A Feira do Livro, Literatura,

‘Fazer audiolivro me abriu outras possibilidades como atriz’, diz Alice Carvalho

Atriz de ‘Renascer’ conversou com a editora Beatriz Bracher sobre a experiência de interpretar ‘Coração apertado’, de Marie NDiaye

30jun2024 • Atualizado em: 10jul2024
Fotografias de Matias Maxx.

Um romance forte, incômodo, capaz de provocar reações viscerais, tirar o fôlego e até ser levado para a análise. Assim é Coração apertado, da franco-senegalesa Marie NDiaye, na descrição da editora Beatriz Bracher e da atriz Alice Carvalho, que falaram sobre o audiolivro na mesa “Palavra contada”, na tarde deste domingo (30), n’A Feira do Livro.

Carvalho, que está no ar com a novela Renascer, contou como o trabalho de emprestar sua voz e interpretação à protagonista Nadia abriu novas perspectivas para seu trabalho como atriz. “O corpo conectado com a leitura me abriu possibilidade de outras emoções que eu não sentia na leitura normal. Tinha trechos do livro que eu chorava, a voz embargava de verdade.”

Editado pela extinta Cosac Naify e esgotado no formato impresso há mais de dez anos, Coração apertado chega em formato audiolivro pela Supersônica, com tradução de Paulo Neves e direção de Daniela Thomas. Bracher, que também é roteirista, contou que, antes de trabalhar em projetos como esse, não tinha entendido a função da direção em um audiolivro.

“A voz é um corpo também”, disse. “Eu mesma não era uma grande leitora de audiolivros e estou descobrindo novos livros. Tìtulos que eu já tinha lido, a audição está me trazendo detalhes, novas formas de ler que são muito proveitosas.”

Uma dos destaques da série Cangaço novo, Alice Carvalho contou que teve de dublar meses depois, na pós-produção, cenas da série que tiveram captação difícil – uma experiência que considera diferente da do livro. “Quando veio o convite da Supersônica, vi esse outro desafio: colocar meu corpo num estado de atenção e interpretação, mas sem a câmera.”

Racismo velado

Coração apertado tem muitos traços autobiográficos da autora. Filha de pai senegalês negro e mãe francesa branca, NDiaye cresceu na França. Na história, Nadia é criada pela mãe, educada em escolas francesas e, a partir de determinada fase da vida, começa a perceber um grau de hostilidade sutil dos colegas.

Chamou a atenção de Carvalho o fato de que a narradora não nomeia sentimentos, e a cor da sua pele só é mencionada no final do romance. 

“Para mulheres racializadas, não brancas, como eu, ela ensina uma coisa que você já sabe. Tem uma maneira de escrever sobre uma pessoa dessa numa sociedade como a da França, um sentimento quase universal”, disse a atriz, que contou ter discutido a história em suas sessões de análise.

“É um livro que você não consegue ler os cinco capítulos direto, te deixa desconfortável, mas é impecável.”

Bracher contou sobre como a interpretação de Carvalho mudou sua percepção do romance. Antes de ouvir o audiolivro, a editora diz que via Nadia como uma pessoa com medo e uma fragilidade. “Ouvindo a leitura, tive outra chave de entrada, que foi a raiva. Alice lendo não tem nada de frágil. Não tem a ver com impotência, mas com reação.”

A atriz elogiou a força da personagem que, afirma, é “vítima e algoz ao mesmo tempo”. “O mundo determinou a forma dela agir, ela é uma pessoa espinhenta, o tempo inteiro pronta para atacar. Você consegue compreender tudo, você se apaixona e odeia.”

A atriz Alice Carvalho

Provocadas pela mediadora, a jornalista Luciana Araujo, as duas também comentaram sobre como o fato de Carvalho ser uma atriz negra trouxe uma carga maior de indignação ao romance. Ela disse acreditar que, se tivesse sido escolhida uma atriz branca, talvez não houvesse essa interpretação “com vísceras e raiva”.

“Já uma atriz preta retinta ou indígena teria outra camada de interpretação diferente da minha. Imagina a Elisa Lucinda lendo esse livro, Zezé Motta, Larissa Luz, Luedji Luna”, disse Carvalho.

Bracher discorda. Ao comentar sobre as comparações feitas entre a prosa de NDiaye e Kafka, a editora disse que o livro poderia ter sido escrito por um homem e uma pessoa branca.

“Talvez fosse um livro pior. O Kafka escreveu um livro muito próximo disso, A metamorfose. Quando a gente começa a escrever um romance, não é numa página em branco, mas numa página em que Homero escreveu, Stendhal, Machado de Assis. A Marie leu isso tudo, ela tem uma erudição incrível.”

Podcasts e audiolivros

Curadora da Supersônica, Maria Carvalhosa, que estava na plateia, foi convidada a responder uma pergunta do público sobre o mercado de audiolivros. Para ela, a explosão dos podcasts durante a pandemia trouxe um hábito de volta. Carvalhosa, que perdeu a visão depois de uma cirurgia mal sucedida na adolescência, contou ainda como a ideia da empresa surgiu por não encontrar bons audiolivros para ouvir no Brasil.

Também na plateia, a diretora Daniela Thomas disse ter tido a ideia de dirigir audiolivros depois de ter ouvido Carvalhosa falar, no 451 MHz, o podcast da Quatro Cinco Um, sobre a pouca qualidade das produções.

“Quando ouvi a Maria falando sobre essa falta de conexão com os livros, pensei: conheço muitos atores, vou fazer acontecer”, disse.

A Feira do Livro 2024

29 jun.—7 jul.
Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização da Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos voltada para a difusão do livro no Brasil, e da Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais. O patrocínio é do Grupo CCR, do Itaú Unibanco e Rede, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, da TV Brasil e da Rádio Nacional de São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Amauri Arrais

É jornalista e editor da Quatro Cinco Um.

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