu nome.
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