A Feira do Livro, Literatura Negra,

É preciso ler histórias sobre infâncias negras para as crianças, dizem escritores

Os autores de livros infantojuvenis Renato Gama e Waldete Tristão debateram a importância de circular narrativas negras nas escolas e em casa

04jul2024 • Atualizado em: 19set2024
(Fotografias de Matias Maxx)

Recuperar o atraso histórico da circulação de narrativas negras entre as crianças é a tentativa de educadores e projetos educacionais que visam transformar efetivamente a sociedade brasileira. Esse também foi o tema central da mesa “Literatura negra: estar na estante é o bastante?”, com os escritores Renato Gama e Waldete Tristão, no terceiro encontro da série de seminários Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas.

A conversa d’A Feira do Livro, mediada pela professora da Faculdade de Educação da USP Iracema Nascimento, resgatou as histórias por trás dos livros infantojuvenis Neguinha, sim! (Companhia das Letrinhas), de Gama, e O quintal das irmãs (Pequena Zahar), de Tristão, que narram experiências da infância de crianças negras para além de episódios de racismo.

O debate começou com uma reflexão da mediadora sobre um elemento comum às obras: os quintais. Espaço com origem na formação dos centros urbanos, o quintal é propício para o desenvolvimento infantil pois acolhe bem brincadeiras, contação de histórias, cuidados com a terra e outras atividades coletivas. 

“O quintal foi o lugar em que inventei a maioria das brincadeiras que eu e minha irmã brincávamos nas nossas tardes de infância”, conta Tristão, que é também pedagoga. “Não é à toa que na vida adulta me tornei professora e continuei inventando histórias.”

Criado na Vila Nhocuné, Renato Gama diz que uma casa sem quintal era incomum no bairro da zona leste de São Paulo. Comum era faltar água e a avó, que tinha um poço, se solidarizar. “O pessoal chegava em casa tarde do trabalho. Muitos não tinham dinheiro ou um poço próprio, ela dizia ‘fiquem acordados, porque não se nega água a ninguém’”, conta o músico, que, com violão e microfone, embalou a plateia com uma canção sobre isso:

Desde pequenininho minha casa não tem água encanada
mas o poço é muito fundo
Minha mãe trabalha fora, de dia não fica em casa
mas enche água para todo mundo
água para beber, água para banhar

Realidades retratadas

Vindos de bairros e regiões diferentes de São Paulo, Waldete Tristão e Renato Gama se entendem em outros pontos. As infâncias, crescer como uma criança negra nas periferias da capital. “Infâncias são coletivas, mesmo que tenham origens distintas”, diz a pedagoga.

O escritor Renato Gama

Gama compartilhou como Neguinha, sim! foi inspirado em uma história da mãe, que alisava o cabelo desde os seis anos de idade, e notou como a história ainda era relevante anos depois. “Ela alisava até que conheceu uma senhora parecida com ela que não alisava mais. Quando também parou, sua vida social foi transformada”, contou o músico. “Neguinha, sim! faz referência a esse momento de descoberta e de entendimento com o próprio cabelo.”

Filha de um casal interracial, Tristão também resgatou episódios da infância e a formação de sua identidade. “Meu pai, um homem branco, foi quem disse a mim e à minha irmã para que nunca aceitássemos apelidos na escola. Vocês sabem que os apelidos que nos chamariam não tinham nada a ver com carinhosos”, conta a escritora, que destacou as múltiplas realidades de crianças negras. 

“Eu tive uma infância negra diferenciada. Mesmo que com poucos recursos, meus pais tiravam fotos nossas de bebê. Tenho um álbum de fotos na infância”, conta Tristão. “Isso pode parecer banal, mas na época não era uma coisa muito comum a nós pessoas negras.”

Mediadores, aprendizes de feiticeiro

Os convidados ainda debateram sobre a importância do envolvimento ativo de cada um para fazer com que o conteúdo dos livros não fique restrito às estantes e chegue às rodas de leitura e ao debate entre educadores e influencie mais projetos e iniciativas. 

A leitura chegou a Gama por meio da mãe, que comprava livros a fim de distraí-lo da violência do entorno; e na adolescência, por meio de uma professora que o apresentou a O estrangeiro, de Albert Camus. “Ela me disse que eu seria o estrangeiro em todos os lugares que eu pisasse. Como eu poderia ser o estrangeiro se no meu bairro todo mundo era preto como eu? Só fez sentido quando comecei a ter acesso a lugares em que a maioria era branca”, relembra o escritor.

A escritora Waldete Tristão

Segundo Tristão, histórias podem e devem ser mediadas por todos, mesmo que seja um professor ou educador branco mediando literatura infantojuvenil negra. “O importante é fazer boas escolhas. Ainda há trabalhos pouco técnicos, com qualidade conceitual e narrativa escassa”, completa.

A escritora diz ter sido apresentada a uma literatura muito branca e lembra de querer ser como os personagens dessas histórias, ressaltando a importância de autores e personagens negros. “Não tínhamos referências de pessoas como nós nos livros infantis. Me tornei professora para poder contar essas histórias aos meus alunos e a outras crianças”, disse Tristão.

Ao final da mesa, a plateia ganhou uma palinha da música “Neguinha, sim!”.

Neguinha sim
O meu cabelo é pixaim
Meu black power fica assim

E quer saber
Eu sou muito muito feliz
Oh!Ele brilha com o Sol
O meu cabelo faz um caracol
E ele é belo em Paris, Dakar, São Luís e Maceió”

A Feira do Livro 2024

29 jun.—7 jul.
Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização da Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos voltada para a difusão do livro no Brasil, e da Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais. O patrocínio é do Grupo CCR, do Itaú Unibanco e Rede, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, da TV Brasil e da Rádio Nacional de São Paulo. O seminário Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas foi realizado com apoio oriundo da Emenda Parlamentar 2023.066.50456 – Demanda 060460.

Quem escreveu esse texto

Jaqueline Silva

É estudante de Jornalismo na ECA-USP e assistente editorial na Quatro Cinco Um.

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