

Repertório 451 MHz,
Formas de afeto
Vera Iaconelli e Geni Núñez falam sobre a crise do cuidado, maternidade, monogamia e outras possibilidades de amor
28fev2025Está no ar o 130º episódio do 451 MHz, o podcast dos livros. Esta edição traz uma conversa da psicanalista e escritora Vera Iaconelli e da psicóloga, poeta e ativista indígena guarani Geni Núñez que aconteceu n’A Feira do Livro 2024. Com mediação da atriz e também escritora Martha Nowill, elas falaram de maternidade, da crise do cuidado e dos papéis associados aos gêneros, refletindo ainda sobre outras possibilidades de amor para além da monogamia imposta pelos colonizadores europeus.
O encontro foi na mesa “Formas de afeto”, que aconteceu na manhã do dia 7 de julho e lotou o auditório do Palco da Praça d’A Feira do Livro, montado na praça Charles Miller, em frente à Mercado Livre Arena – Pacaembu. Este episódio do 451 Mhz é realizado com o apoio da Lei de Incentivo à Cultura.

Psicanalista paulistana, Vera Iaconelli é colunista da Folha de S.Paulo e autora de Manifesto antimaternalista: psicanálise e políticas da reprodução (Zahar, 2023), que desconstrói o mito do instinto materno e retraça as origens históricas da ideologia que atrela as mulheres ao papel de cuidadoras.
Ano passado, ela lançou, também pela Zahar, Felicidade ordinária, coletânea de colunas publicadas na Folha desde 2017. Os textos reunidos entrelaçam os medos, traumas e desejos que permeiam as relações individuais e coletivas contemporâneas com questões como feminismo, masculinidade, sexo, política e parentalidade.
Já a escritora guarani Geni Núñez, além de psicóloga, poeta e ativista pelos direitos indígenas, é doutora em ciências humanas e mestre em psicologia social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ela publicou Descolonizando afetos: experimentações sobre outras formas de amar (Paidós, 2023), que discute a imposição do casamento monogâmico pelos missionários da era colonial, além da coletânea de poemas Felizes por enquanto: escritos sobre outros mundos possíveis (Planeta, 2024) e o infantojuvenil Jaxy Jaterê (HarperKids, 2023).
Na conversa, as duas se juntam à atriz, roteirista e escritora Martha Nowill, de séries de TV como Pedaço de mim (Netflix, 2024), Todas as mulheres do mundo (Globo, 2020), e filmes como Vermelho russo (2016), em que também assina o roteiro. Ela acaba de lançar Coisas importantes também serão esquecidas (Companhia das Letras), diário em que esquadrinha questões da carreira e da maternidade durante sua gravidez de gêmeos, tendo como pano de fundo o início da pandemia de covid-19 em 2020.
Cuidado e interdependência
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Na discussão sobre maternidade, trabalho de cuidado e papéis de gênero — temas estruturais da sociedade —, Vera Iaconelli retomou as questões abordadas em seu Manifesto antimaternalista, como a construção histórica do papel materno e sua relação com a subjugação das mulheres. Segundo a psicanalista, estamos vivendo um “colapso do cuidado”.
“Chegamos num momento em que as mulheres realmente compram a ideia de que ser mulher é ser mãe, é ser cuidadora. E elas vão entrando numa lógica neoliberal de achar que dá pra ser CEO e ainda ser essa cuidadora. Então chegamos num colapso do cuidado”, apontou. “Temos crianças cuidando de outras crianças porque os responsáveis por elas estão cuidando de crianças de outras classes”, disse.
Para Geni Núñez, é preciso pensar em uma ética do cuidado que se liberte da ideia de exploração do trabalho. “A questão é transformar o cuidado, que é a posição de menos valor na nossa sociedade, naquilo que tem mais valor. Positivar o trabalho de cuidado como algo de um valor ético acima de qualquer outro é a questão crucial aqui.”
Núñez trouxe uma perspectiva indígena sobre o assunto, reforçando a ideia da interdependência como um pilar fundamental das relações humanas. “A interdependência nos constitui, a gente vai precisar de colo, cuidado, amparo ao longo de toda a nossa vida. É claro que algumas pessoas vão precisar mais, mas é algo que constitui a vida”, disse. “A saúde está no quanto esse cuidado é compartilhado, circula.”
Para exemplificar essa ideia do ponto de vista guarani, em que as relações de parentesco se dão não só entre pessoas, mas também com a terra, os rios, os bichos, ela recorreu a uma história que lhe foi narrada por uma cacica de Santa Catarina. “Lá faz frio, né? Ela me contou que, bem cedinho, as crianças vão tomar banho no rio, e acordam com aquela água gelada. Mas o rio também acorda com as crianças.”
Monogamia e trabalho
Tratando de suas pesquisas sobre a não monogamia, Núñez relatou que recebe muitas mensagens de pessoas que dizem não terem tempo de ter mais de uma relação, porque uma só já exaure muito. “Existem várias pesquisas que mostram que ser mulher, heterossexual, esposa, mãe, rende oito horas a mais de trabalho por dia. Então é claro que exaure, não sobra tempo para se divertir, para o prazer.”
Ela lembrou então dos dois sentidos da palavra “vagabunda” quando usada como xingamento contra mulheres. “É aquela que não trabalha e aquela que teria uma performance sexual não hegemônica. Além de não trabalhar, ainda usa o tempo para o seu prazer”, complementou.
Martha Nowill apontou que a monogamia geralmente está associada aos encontros sexuais e ao amor romântico, mas vai muito além, estruturando relações sociais e até crenças religiosas.
“Quando eu te li”, disse a atriz para Núñez, “eu entendi que esses conceitos estão falando de tudo, do modo como a sociedade se organiza. Eu achei muito legal uma hora no livro [Descolonizando afetos] que você fala assim: ‘a monogamia está até na espiritualidade. Você tem que amar só um Deus, senão ele vai ficar muito bravo se amar outros. Deus quer exclusividade’.”
Imposição colonial
A mesa também discutiu a herança colonial da monogamia, imposta pelos colonizadores. Geni Núñez, que pesquisou cartas dos jesuítas que vieram ao Brasil para catequizar os indígenas, destacou que lidar com questões como essa exige uma crítica aos universalismos que sustentam diversas concepções, como a de gênero e a dos relacionamentos afetivos.
Ela reforçou como os colonizadores impuseram um sistema binário de gênero e relações amorosas baseadas na exclusividade, e que essas ideias foram naturalizadas ao longo do tempo.
“Nessas cartas, nossos antepassados eram [considerados] bichos, e só depois de serem civilizados seriam homens e mulheres. Para ser homem ou mulher, é preciso primeiro ser humano. E, nesse pensamento, a categoria mulher esteve sempre associada a ser mãe e esposa”, afirmou a psicóloga e poeta.
“O gênero é um atributo civilizatório que distinguiria homens e mulheres. E onde houve ‘homem’ e ‘mulher’, sempre houve desigualdade. Mas não há só homens e mulheres em todos os lugares onde houve gentes neste mundo”, lembrou.
Falando especificamente sobre a construção moderna da ideia de não monogamia, ela disse que sentia falta de uma visão histórica sobre o assunto, incluindo a perspectiva indígena. “Parece que estão descobrindo algo novo, mas é algo documentado desde 1500.” A escritora guarani então retomou a relação com a religiosidade. “O primeiro adultério que aparece é o adultério espiritual. Só se pode amar um deus”, apontou. “É a não concomitância que caracteriza essa fidelidade. E é uma fidelidade que, embora se diga que é livre-arbítrio, se você desobedecer, você vai pro inferno.”
Núñez lembrou que, em suas cartas, o padre Manuel da Nóbrega até fez um esforço para entender qual seria o vínculo principal nos modos de se relacionar dos guaranis, mas se decepcionou ao descobrir que o termo usado para as parcerias também poderia se referir aos rios ou aos bichos, por exemplo.
“Ele percebe que remerecó [“pessoa companheira”, em guarani] também era o vento, era a chuva, era o rio. Então, a ideia de companhia, de laço, de presença, vai além de uma aparentalidade terraplanista”, disse. “Então, é entender que o rio, o vento, a chuva, os demais seres também são nossos parentes. E a gente [guaranis] segue se referindo a eles dessa forma até hoje.”
Iaconelli então brincou: “Não dá muita vergonha ver que nossa grande revolução sexual foi nos anos 60 e 70? A invasão colonial encontrou um povo que tinha uma relação com a sexualidade, a nudez, o corpo, que é muito mais moderna que a nossa.”
Linguagem e cultura
A conversa também trouxe uma reflexão sobre a linguagem e sua relação com a psicanálise e os saberes indígenas. Núñez disse que o idioma guarani não possui pronomes possessivos, o que altera completamente a forma de conceber as relações interpessoais.
“A língua de uma comunidade diz muito sobre como ela vive. A própria língua tenta impor um certo tipo de pensamento. Em guarani, em vez de dizer ‘isso é meu’, dizemos ‘isso está em minha companhia’. É uma relação que não se estabelece por via da posse”, explicou.
Iaconelli complementou com o olhar da psicanálise para a relação entre linguagem e identidade. “Estamos condenados à linguagem”, disse. “Na psicanálise a gente trabalha escutando o sujeito num lugar muito privilegiado e maluco. E o grande trabalho não é naquilo que ele fala de modo organizado, preparado, mas onde ele falha, onde escorrega, onde passa vergonha. Você diz sem querer dizer, e isso diz mais de você do que você gostaria.”
Ainda falando sobre linguagem, Núñez mencionou a questão do marco temporal -– tese jurídica segundo a qual só têm direito a terras os indígenas que as ocupavam em 1988, quando a Constituição foi promulgada. A pergunta “quem é o verdadeiro dono da terra?”, disse, não faz sentido para os povos indígenas, que não acreditam que se possa ser dono da terra, de um rio, de outra pessoa.
No fim do encontro, Núñez leu o poema “Não tenho esperança”, de sua autoria. Os versos falam que, na cultura guarani, não faz sentido ter expectativas sobre o presente, sobre o que já se vive. E mesmo o que só se pode esperar para o futuro está sujeito a percursos acidentados e “feridas que pioram com o passar do tempo”.
Por isso, não quero mais saber de esperança.
Isso não significa que eu esteja triste ou ressentida.
Pelo contrário—
é a partir do imenso respeito que tenho pela vida
e pelo tempo
que não aceito vender fiados meus sonhos.
Isso não significa ser imediatista,
mas reconhecer que aquilo que se vive em processo
não precisa de promessa—
já é algo.
Na última parte, o poema propõe viver o aqui e agora, em vez de alimentar expectativas futuras:
Eu não tenho esperança,
mas tenho a voracidade,
e é com ela que me movimento,
para me transformar
e transformar o mundo junto.
Esperança, a partir de agora,
é meu critério
do quão bem estou,
do quão potável está minha vida.
Quanto menos eu tiver de tê-la,
tanto mais transbordantes estarão meus dias.
Pois se estou sorrindo agora,
não preciso ter esperança de sorrir.
Mais na Quatro Cinco Um
Manifesto antimaternalista, de Vera Iaconelli, foi resenhado para a Quatro Cinco Um pela jornalista e podcaster Carol Pires na edição #74 da revista dos livros. Ela afirma que “a autora coloca as próprias categorias ‘mulher’ e ‘mãe’ em discussão” e também traz para o debate a busca dos homens e mulheres transgênero ou não binários pelo “seu lugar de reconhecimento no universo parental”. Leia a íntegra aqui.
Ainda sobre a diversidade de gêneros, a própria Iaconelli escreveu sobre o filósofo trans Paul B. Preciado, que para ela faz de seus livros uma bússola ética para os humilhados e ofendidos de nosso tempo. O texto fez parte do especial “Livros e Livres”, sobre literatura LGBTQIA+, publicado em 2024 na edição #77.
No ano anterior, Iaconelli participou junto com o poeta Fabrício Corsaletti do 90º episódio do 451 MHz, em que conversaram sobre a obra do cineasta espanhol Pedro Almodóvar e como as mulheres aparecem como personagens centrais, do mesmo modo que o desejo e a maternidade, nos filmes do diretor.
Geni Núñez também já colaborou com a Quatro Cinco Um. Em 2024, a psicóloga escreveu o ensaio “Uma queda pela tentação”, que saiu no especial “Sexo no feminino”, junto com outros textos jornalísticos, além de poemas eróticos inéditos, sobre o prazer na obra de escritoras brasileiras.
O diário Coisas importantes também serão esquecidas, sobre a gravidez e puerpério de Martha Nowill, foi resenhado para a revista pela jornalista e crítica literária Giuliana Bergamo. Leia a íntegra aqui.
Também colaboradora da Quatro Cinco Um, Nowill já escreveu sobre grandes nomes do teatro e da dramaturgia brasileira para a revista. Entre eles, o diretor Zé Celso Martinez Corrêa, morto em 2023, e a atriz Fernanda Montenegro.
O melhor da literatura LGBTQIA+
O episódio traz a indicação do colunista da Quatro Cinco Um Renan Quinalha, professor de direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autor de Movimento LGBTI+: uma breve história do século 19 aos nossos dias (Autêntica, 2022) Ele indica Neca: romance em bajubá, de Amara Moira, lançado no segundo semestre do ano passado pela Companhia das Letras.
“O livro é todo baseado num relato, numa narrativa bastante frenética, numa oralidade muito marcada na linguagem de uma travesti mais velha que reencontra um amor do passado, que é uma travesti mais jovem”, descreve Quinalha. “E ela vai relatando a sua vida, suas viagens, suas experiências sexuais, os fetiches, enfim, numa linguagem toda muito provocativa, com muitas passagens engraçadas também, com um humor muito afiado.”
Confira a lista completa de indicações do podcast 451 MHz no bloco O Melhor da Literatura LGBTQIA+.
CRÉDITOS
O 451 MHz é uma produção da Associação Quatro Cinco Um.
Apresentação: Paulo Werneck
Produção: Brenda Melo
Edição e mixagem: Igor Yamawaki
Identidade visual: Quatro Cinco Um
Para falar com a equipe: [email protected]
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