A Feira do Livro, Meio ambiente,
‘Precisamos de uma utopia ecológica que nos faça voltar a sentir afeto pelo planeta’, diz Morgana Kretzmann
A escritora gaúcha e a educadora Ana Carolina Carvalho falaram sobre negacionismo climático e como a literatura pode resgatar referências perdidas em tempos de catástrofes
02jul2024 • Atualizado em: 19set2024A necessidade de encontrar as palavras em meio às catástrofes climáticas foi o tema central da mesa “Ler na tempestade”, com a escritora gaúcha Morgana Kretzmann e a educadora Ana Carolina Carvalho, que deu início à série de seminários Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas na tarde de segunda (1º), n’A Feira do Livro.
Na conversa, mediada pela pesquisadora Dianne Melo, além de compartilhar sua visão sobre a literatura durante crises, Kretzmann enfatizou a urgência de enfrentarmos a crise do clima e a responsabilidade de eleger políticos com essa pauta.
“Vivemos em uma era de negacionismo climático. Políticos de direita e de esquerda negam as crises climáticas porque isso não dá voto, mas não podemos mais votar em candidatos que não tenham propostas voltadas para as questões climáticas no plano de governo”, afirmou Kretzmann, que lançou Água turva algumas semanas antes das enchentes do Rio Grande do Sul.
O romance descreve o protagonismo de três mulheres líderes de comunidades na fronteira entre o Brasil e a Argentina contra a construção criminosa de uma hidrelétrica em área preservada no extremo-sul do país. “O Rio Grande do Sul realmente virou uma água turva durante semanas, mas essa ‘água turva’ não era apenas ambiental, era política também”, disse a autora.
Pessoa, Candido e Clarice
Ao falar sobre a importância da literatura para navegar períodos de crise, a pedagoga Ana Carolina Carvalho citou um trecho de A maleta do meu pai, de Orhan Pamuk, que diz que a literatura é remédio. “Ele diz que precisa de uma dose [de literatura] todos os dias, que funciona como uma retirada do mundo. Isso me fez pensar: o que a literatura cura?”
Carvalho ainda citou o poeta Fernando Pessoa, dizendo que a literatura é necessária em tempos de crise porque só a vida não basta e é preciso conhecer outras formas de viver, outros caminhos e novas geografias criadas após crises.
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“Seria insano passar o tempo todo na dureza da vida, na vida dura. Ou passar o tempo todo procurando cumprir funções, sem espaço para imaginação e sonho. Não conseguimos sem o sonho, a ficção, o romance, o conto, a crônica”, disse a educadora, lembrando ainda Antonio Candido, que dizia que a literatura é um direito humano.
O professor e crítico literário também foi citado por Dianne Melo, que resgatou o que ele dizia sobre a literatura confirmar e negar, propor e denunciar, apoiar e combater enquanto fornece a possibilidade de viver dialeticamente os problemas. “Ela cura essa existência limitada e a falta de empatia, sobretudo nesses tempos em que perdemos nossas referências, porque o trauma invade”, disse Melo, que ainda mencionou Clarice Lispector:
“‘Fatos são pedras duras e não há como fugir’. Mas narrar pode ajudar. Sempre me questiono como uma criança pode narrar uma guerra ou uma cidade embaixo d’água. Onde elas encontram essas palavras?”, perguntou a pesquisadora.
Utopias ecológicas
Tratar de questões sociais brasileiras por meio da ficção é recorrente desde antes dos escritores realistas, que buscavam representar o cotidiano sob um viés objetivo, mas Kretzmann acredita que é preciso mais que objetividade para construir narrativas. “Hoje precisamos de uma utopia ecossocial, ou utopia ecológica, que nos faça voltar a sentir afeto pelo planeta”, disse a escritora. “Podemos desenvolver uma consciência planetária que nos dê esperança de que o mundo pode ser saudável novamente.”
Kretzmann ainda compartilhou que esteve recentemente com Micheliny Verunschk. No encontro, a escritora e historiadora pernambucana disse rejeitar a classificação de seus romances como literatura fantástica. “Eu também o rejeito, porque o que os críticos chamam de fantástico é a realidade de muitos de nós, de nações inteiras”, afirmou Kretzmann.
Contos de tempestades
A conversa entre a escritora gaúcha e a educadora Ana Carolina Carvalho teve a participação especial da professora Talula Trindade, que contou sua experiência como educadora infantil durante a retomada das escolas no Rio Grande do Sul.
Em vídeo transmitido à plateia, Trindade disse que as crianças não vão à escola em dias de chuva, por conta do trauma da tragédia. O que mais ouviu é que, enquanto estavam sem aula, a maior saudade dos pequenos era a contação de histórias que retratavam outros universos para além dos dias difíceis. “Histórias devem inspirar crianças a entender que o cotidiano e o mundo são cheios de tempestades”, completou Carvalho.
Trindade também contou que há um grande movimento no estado para restaurar as bibliotecas públicas. “No fim do dia, é a arte que nos devolve o brilho aos olhos e nos traz de volta à vida”, disse a professora. “E se não fosse a escola e a biblioteca pública, muitas crianças não teriam acesso à literatura e a esses outros mundos.”
A Feira do Livro 2024
29 jun.—7 jul.
Praça Charles Miller, Pacaembu
A Feira do Livro é uma realização da Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos voltada para a difusão do livro no Brasil, e da Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais. O patrocínio é do Grupo CCR, do Itaú Unibanco e Rede, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, da TV Brasil e da Rádio Nacional de São Paulo. O seminário Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas foi realizado com apoio oriundo da Emenda Parlamentar 2023.066.50456 – Demanda 060460.
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