A Feira do Livro, Literatura brasileira,

Escrever sobre familiares que se foram permite reavaliar a própria vida, indicam Bortoluci e Julia de Souza

Autores de livros sobre a figura paterna, eles conversaram sobre formas originais de contar histórias privadas que se conectam com a existência coletiva

07jul2024
(Matias Maxx)

Figuras paternas que se foram e inspiraram livros que se destacam pela forma original de contar suas histórias estiveram em evidência na mesa “Em busca do pai”, com a poeta Julia de Souza e o ensaísta José Henrique Bortoluci, neste sábado (6), n’A Feira do Livro. Na conversa com o editor da revista Serrote e colunista da Quatro Cinco Um Paulo Roberto Pires, os autores discutiram como escrever sobre familiares que enfrentaram doenças antes de morrer permite reavaliar a própria vida.

“Foi importante para lembrar que eu tive um pai, não só a perda de um pai”, disse Souza, que em 2023 publicou John (Âyiné), ensaio pessoal sobre a demência e a morte do pai. Segundo ela, a escrita do livro a ajudou a se aproximar dele, uma sensação que Bortoluci também experimentou ao escrever O que é meu (Fósforo, 2023), que entrelaça a história de seu pai, caminhoneiro por cinco décadas, à construção da ideia de progresso no Brasil do regime militar.

Na discussão, Pires indagou os convidados sobre como chegaram à decisão de escrever sobre a figura paterna. Tanto Souza quanto Bortoluci revelaram que o processo envolveu a escrita prévia de trechos que se assemelhavam a diários. 

As durações da casa já tinha poemas que dialogavam com a perda de memória do meu pai”, disse Souza sobre sua coletânea de poemas publicada em 2019. Com o tempo, vieram anotações feitas por ela para ter “registros dos momentos finais da vida dele”, que aos poucos assumiram a forma de diário. “Mas demorou para [isso] virar livro”, contou.

Já Bortoluci avalia que seu livro nasceu do encontro de dois caminhos: o interesse pelo gênero ensaístico e o desejo de ouvir mais as histórias do pai, Didi, que na época tinha começado a lutar contra um câncer — ele morreu no fim de 2023, já depois da publicação do livro. “Sempre me interessei pelo muito pequeno e sua relação estrutural com coisas mais amplas”, destacou o escritor, que em O que é meu traça paralelos e metáforas entre a doença de Didi e o Brasil, sua visão de mundo íntima e nossa experiência como nação.

(Matias Maxx)

A grande questão envolvendo a escrita da história de um homem comum que ecoa na história coletiva, disse Bortoluci, é descobrir como incluir esse tipo de personagem em nossa grande narrativa de país. “Os que aparecem são só pobres heróis”, apontou o escritor, citando como exemplo os metalúrgicos do ABC Paulista que se ergueram contra a ditadura no fim dos anos 70.

No caso de seu pai, contou o escritor, ele precisou perceber como a política aparecia nas entrelinhas das declarações de Didi. “Meu livro não existiria sem a coragem do meu pai de deixar esse patrimônio que são suas histórias”, afirmou.

Passagens

Da vida para as páginas, as histórias paternas de Bortoluci e Souza chamam a atenção também porque representam uma busca por formas originais, ressaltou Pires. Para Souza, a passagem da poesia para o ensaio fragmentário de John foi uma consequência da tentativa de escrever algo que pudesse agradar ao pai.

“Ele não gostava de poesia, achava que era ‘coisa que não comunica’“, contou. O formato mais ensaístico, portanto, “teve a ver com escrever para ele, não só sobre ele”, disse. “Meu pai estava em uma situação de não poder mais transmitir o que ele viveu, então o ensaio pessoal foi uma forma de lidar com a transmissão do que eu queria escrever”.

Nesse ponto, Bortoluci interveio. “Não se enganem, a Julia carrega a vibração da poesia na prosa”, disse.

O escritor refletiu sobre a ligação entre escrita e luto, lembrando de autores como os franceses Marcel Proust e Annie Ernaux e o norueguês Karl Ove Knausgård, que escreveram a partir da perda de familiares. “Falar dos que se foram é uma forma de reconstruir nossa relação com a vida”, definiu Bortoluci, ressaltando que, ao contar histórias íntimas de pessoas próximas, devemos ter em mente que essas histórias não são só nossas.

A Feira do Livro 2024

29 jun.—7 jul.
Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização da Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos voltada para a difusão do livro no Brasil, e da Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais. O patrocínio é do Grupo CCR, do Itaú Unibanco e Rede, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, da TV Brasil e da Rádio Nacional de São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Vitor Pamplona

Jornalista e roteirista, traduziu As aventuras de uma garota negra em busca de Deus (Bissau Livros)

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