Listão da Semana,
Laerte, ‘As perigosas sapatas‘ e mais 7 lançamentos
Somos brindados com antologias reunindo mais de quatrocentas páginas (cada uma!) de tirinhas de duas gênias dos quadrinhos
09jul2021 | Edição #47Depois de três décadas de extremo sucesso profissional, Laerte decidiu se reinventar, abrindo espaço nas suas tirinhas para inflexões mais filosóficas e abordando questões sociais importantes como, por exemplo, a identidade de gênero — em 2012, dois anos após declarar-se uma pessoa transgênero, ela cofundou a Associação Brasileira de Transgêneras (ABRAT). Durante décadas, a norte-americana Alison Bechdel retratou em seus cartuns a vida cotidiana da comunidade lésbica — e criou o chamado “teste de Bechdel”, que avalia preconceitos e estereótipos femininos no cinema. Nesta semana, somos brindados com antologias reunindo mais de quatrocentas páginas de tirinhas (de cada uma!) dessas duas artistas geniais.
Completam a seleção da semana o novo romance da polonesa Olga Tokarczuk (Nobel de Literatura em 2018), ensaios sobre o privilégio branco por Claudia Rankine, crônicas de Humberto Werneck, o romance de terror da argentina Mariana Enriquez, as narrativas futuristas de Ted Chiang e os textos esquecidos de grandes pensadoras do século 19. E, como bônus, um trecho exclusivo em português da nova biografia de Fernando Pessoa, lançada nesta semana nos Estados Unidos.
Viva o livro brasileiro!
O essencial de perigosas sapatas. Alison Bechdel.
Trad. Carol Bensimon • Todavia • 416 pp. • R$ 109,90
Criadora do eficaz “teste de Bechdel” — um questionário que avalia a representação das mulheres e escancara o preconceito de gênero nas produções cinematográficas —, a cartunista norte-americana reúne uma seleção de suas tiras sobre a vida cotidiana da comunidade lésbica: os encontros, as relações amorosas, o relacionamento com os familiares, os debates teóricos, a carreira acadêmica, os problemas no trabalho, a atividade política, as manifestações de rua. Na Quatro Cinco Um, Clara Rellstab resenha a coletânea: “O objetivo da autora, segundo ela mesma, era explodir o essencialismo e explorar a humanidade sapatônica: ‘Minha intenção era nomear o inominável, retratar o irrepresentável, para assim tornar as lésbicas visíveis. E eu fiz isso’”. Leia o texto na íntegra.
Ilustrações de Alison Bechdel
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Leia também: ‘Mangá-documentário’ mostra como homens de meia-idade que não perderam a virgindade podem trazer perigo social; Premiada HQ canadense sobre amadurecimento de uma garota nas férias de verão foi alvo de censura por abordar sexo e homossexualidade; Mulher-Maravilha trouxe para a cultura de massas valores como o sufragismo e a luta por direitos.
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Manual do minotauro. Laerte.
Companhia das Letras • 416 pp. • R$ 99,90
Mais de 1.500 tiras publicadas a partir de 2004, quando Laerte decidiu abandonar os personagens consagrados e as tiradas cômicas e começou uma fase mais reflexiva, com inflexões poéticas e metafísicas, são reunidas na coletânea. O período a marca o início de seus questionamentos sobre sua identidade de gênero, que a levou a abordar mais enfaticamente os direitos humanos e a sexualidade.
Ilustrações de Laerte Coutinho
Veja também: A capa da Quatro Cinco Um de dezembro de 2020, ilustrada por Laerte.
Ouça também: Laerte repassa quatro décadas de carreira em conversa com a psicanalista Maria Rita Kehl no podcast 451 MHz.
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Pessoa: A Biography. Richard Zenith.
Liveright Publishing Corporation • 1.086 pp. • US$ 40
Sai em inglês uma minuciosa biografia do poeta português, escrita por um grande especialista em sua obra, que em 2012 recebeu o Prémio Pessoa. Richard Zenith organizou os sete volumes da Obra essencial de Fernando Pessoa e a Fotobiografia de Fernando Pessoa; traduziu Pessoa para o inglês e organizou a grande exposição Fernando Pessoa: plural como o universo, que passou pelo Museu da Língua Portuguesa de São Paulo (2010), pelo Centro Cultural dos Correios no Rio de Janeiro (2011) e pela Fundação Gulbenkian em Lisboa (2012).
A Quatro Cinco Um publica com exclusividade, na edição de julho, um trecho da biografia que mostra as obsessões de Pessoa, que buscou livros para explicar a genialidade — a sua e a de Shakespeare. A revista também traz uma resenha do livro de Zenith, assinada por Carlos Adriano.
Leia também: Estudo crítico de 1973 fez contrapontos a leituras redutoras e demonstrou organicidade da obra de Pessoa.
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Correntes. Olga Tokarczuk.
Trad. Olga Bagińska-Shinzato • Todavia • 400 pp. • R$ 74,90
No romance da escritora polonesa ganhadora do Nobel de Literatura, uma psicóloga vai desvelando a sua própria personalidade (e suas reflexões sobre a existência humana) ao narrar uma série de histórias sobre viagens no tempo e no espaço — desde os passeios que ela mesmo fez nos arredores de sua casa (“Demoraram a perceber a minha ausência, por isso cheguei relativamente longe”) até episódios com personagens históricas, como aquele em que a irmã de Chopin consegue levar o coração do músico (sepultado em Paris) para a Polônia. O livro foi publicado originalmente em polonês em 2007 e a tradução para o inglês rendeu à escritora o Man Booker Prize em 2018. No ano seguinte, ela ganhou o Nobel.
Leia também: Olga Tokarczuk traz personagens excêntricas em um mundo onde matar e causar dor é algo normal; em livro infantil, Tokarczuk reflete sobre as profundezas da alma.
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O espalhador de passarinhos. Humberto Werneck.
Arquipélago • 176 pp. • R$ 45
A nova edição do primeiro livro de crônicas do autor de O desatino da rapaziada (1992) e editor sênior da Quatro Cinco Um traz 54 histórias (contra 65 da edição de 2010) nas quais fala sobre temas como o dia em que anunciaram a morte de um homônimo no rádio, uma turbulenta entrevista com Clarice Lispector, a estratégia de seu pai para evitar a extinção dos passarinhos, a boa vida que levava na revista Playboy, o grande fotógrafo que desistiu de fazer uma imagem sensacional para ajudar uma criança, uma conversa com Gilberto Gil e seu desejo de ter uma morte digna.
Trecho do livro: “As rádios de Belo Horizonte, naquele tempo, punham no ar convites fúnebres — e foi assim que, certa manhã, tendo apagado em meio à programação musical da madrugada, acordei com a notícia de que Humberto Werneck tinha morrido. Para quem se chama Humberto Werneck, não há pior maneira de começar o dia”.
Leia também: Humberto Werneck resenha livros sobre os diários de Drummond e sobre o jornalista Nirlando Beirão.
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Só nós: uma conversa americana. Claudia Rankine.
Trad. Stephanie Borges • Todavia • 352 pp. • R$ 89,90/63,90
A escritora e pensadora jamaicana retoma suas análises sobre o racismo entranhado na sociedade norteamericana, tema do seu livro Cidadã: uma lírica americana, publicado originalmente em 2014. O novo livro reúne ensaios, poemas e fragmentos que dissecam o “privilégio branco”.
Trecho do livro: “Recentemente, um amigo que não conseguiu um emprego para o qual se candidatou me disse que, como um homem branco, estava absorvendo os problemas do mundo. Ele queria dizer que estava sendo punido pelos pecados de seus antepassados. Queria que eu soubesse que ele compreendia isso como um fardo que ele deveria suportar. […] Eu queria perguntar a ele se suas expectativas eram um sinal de seu privilégio, mas decidi, uma vez que ele perdeu a vaga de emprego, que o meu papel como amiga provavelmente exigia outras reações”.
Leia também: Claudia Rankine mistura gêneros literários para descrever entrincheiramento vivido por negros nos Estados Unidos.
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Nossa parte de noite. Mariana Enriquez.
Trad. Elisa Menezes • Intrínseca • 544 pp. • R$ 79,90
Publicado em 2019, o romance da escritora e jornalista argentina Mariana Enriquez conquistou, no mesmo ano, o prestigioso Prêmio Herralde, concedido na Espanha desde 1983 — ela foi a primeira argentina a ganhar a distinção. O livro narra a história de Juan e seu filho Gaspar, que fogem de Buenos Aires em uma manhã de domingo rumo às Cataratas do Iguaçu, nos últimos anos da ditadura argentina. O pai tenta impedir que o garoto, dotado do poder de invocar a Escuridão em rituais sinistros, torne-se médium de uma sociedade secreta, a Ordem — o destino dos médiuns é trágico, pois a Escuridão arruina rapidamente o corpo e a mente das pessoas.
Leia também: Autora argentina cria mitologia fantástica em torno das lendas do rock e politiza a literatura de terror ao povoar seus contos com feminicidas e desaparecidos da ditadura.
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Expiração. Ted Chiang.
Trad. Braulio Tavares • Intrínseca • 416 pp. • R$ 59,90/39,90
Ganhador do prêmio Hugo, o escritor norte-americano reúne nove narrativas futuristas, entre elas a possibilidade de viajar no tempo e prever o futuro e as mudanças que isso acarreta na vida presente; homens que se esforçam em procurar vida inteligente no cosmos, mas não conseguem conviver com outras espécies na Terra; o problema do livre-arbítrio em um mundo que permite que as pessoas se comuniquem com outras em universos paralelos e a natureza dos direitos em uma realidade na qual objetos robotizados e animais operam com graus elevados de inteligência artificial.
Leia também: Ian McEwan apresenta sua versão de robô inteligente e questiona a ética envolvendo essas criaturas; três livros expõem o desencanto de pensadores com as promessas da inteligência artificial.
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Clássicas do pensamento social: mulheres e feminismos no século 19. Verônica Toste Daflon e Bila Sorj (org.).
Rosa dos Tempos/Record • 252 pp. • R$ 69,90
Oito pensadoras e cientistas sociais mostram que, a despeito de imensas dificuldades, houve efetivamente uma produção intelectual significativa feita por mulheres no século 19. Os textos, assinados por Harriet Martineau, Anna Julia Cooper, Pandita Ramabai Sarasvati, Charlotte Perkins Gilman, Olive Schreiner, Alexandra Kollontai, Ercília Nogueira Cobra e Alfonsina Storni — que viveram no século 19 e início do século 20 na África do Sul, na Argentina, no Brasil, nos Estados Unidos, na Índia, na Inglaterra e na Rússia — tiveram pouca ou nenhuma circulação no Brasil até agora.
Trecho do livro: “Essas autoras nos oferecem um manancial de reflexões perspicazes, originais e sistemáticas sobre vida privada, intimidade, casamento, sexualidade, divisão sexual do trabalho e vida cotidiana — temas que somente nos anos 1960 voltaram novamente à órbita da sociologia. Além de tratar de temas ‘de mulheres’, várias delas tocaram também em assuntos usualmente considerados fundamentais para a construção da sociologia, pensando de maneira criativa e sistemática sobre a origem e a natureza da modernidade emergente da sua época. A forma como o ensino tradicional da sociologia clássica tem sido feita, portanto, não se justifica nem pela ausência de produção nem pela falta de circulação de mulheres e de suas ideias nas redes dos intelectuais que colaboraram para a fundação e a consolidação do pensamento sociológico”.
Leia também: Françoise Vergès e Heloisa Buarque de Hollanda apontam novos caminhos para o feminismo; Silvia Federici, Patricia Hill Collins e Sirma Bilge mostram a importância de discutir gênero para a luta política.
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Matéria publicada na edição impressa #47 em maio de 2021.
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