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‘A literatura se faz em encontros éticos, este momento é histórico’, diz Paulo Scott em noite em homenagem a Porto Alegre

Escritores gaúchos reunidos n’A Feira do Livro falam de resistência e leem carta pública ao prefeito da capital do Rio Grande do Sul

02jul2024 • Atualizado em: 10jul2024
Fotografias de Matias Maxx.

Seis autores gaúchos se reuniram em uma noite fria e emocionante para homenagear Porto Alegre e a literatura gaúcha e se posicionar frente à tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul. Na segunda-feira, 1º de julho, o Palco da Praça d’A Feira do Livro recebeu os escritores Mar Becker, Jeferson Tenório, Clara Averbuck, Veronica Stigger, Morgana Kretzmann e Paulo Scott. 

Com mediação da jornalista e radialista Tatiana Vasconcellos, eles falaram de suas raízes e herança cultural e apresentaram uma carta pública de protesto e resistência à atuação do poder público municipal antes, durante e depois das chuvas que destruíram boa parte da capital e outros municípios do Rio Grande do Sul. 

Foi uma mesa em formato um pouco diferente, pelo número de participantes e pela atualidade do desastre climático e seus impactos sociais. Como lembrou Vasconcellos, a população pobre, preta e marginalizada foi e continua sendo a mais afetada. 

A conversa foi aberta com uma pergunta sobre pertencimento e como os laços afetivos se refletem nas obras dos escritores.

“[Meus livros] têm uma relação muito forte com Porto Alegre, onde nasci”, disse Stigger. “Nunca vi a cidade sofrendo tanto quanto agora. São decorrências das mudanças climáticas, mas não podemos esquecer a inoperância do poder público. Tanto o prefeito quanto o governador também são responsáveis.”

A escritora e crítica de arte Veronica Stigger

Becker, nascida em Passo Fundo, interior do estado, lembrou que estava em Minas Gerais no começo das chuvas. Queria voltar ao Rio Grande do Sul, mas não podia, por causa das estradas interditadas. E chorava. “Como disse a Morgana [Kretzmann], ‘estamos seguros, mas não estamos bem’”.

A escritora e poeta gaúcha Mar Becker

A poeta contou que Passo Fundo, com sua garoa e sua umidade, está muito presente em seus poemas. Os acontecimentos recentes a fizeram repensar a água. “Escrevia a chuva de uma forma romântica, agora está diferente.”

O poeta e ficcionista Paulo Scott

Ao receber o convite para participar da mesa, também pensada como uma homenagem à Feira do Livro de Porto Alegre, inspiradora d’A Feira do Livro, Paulo Scott pensou em homenagear a resistência em seu estado. “A literatura se faz em encontros éticos, este momento é histórico”, disse o escritor.

Esse foi o mote para a leitura de sua carta aberta, pedindo a responsabilização e renúncia dos atuais prefeito e vice-prefeito de Porto Alegre (leia a íntegra abaixo). Uma carta “Exu Mario Quintana”, como chamou. 

Resistência literária

Questionada sobre como os escritores podem colaborar com a reconstrução, Clara Averbuck responde: “Escrevendo, falando das pessoas que estão sofrendo e das que precisam renunciar porque venderam a cidade. Acredito na raiva como força motriz para criar obras”.

Uma das pioneiras da blogosfera brasileira, a escritora gaúcha Clara Averbuck

Becker se lembrou ainda de pessoas tentando recuperar fotos pessoais das águas. “Quando não há casa, talvez o amor seja a casa”, disse a poeta. 

Para o escritor Jeferson Tenório, patrono da Feira do Livro de Porto Alegre, a tentativa de recuperar fotos mostra o que realmente importa em nossas vidas. “Quando a casa está prestes a inundar, o que você leva? As banalidades. É isso que nos sustenta no final das contas, esses objetos que contam nossa história”, disse o escritor, que não vê a literatura como cura, mas como modificação.

O escritor Jeferson Tenório

Morgana Kretzmann contou não ter tido vontade de escrever, mas gravar vídeos falando dos muitos sentimentos perturbadores com a repercussão da tragédia. “Abria as redes sociais e via pessoas falando que ‘os gaúchos mereceram’.”

A escritora lembrou que o Rio Grande do Sul é o estado brasileiro com o maior número de terreiros; onde nasceu o poeta e ativista Oliveira da Silveira, idealizador do Dia da Consciência Negra; onde foi realizada a primeira edição do Fórum Social e berço do MST. “A resistência gaúcha existe”, afirmou Kretzmann.

A escritora e roteirista Morgana Kretzmann

Leia na íntegra a carta ao prefeito de Porto Alegre, lida por Paulo Scott n’A Feira do Livro 2024

Senhor Sebastião Melo, atual prefeito do município de Porto Alegre, capital do Rio Grande, cidade que, na década de 1990, foi considerada uma das melhores cidades para se viver no planeta, cidade que, ainda naquela década, formatou e colocou em prática um projeto de forte engajamento popular, o Orçamento Participativo, copiado e elogiado mundo afora, cidade que sedia uma das feiras do livro a céu aberto e de acesso gratuito e democrático mais antigas e importantes do Brasil, por meio desta carta pública – porque o senhor não teve competência para gerir a manutenção dos equipamentos que poderiam evitar os trágicos impactos do desastre climático que causou estragos imensos a essa cidade (e por isso deve ser responsabilizado civil e criminalmente), não demonstra ter condições de administrar as ações de reconstrução das áreas afetadas pela enchente de maneira célere e colocando os interesses da população trabalhadora, pressionada, precarizada e subalternizada em primeiro lugar –, peço que RENUNCIE (junto com o seu vice-prefeito) e deixe a população de Porto Alegre voltar a sonhar com uma cidade mais humana, menos truculenta, menos insensível, mais segura e que dela saiba cuidar.

A Feira do Livro 2024

29 jun.—7 jul.
Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização da Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos voltada para a difusão do livro no Brasil, e da Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais. O patrocínio é do Grupo CCR, do Itaú Unibanco e Rede, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, da TV Brasil e da Rádio Nacional de São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34).

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