A Feira do Livro, Meio ambiente,

‘Sair do boi para o mundo ancestral é essencial para a proteção da Amazônia’, diz João Moreira Salles

O documentarista e o ambientalista Pablo Casella discutiram as implicações culturais, políticas e ambientais da devastação de biomas brasileiros

07jul2024
São Paulo, 07/07/2024 - João Moreira Salles, Pablo L.C. Casella e Maria Guimarães nA Feira do Livro 2024. (Filipe Redondo / Divulgação)

O processo de destruição dos biomas de regiões como a Amazônia e a Chapada Diamantina é resultado não só do desmatamento e da expansão das fronteiras agropecuárias, mas também de uma cultura que desconhece e não se interessa por essa biodiversidade. A ideia foi defendida pelo documentarista João Moreira Salles e pelo analista ambiental Pablo Casella na mesa “Natureza em chamas”, na tarde deste domingo (7), n’A Feira do Livro.

“Eu era mais um dos brasileiros de costas para a Amazônia”, disse Moreira Salles, que também é fundador da revista piauí e autor de Arrabalde: em busca da Amazônia (Companhia das Letras, 2022), resultado de seis meses vivendo na região.

Para ele, além do desinteresse dos brasileiros pela Amazônia, as representações que temos da floresta na arte ocidental, no cinema, apresentam um lugar perigoso, indesejado e de uma escala incomensurável. 

“A floresta precisa desesperadamente de um valor positivo. Isso está começando a acontecer porque estamos sendo permeados pelas cosmogonias indígenas, pela literatura. A gente era cego para essa produção.”

Autor de Contra fogo (Todavia), romance inspirado em sua experiência com brigadistas voluntários no Parque Nacional da Chapada Diamantina, na Bahia, o paulista Casella contou que escolheu viver no local após ser aprovado num dos primeiros concursos públicos para um órgão ambiental federal, após a promulgação da Constituição de 1988.

Pablo L.C. Casella (Filipe Redondo)

“O choque que eu tive como sudestino ao chegar no interior da Bahia, esse contraste, me encantou”, disse. “O que fiz no livro foi tentar passar para o leitor esse choque. O romance é a celebração de um povo, de um lugar e de uma forma específica de estar no mundo, que é a vida desses brigadistas.”

Casella lembrou que a questão ambiental é discutida há décadas no país, mas as campanhas feitas nos últimos anos prestam um desserviço ao tirar o foco do que é realmente importante, que é o modelo econômico de esgotamento de recursos. 

“É possível lapidar o capitalismo para a sobrevivência do planeta e todas as suas espécies?”, questionou. “Existe a corrente que diz que é inerente ao capitalismo produzir tragédias, extinção. Está na base desse sistema a ideia do crescimento infinito num planeta com recursos finitos. Aí está o erro original.”

Maior pasto do mundo

Moreira Salles relembrou o início das políticas de governo de incentivar a ida de brasileiros para a Amazônia, durante a ditadura, com slogans como “Chega de lendas, vamos faturar” e “Toque a sua boiada para o maior pasto do mundo”.

João Moreira Salles (Filipe Redondo)

Durante suas visitas a alguns moradores da região para a pesquisa de Arrabalde, o documentarista contou ter ouvido muitos proprietários orgulhosos contarem como transformaram extensões da floresta em plantação ou pasto. “Quando eu cheguei aqui, não tinha nada”, diziam, referindo-se a um dos sistemas biológicos mais complexos do mundo.

“A floresta nunca foi estudada. Nosso modelo de ocupação sempre foi de substituição: tira a floresta e coloca lá o boi, a soja. Troca a abundância das espécies por aquelas que foram domesticadas.”

Para Moreira Salles, essa mentalidade do regime militar, que atingiu seu apogeu no governo Bolsonaro, ainda domina quem detém poder econômico e político na Amazônia. “As cidades também são desconectadas da floresta. Só quem defende essa perspectiva de conexão com a Amazônia são aqueles que vêm perdendo essa guerra há quinhentos anos, os indígenas, quilombolas.”

Cultura do boi

O documentarista lembrou que o Brasil já conseguiu dar exemplo de política ambiental ao mundo entre 2004 e 2012, quando reduziu em 80% o desmatamento da floresta – “talvez só o Plano Real tenha sido tão eficiente como política pública”. 

Hoje, alerta, a cultura do boi prevalece, e só quando começaram a surgir lideranças indígenas como Ailton Krenak, Davi Kopenawa e Txai Suruí passamos a ter acesso a outras possibilidades de estar no mundo. 

“Fazer essa conversão simbólica de sair do boi e ir para o mundo florestal, ancestral, é absolutamente essencial para a proteção da floresta”, disse. “É preciso criar uma força política pela Amazônia. Marina Silva precisa ser apoiada e os ambientalistas. Lula precisa ser criticado cada vez que manda recados ambíguos.”

A Feira do Livro 2024

29 jun.—7 jul.
Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização da Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos voltada para a difusão do livro no Brasil, e da Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais. O patrocínio é do Grupo CCR, do Itaú Unibanco e Rede, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, da TV Brasil e da Rádio Nacional de São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Amauri Arrais

É jornalista e editor da Quatro Cinco Um.

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