A Feira do Livro, Literatura brasileira,
Estreantes Iara Biderman e Odorico Leal falam sobre como a realidade infiltra a literatura
Lançando seus primeiros livros, escritores comentaram sobre como a realidade recente – e turbulenta – do país acabou atravessando seus contos
30jun2024 • Atualizado em: 10jul2024Dois estreantes na literatura – porém experientes em outros campos – juntaram-se neste domingo (30) na mesa “Tantras e canibais”, n’A Feira do Livro. A jornalista Iara Biderman e o crítico e tradutor Odorico Leal falaram sobre sua estreia na ficção com os livros de contos Tantra e a arte de cortar cebolas (Editora 34) e Nostalgias canibais (Âyiné), respectivamente.
Com obras escritas durante um período turbulento da história do país, e com certa inquietação perceptível nos textos, os autores foram questionados pela mediadora Maria Carvalhosa sobre como a realidade se infiltrou nos livros em um momento em que “fatos desesperadores” batiam à porta a todo momento, como o assassinato da vereadora Marielle Franco em 2018, que aparece no conto “Manifestação”, de Biderman.
“Esse conto em que aparece a Marielle foi escrito muito a quente, e até falo no conto que escrever a quente não é recomendável”, contou a autora. “Escrevi logo depois daquela primeira manifestação no Masp. E acho que tem muito isso, daquela situação enlouquecedora que a gente estava vivendo na época. Eu uso muito o DSM, o manual de diagnósticos, tentando enquadrar os sintomas do que a gente estava vivendo. Mas na realidade a doença é o país”, concluiu.
Leal, cujo conto que dá título a seu livro tem como protagonista um canibal imortal que atravessa a história do Brasil, de 1500 ao presente, também vê reflexos da realidade do país em seus textos. “O primeiro conto traz o leitor até o presente, de onde os outros partem, e todos dialogando com questões decisivas da nossa época”, afirma.
Ele vê essa conexão de forma muito direta nos dois contos que têm com personagens os “getulinhos”, um grupo político que o autor define como “ao mesmo tempo uma velha esquerda, meio Ariano Suassuna, que tem um elemento sebastianista, mas também é um pouco conservadora”. “Esses dois contos dialogam muito com essa situação política que se agravou nos últimos anos, com o tecido social que vai se desfazendo. Parte disso foi escrito ainda durante a pandemia, em que pessoas estavam morrendo e a gente via esses embates de ideologias”, contou.
Influências
Os autores também falaram sobre a relação da escrita de ficção com suas outras atividades profissionais. Leal brincou que cometeu uma indelicadeza profissional. “Esses editores são seus empregadores [como tradutor], e você não quer abalar uma boa relação com um empregador enviando um original. É a suprema deselegância, no meio editorial, mandar um original, mas eu mandei”, disse.
Mais Lidas
Já Biderman admitiu que seu estilo tem muito do jornalismo. “É muito influenciado pelo jornalismo, sim. São textos curtos, é quase um vício profissional. No jornalismo, a gente corta, corta, corta. Essa coisa mais seca e curta, de ter poucos adjetivos, também tem a ver com o jornalismo.” Mas ela vê vantagens na ficção que o jornalismo não permite. “É feio, mas eu gosto de falar da vida dos outros. E na ficção você pode fazer isso sem ser uma coisa socialmente reprovável. Eu gosto de ouvir o que as pessoas falam e criar uma história, pegar pedaços de conversas e inventar.”
A escritora acredita inclusive que o fato de muitos de seus contos terem finais em aberto, não conclusivos, tem a ver com isso. “Na ficção você não precisa provar, não tem outro lado, não precisa explicar. Essa coisa de eu não explicar talvez tenha a ver com isso.”
Inteligência artificial
Questionados pelo público, os escritores também comentaram sobre as possibilidades da inteligência artificial para a escrita criativa. “É a pergunta de um milhão de dólares”, respondeu Iara. “Eu não sei, mas não acho que substitui, dá pra perceber. Mas não sei se vai se sofisticar a ponto de quase ficar imperceptível.”
Leal concorda que a questão é a qualidade do texto. “No momento, a qualidade do texto da inteligência artificial ainda é baixa. Mas em termos de escrita criativa, eu não consigo ver isso acontecer. Só se acontecesse a singularidade e a inteligência artificial passasse a ter uma angústia existencial, um enorme medo de ser tirada da tomada. É engraçado que a nossa grande vantagem diante da inteligência artificial é o nosso medo de morrer, nossa mortalidade.”
A Feira do Livro 2024
29 jun.—7 jul.
Praça Charles Miller, Pacaembu
A Feira do Livro é uma realização da Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos voltada para a difusão do livro no Brasil, e da Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais. O patrocínio é do Grupo CCR, do Itaú Unibanco e Rede, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, da TV Brasil e da Rádio Nacional de São Paulo.
Peraí. Esquecemos de perguntar o seu nome.
Crie a sua conta gratuita na Quatro Cinco Um ou faça log-in para continuar a ler este e outros textos.
Ou então assine, ganhe acesso integral ao site e ao Clube de Benefícios 451 e contribua com o jornalismo de livros independente e sem fins lucrativos.
Porque você leu A Feira do Livro | Literatura brasileira
O poeta que fez um país
‘Fullgás’ e outros poemas musicados de Antonio Cicero, morto aos 79 anos, são símbolos afetivos de sucessivas gerações que pedem por mudanças
OUTUBRO, 2024