Poesia,
Cheio de manias
Biografia mostra as obsessões de Pessoa, que buscou livros para explicar a genialidade — a sua e a de Shakespeare. Leia trecho exclusivo
01jul2021 | Edição #47Assim como um homem que, diagnosticado com uma doença rara, não mede esforços para conhecer as causas, os sintomas e os possíveis desfechos, Pessoa procurou descobrir tudo o que podia sobre a “doença” do gênio. Assim que devorou Degeneração, de Nordau, pegou uma tradução francesa de L’uomo di genio [O homem de gênio], de Cesare Lombroso, médico italiano precursor de Nordau que estudou por muito tempo as conexões entre genialidade, loucura e degeneração. Mais lembrado como criminologista, Lombroso sustentava que o crime era uma disposição hereditária, resultante da degeneração mental, e propunha que as prisões se convertessem em manicômios.
Foi em julho de 1907 e na Biblioteca Nacional — aonde ia provavelmente todos os dias, depois de almoçar com tia Maria e tia Rita — que Pessoa leu o tratado de Lombroso sobre o gênio e a loucura, além de livros de autores franceses, alemães e ingleses sobre psiquiatria, doença mental e fisiologia. No final do ano ou em 1908, comprou e leu The Insanity of Genius [A insanidade do gênio] (1891), de John Ferguson Nisbet, e Genius and Degeneration [Gênio e degeneração] (1896), de William Hirsch, marcando febrilmente as margens de quase todas as páginas. Mas a fome voraz de Pessoa por revelações psiquiátricas sobre o caráter e o comportamento humanos, particularmente no que dizia respeito aos artistas, não o levara ainda a Sigmund Freud, que já havia publicado algumas de suas obras importantes, inclusive A interpretação dos sonhos (1899), mas que só foram amplamente traduzidas depois de 1910.
Ao comparar, sintetizar e aprofundar suas leituras, Pessoa preencheu várias cadernetas e muitas páginas soltas com materiais para ensaios variados e nunca concluídos sobre genialidade, degeneração, loucura e patologias psicológicas específicas. Às vezes, desenhava gráficos, na tentativa de sistematizar a genialidade em todas as suas variedades, bem como as neuroses ou psicoses que cada variedade provavelmente exibia. Em um de seus primeiros esquemas, de um caderno que usou em 1907, Pessoa dividiu os gênios em três tipos básicos — gênios do pensamento, do sentimento e da vontade — e três tipos híbridos: pensamento-sentimento, pensamento-vontade e sentimento-vontade. Anotou que os gênios do pensamento tendem a ser filósofos ou pensadores, os gênios do sentimento tendem a ser místicos, os gênios do pensamento-sentimento geralmente são poetas, e assim por diante.
Outro esquema, que usa o jargão psiquiátrico típico da época, classificava os gênios de acordo com suas psicopatologias: neurastênicos, histéricos, epilépticos ou alguma combinação disso. Um punhado de gênios famosos servia de exemplos ilustrativos: Napoleão e César eram classificados como epilépticos, e Poe e Flaubert como histero-epilépticos. Shakespeare era rotulado de neurastênico histérico, que é como Pessoa se referiria ocasionalmente a si mesmo pelo resto de sua vida. Numa carta de 1931, ele explicaria: “Sou um histeroneurastênico com a predominância do elemento histérico na emoção e do elemento neurastênico na inteligência e na vontade”.
A despersonalização que deu origem aos heterônimos, bem como a Hamlet e Rei Lear, era uma consequência dos impulsos femininos dos dois escritores
Histeria, palavra que em grego significa “útero”, era um diagnóstico médico aplicado geralmente a mulheres com sintomas que iam desde irritabilidade e desejo sexual exacerbado a alucinações e distúrbios psicossomáticos. No século 19, os médicos tratavam essa doença massageando os órgãos genitais para provocar orgasmos, terapia que ajudou a popularizar o vibrador, inventado na década de 1880 para aliviar dores musculares. Pessoa, que estava bem ciente da compreensão tradicional da histeria, formulou sua própria descrição personalizada da síndrome. Escreveu em inglês que a histeria se manifestava em agudas mudanças de humor, uma tendência a sonhar acordado e “simulação e despersonalização, seja na forma da mentira comum […] ou da autossugestão de emoções falsas”. Não por acaso, a despersonalização era para Pessoa a marca dos grandes poetas, que conseguem sentir intensamente o que não sentem naturalmente. A neurastenia, por outro lado, resultava da tensão mental “do pensamento hiperativo” e normalmente se manifestava como “uma ansiedade embotada” e “um enfraquecimento e suspensão da vontade, uma impotência para agir e decidir”. Essa definição também se encaixa no caso de Pessoa. Em meados do século 20, ambos os diagnósticos praticamente desapareceriam do léxico psiquiátrico.
Pessoa não usava a histeroneurastenia como um distintivo na lapela, mas em suas anotações e entre seus amigos literatos agradava-lhe poder interpretar quaisquer aspectos excêntricos ou perturbadores de sua psicologia como sintomas da mesma doença que afligira Shakespeare, que não teria sido Shakespeare sem essa moléstia. De acordo com a análise de Pessoa do “caso” deles, a despersonalização que deu origem aos heterônimos, bem como a Hamlet, Lady Macbeth, Rei Lear e Falstaff, era uma consequência, ou desvio, dos impulsos femininos (“histéricos”) dos dois escritores. E o “pensamento hiperativo” de ambos, que levava à passividade “neurastênica”, era provavelmente um fator que contribuía para a dispersão literária deles em vários tipos de personagens.
Mania da dúvida
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Alexander Search, quando surgiu pela primeira vez, não era mais psicologicamente perturbado do que Pessoa, mas, dentro de um ano, o criador impôs alguns distúrbios mentais graves à sua criatura indefesa, que poderia assim servir como um objeto “vivo” para seus estudos sobre a loucura e, talvez, como um exorcismo profilático. Assim que encontrou o conceito de “mania da dúvida” no livro de Nordau, Pessoa escreveu um poema, assinado por Search, cujo título era “Mania of Doubt”. Datado de 19 de junho de 1907, a primeira das três estrofes descreve a síndrome:
All things unto me are queries
That from normalness depart,
And their ceaseless asking wearies
My heart.
Things are and seem, and nothing bears
The secret of the life it wears.¹
Os dois últimos versos da estrofe nos lembram que Search foi criado como um poeta filosófico com vocação para investigar o mistério subjacente a tudo o que vemos. Porém, o ardor dessa investigação se tornara uma mania da dúvida, uma necessidade obsessiva de questionar.
“Mania of Doubt” e um poema semelhante, escrito no mesmo dia, intitulado simplesmente “Doubt”, seriam ambos incluídos em “Documents of Mental Decadence” [Documentos da decadência mental], coletânea de poemas provavelmente concebida por Pessoa por volta daquela época. Outros títulos para organizar os poemas de Search eram “Delirium”, “Before Sense” e “Mens Insana”. Esses títulos talvez fossem destinados a coletâneas separadas ou a seções distintas de uma única coletânea. O próprio Pessoa talvez não tivesse certeza de suas intenções e distribuiu e redistribuiu os poemas de Search entre os diferentes títulos.
Independentemente de como estavam organizados, a loucura pairava como uma nuvem tempestuosa sobre o conjunto. Numa poética “Prayer” [Oração] de 1908, Search, percebendo que já estava “meio louco”, gasta 73 versos implorando a Deus que não o deixe cair na “loucura absoluta”. E num soneto escrito seis meses depois e intitulado “Towards the End” [Perto do fim], o narrador anuncia, com resignação, o desaparecimento final de sua sanidade:
All grows dark. I feel
My reason leave me like a last sunbeam²
As ansiedades expressas nesses poemas são patentemente autobiográficas, e o tema da autobiografia é Alexander Search, que até escreveu o seu próprio epitáfio poético, que começa assim:
Here lieth Alexander Search
Whom God and man left in the lurch
And nature mocked with pain and woe.
He believed not in state or church
Nor in God, woman, man or love,
In earth below, nor heav’n above.³
Search foi um duvidador maníaco compulsivo até o fim, o que ocorreria aos “vinte e poucos” anos, de acordo com o mesmo epitáfio — como Shelley, que morreu aos 29 anos, ou Keats, que viveu somente até os 25. A profecia estava correta: Search de fato deixou de existir em 1910, ou seja, aos 22 anos, pois nascera, como Pessoa, em 13 de junho de 1888.
Apesar da conexão visceral sugerida pela data de nascimento coincidente, como se fossem gêmeos idênticos, a semi-insanidade de Search e o medo de perder completamente a cabeça não foram compartilhados por seu criador. Pessoa era o estudante diligente de psiquiatria e das teorias que ligavam a genialidade à decadência mental. Alexander Search, ele próprio um tipo estudioso, bem como um colaborador cativo, tornou-se o objeto experimental que encenava a própria loucura, ou quase loucura.
No final da década, quando o interesse intelectual de Pessoa pelo assunto começou a diminuir, Alexander Search perdeu sua razão de ser e não assinou mais poemas. Ao longo da década seguinte, Pessoa continuou a escrever prolificamente poesias em inglês — todas atribuídas ao seu próprio nome, com uma exceção. Em julho de 1916, ele escreveria um poema que começa com “There is no peace save where I am not” [Não há paz salvo onde não estou] e termina com “Oh, Mother of Shadows, whose ice-dead kiss/Is madness, hasten towards my brain!” [Oh, Mãe das Sombras, cujo beijo gélido/É loucura, apressa-te em direção ao meu cérebro!]. Abaixo do poema, ele indicou a coletânea a que o poema pertencia: “Documents of Mental Decadence”. Embora não estivesse assinado, era por associação um poema de Search. Mesmo depois de desaparecer do círculo de heterônimos ativos, Search parece ter sobrevivido silenciosamente em Pessoa.
No entanto, vários anos depois de Pessoa ter deixado o Curso Superior de Letras, Alexander Search ainda não estava calado nem sereno. (Tradução de Pedro Maia Soares)
Notas do tradutor
1. Tradução de Luísa Freire:
Todas as coisas para mim são perguntas
Que se afastam da normalidade,
E seu incessante questionar cansa
Meu coração.
As coisas são e parecem, e nada dá à luz
O segredo da vida que elas carregam.
2. Tradução:
Tudo escurece. Sinto
Que minha razão me deixa como um último raio de sol
3. Tradução de Luísa Freire:
Aqui jaz Alexander Search
De Deus e homens abandonado,
Da natureza troçado em dor;
Não acreditou em igreja ou estado,
Em Deus, homem, mulher ou amor,
Nem na terra aqui ou no céu além.
Nota do editor
Trecho do capítulo 15 de Pessoa: A Biography, de Richard Zenith. Publicado mediante acordo com W.W. Norton e Companhia das Letras.
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Matéria publicada na edição impressa #47 em maio de 2021.