(Matias Maxx)

A Feira do Livro, Literatura,

‘A violência faz parte de nossas narrativas porque faz parte de nossas vidas’, diz Tatiana Salem Levy

Tatiana Salem Levy e Claudia Piñeiro falam da violência contra a mulher retratada na literatura e do alcance político dessas narrativas

01jul2024 • Atualizado em: 10jul2024
(Matias Maxx)

A representação literária da violência contra a mulher, seja dentro da família, seja a do Estado, foi o tema da mesa “Violências familiares” com as escritoras Tatiana Salem Levy e Claudia Piñeiro. “A violência faz parte de nossas narrativas porque faz parte de nossas vidas”, disse Levy, autora do recém-lançado Melhor não contar (Todavia), que trata dos assédios que sofreu do padrasto — e que sustenta que escrever é nomear essa violência. 

Além de falarem da importância e do alcance coletivo e político da literatura feita por mulheres, a luta pela legalização do aborto na Argentina e no Brasil também foi discutida na tarde de domingo (30), n’A Feira do Livro. A conversa, mediada por Paula Sacchetta, começou com uma pergunta que passa pela cabeça de muitos leitores e, principalmente, leitoras: “Como é começar um livro a partir da dor e do incômodo?”.

A argentina Claudia Piñeiro, que está lançando no Brasil Catedrais (Primavera Editorial, trad. Marcelo Barbão), disse que começa pensando nos personagens, independentemente da violência. “Quem é essa pessoa, qual é a família dela, quais são seus conflitos?” A partir daí, chega nos conflitos que são comuns a todos nós.

(Filipe Redondo)

Para Tatiana Salem Levy, a literatura da mulher tem relação com a escrita de um segredo, do não dito. Melhor não contar começa com uma cena incômoda: uma menina de dez anos molhada na piscina, sem a parte de cima do biquíni, é retratada em um desenho feito pelo padrasto. A cena causava o sentimento de que havia algo errado, que Levy não sabia nomear. “[Meu] livro é a nomeação desse início de violência”, contou a escritora a uma plateia lotada.

Catedrais, de Piñeiro, também traz a cena de uma menina molhada, numa igreja. A autora narra, por meio da memória dos sete personagens, o assassinato brutal de uma adolescente. São diversas vozes e muitas versões do que aconteceu. “Antes de começar a escrever, penso qual é o ponto de vista do narrador”, disse a argentina. “Não começo antes de encontrar.” No caso de Catedrais, Piñeiro não conseguiu encontrar uma voz narradora — por isso, há várias vozes contando sobre a morte da menina.

A escritora Tatiana Salem Levy (Filipe Redondo)

Já em Melhor não contar, o mosaico de narrativas é criado a partir de diferentes materiais, como diários e cartas da mãe da autora, documentos jurídicos e memórias. “O livro começou com os diários, partiu da ideia de escrever um texto pequeno sobre a escrita da mulher. A cena da piscina se impôs e veio a ficção”, disse Levy. “Expandi para um romance em que trago muitas linguagens, cabe tudo nessa sacola: cenas, cartas, documentos, fotos. A conexão entre essas coisas é o que entendo como romance.”

Vozes e lutas

Em Catedrais, Piñeiro trabalha com o suspense, como em um romance policial. “Tenho muitos livros que chamam de romances policiais. Mas policiais devem responder a pergunta: ‘quem matou e por quê’. Nenhum dos meus romances responde essa questão”, disse a escritora, lembrando que, em muitos círculos literários, o policial é considerado um gênero menor, mas não na Argentina. “Borges e Cortázar adoravam [o gênero]. Quase todo escritor argentino tem um romance que chama de policial.”

O debate sobre uma literatura considerada “menor” levou a conversa para a questão da autoficção e da escrita de mulheres. “Para mim nem é uma questão. Visto de fora, escrever é a mesma coisa para a mulher e para o homem. Mas não existe mulher que, antes de começar a escrever, não precise matar alguns fantasmas”, disse Levy.

Afinal, “existe ou não essa literatura feminina?”, perguntou Sacchetta. As duas escritoras não gostam do termo — Piñeiro vê preconceito na classificação, já que não especificamos “literatura masculina”. No entanto, ela destaca a relação entre a escrita de mulheres e todas as pessoas que estão à margem do poder. “Escrevemos a partir das fronteiras do poder, como um cachorro cavando buracos.”

A autora de Catedrais reconhece ainda que o cenário está mudando, com mais mulheres publicando, sendo lidas e convidadas para festivais literários, embora, segundo Levy, os homens ainda mostrem resistência a ler esses livros. “O homem já nasce nesse lugar de poder falar e saber que será ouvido. A mulher tem que tomar a palavra, se apropriar dela”, disse Levy.

A escritora Claudia Piñeiro (Filipe Redondo)

Os romances de Piñeiro e Levy tratam de temas por muito tempo mantidos em segredo: estupro e aborto. A escritora argentina, que militou para a legalização do aborto em seu país, diz que o tema aparece no romance não por militância, mas por ser uma realidade na vida das mulheres e da sociedade — ainda assim, acredita que a literatura ajuda nessa luta. 

“Sinto que a solidão da mulher está atrelada à impossibilidade da palavra”, disse Piñeiro. “A personagem do livro de Tatiana ouviu por anos ‘melhor não contar’. Isso leva a uma solidão muito grande.” Uma solidão que está se tornando um pouco menor, segundo as escritoras. “Há um movimento muito bonito de mulheres estarem se lendo, comentando-se umas às outras. Isso nos dá força para conseguir coisas que têm a ver com a literatura e também com a política, o coletivo. Nos dá a esperança de que vamos conquistar esse pedaço de mundo ao qual não estamos tendo direito”, concluiu Levy.

A Feira do Livro 2024

29 jun.—7 jul.
Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização da Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos voltada para a difusão do livro no Brasil, e da Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais. O patrocínio é do Grupo CCR, do Itaú Unibanco e Rede, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, da TV Brasil e da Rádio Nacional de São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34).

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