A Feira do Livro, Literatura brasileira,
‘Queria escrever as histórias do pessoal lá de casa’, conta a escritora Lilia Guerra
A autora paulistana conversou com a apresentadora Roberta Martinelli sobre os livros e personagens inspirados em seu cotidiano como moradora da periferia
06jul2024 • Atualizado em: 10jul2024Romancista, cronista e contista, a paulistana Lilia Guerra é a cabeça por trás de um arsenal de livros e personagens marcados pela rotina na periferia da capital. Os universos ficcionais inspirados na vida real foram um dos assuntos discutidos na mesa “Vidas pelas margens”, conduzida no final da manhã de sábado (6) pela apresentadora Roberta Martinelli e transmitida ao vivo no Clube do Livro Eldorado, da Rádio Eldorado FM.
Seu primeiro romance, O céu para os bastardos, publicado no final de 2023 pela Todavia, retoma personagens dos contos de Rua do Larguinho (2021), ambientados em um bairro de periferia chamado Fim do Mundo, com protagonismo para as histórias das mulheres. Abandono masculino, feminicídio, fragmentação, memória e a desconstrução de uma série de silêncios são parte de sua ficção, mas também são reinvenções de acontecimentos do cotidiano. “Queria escrever as histórias do pessoal lá de casa, lá da rua, quase como uma biógrafa”, disse Lilia Guerra.
Ela contou que muitas de suas personagens herdaram características de mulheres que realmente conheceu. “Não vejo problema algum em colocá-las ou emprestar trejeitos delas às minhas criações. Considero uma maneira de homenagear essas vivências.”
A própria Sá Narinha, personagem que é uma espécie de narradora de O céu para os bastardos, tem muita influência da mãe da autora. “O amor por ler e a tentativa de registrar memórias é algo em comum entre as duas. Outra coisa é essa realidade de ter visto minha mãe saindo de casa para ir trabalhar às cinco horas da manhã, em um lugar muito afastado de onde morávamos”, contou Guerra.
Incentivo e influências femininas
Antes de escrever, ela se dividia entre dois empregos como auxiliar de enfermagem do SUS. A Martinelli, revelou que a escassez de tempo entre a dupla jornada a fez adiar o projeto de publicar um livro. Com isso, a mãe começou a pressioná-la de maneira “sutil”, dizendo que talvez fosse morrer antes de ver o livro pronto. “Depois disso, comecei a escrever no ônibus de ida e volta para casa, não assistia mais televisão; tudo com medo de não conseguir publicar o livro a tempo”, brincou.
Hoje, ela diz estar mais sossegada e longe da “pilha” da mãe para escrever mais livros. Recentemente contemplada pelo prêmio Carolina Maria de Jesus por Cavaco de ofício, suas obras anteriores devem ser relançadas a partir do ano que vem pela Todavia, começando por Perifobia, de 2018, originalmente publicado pela Patuá. “Sinto que quando eu trabalhava em dois empregos conseguia escrever bem mais. Talvez eu vá precisar arrumar um segundo emprego em enfermagem”, brincou a autora.
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Com pouca presença masculina em casa e na família, Guerra diz ter crescido em meio a uma aldeia de mulheres. Foi criada pela avó, por conta do trabalho de empregada doméstica da mãe, que às vezes ficava uma quinzena longe de casa. “Foi nessa época que minha mãe me levou à primeira biblioteca. Ela me disse que ali era um espaço de muitas possibilidades.”
Enquanto se alfabetizava, sentiu que a avó se alfabetizava um pouco também. “No começo, ela achava que a gente ia à biblioteca para fugir dos afazeres de casa. Mas amava quando trazíamos livros, porque tinha interesse de saber como se pronunciava aquele monte de palavras. Ela não sabia ler nem escrever”, contou.
Tendo se aprofundado no mundo da leitura na infância e adolescência, a escritora conta ter percorrido diversos assuntos, até aqueles que ainda não eram apropriados para a idade. “Aos nove, me interessei pela capa de um livro do catálogo do Círculo do Livro. Era Eu, Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída… Minha mãe falou que aquilo ainda não era para mim e me aconselhou a ler Monteiro Lobato. Hoje falo para ela ‘nossa, mãe, que cilada!’”, brincou.
Nasce uma escritora
Guerra contou que, após a publicação do primeiro livro, descobriu que também precisava estar nos lugares de escrita. Com oficinas, foi apresentada a um mundo de livros que todos consideravam clássicos, mas que ela não conhecia por não ter se formado academicamente como a maioria das pessoas ali. “Foi nesse momento que decidi narrar as histórias desses lugares que eram considerados ‘fins do mundo’.”
Segundo ela, esse “fim do mundo” é a realidade de muitas pessoas, como ela própria, moradora do bairro Cidade Tiradentes, na zona leste da capital. “A sensação é de que todos ali queriam sair, ir embora. O entorno era a realidade da periferia: pegar o ônibus, o metrô, o trem, e não estar nem perto de chegar”, comentou.
A autora afirmou não ser mais uma dessas pessoas, porque muitos avanços chegaram ao bairro desde que se mudou para lá, em 1986. “Antes eu ficava muito brava com um carro de som que passava nas ruas dizendo ‘não mude de Cidade Tiradentes, ajude a mudá-la’. Eu pensava que, à primeira oportunidade que eu tivesse, eu pegava meu gato e saia dali”, contou entre risadas.
No entanto, ela reflete que ainda é preciso um trabalho de popularização da leitura no entorno e nos bairros adjacentes. “Minha vizinhança ainda não tem o hábito de ler. Mas como falar para pessoas que pegam horas de trânsito de casa ao serviço e do serviço para casa, que ganham pouco e trabalham muito, que precisam arrumar tempo para ler?”, questionou.
A Feira do Livro 2024
29 jun.—7 jul.
Praça Charles Miller, Pacaembu
A Feira do Livro é uma realização da Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos voltada para a difusão do livro no Brasil, e da Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais. O patrocínio é do Grupo CCR, do Itaú Unibanco e Rede, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, da TV Brasil e da Rádio Nacional de São Paulo.
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