Cultura,

A energia transcendente de Zé Celso

Perdemos o grande pai do teatro brasileiro contemporâneo e agora temos que andar com as próprias pernas

07jul2023 | Edição #72

Se a vida do artista pode às vezes ser massacrada por trabalhos burocráticos e menos apaixonantes, por propagandas de xampu e planilhas de Excel, saber que existe a possibilidade de descer à rua Jaceguai numa sexta à noite e entrar no Teatro Oficina é como saber que existe água no deserto. Ou como tirar o salto alto no fim do dia. Respirar aliviada cada partícula de subversão, sabendo que toda nossa caretice pequeno burguesa está sendo transmutada, que sairemos de lá muito melhores do que entramos, com o diafragma e a alma expandidos.

Eu vou ao Teatro Oficina como quem sai para o Carnaval. Um pouco pelo tempo dilatado das peças mas também pela ousadia que a cena me exige e o desconforto da arquibancada do teatro. Não é fácil para mim ir ao santuário de Zé Celso Martinez Corrêa. Dias antes me preparo, as pernas, o espírito, a bolsa com pão, chocolate e vinho. Chego ao teatro num misto de euforia e pânico: assim como no Carnaval, tenho medo de ser abduzida pela loucura de Dioniso e nunca mais voltar para minha casa e minha agenda de compromissos. No íntimo, o desejo secreto de ser convocada por uma bacante a ocupar o centro da cena.

Pisar no Teatro Oficina pela primeira vez é um caminho sem volta. Em 1997 fui com minha mãe assistir a Ela, de Jean Genet, dirigida pelo Zé. Saímos de lá combinando  escrever um livro sobre as mulheres da nossa família, que teria o título “Catraca”, nunca me esqueço. Ainda não sentamos para contar essa história, mas ali farejei um pouco de como o teatro pode ser potente, catártico, sagrado e profano, coletivo e pessoal, organizado e anárquico, político e poético, tudo ao mesmo tempo já.

“Eu gosto da beira do abismo”, diz Zé Celso se equilibrando nas pedras do precipício à beira do mar grego, numa cena do filme Evoé: retrato de um antropófago de Tadeu Jungle e Elaine Cesar.

Temos que ser gente grande e lembrar de Zé para não cair nas armadilhas da mediocridade

O Teatro Oficina dá vertigem. Lá eu vi Renée Gumiel dançando encostada na parede de Lina Bo Bardi. Vi a Cacilda de Bete Coelho, Leona Cavalli e Giulia Gam, o arauto de Pascoal da Conceição, e a inesquecível figura de Marcelo Drummond de chapéu-coco. Vi Zé Celso voando como Antônio Conselheiro e as bacantes atacando Eduardo Suplicy. Fui enfeitiçada pela loucura de Denise Assunção e a luz mágica de Cibele Forjaz. Vi a beleza de Vera Valdez, Camila Mota, Sylvia Prado e o leite escorrendo das tetas de Anna Guilhermina. Vi Ricardo, Fransérgio, Mariano, Aury, Celsim, o coro das crianças do Bixiga descendo a rampa e, pela primeira vez, eu vi a porta de um teatro se abrir e uma peça ganhar a rua. Pela primeira vez, vi também a coxia misturada com a cena e os atores se banhando na fonte. Vi um teto se abrir e vi tanta gente pelada que o corpo nu passou a ser o que é, grandioso e precário. Gostaria de ter nascido antes e ter visto Renato Borghi e Célia Helena em Pequenos burgueses. E queria muito ter visto O rei da vela. Me arrependo das peças que não vi, do mesmo jeito que lamento alguns amores que perdi. Nunca deixarei de ir ao Teatro Oficina, assim como nunca abandonarei o Carnaval.

No começo dos anos 2000, eu tinha acabado de me formar no Teatro-Escola Célia Helena e procurava trabalho. Foram abertas inscrições para dois lugares que me pareciam um sonho. O curso de formação de atores de Antunes Filho, o CPTzinho, e uma oficina do Teatro Oficina para a montagem de Os sertões. As duas pediam uma carta de intenção. No dia da seleção para o CPT, eu escrevi uma carta que era uma página, falando dos meus sonhos, desejos, do quanto aquilo significaria pra mim. Fiz a entrevista e não passei. Me lembro de perguntar para meia dúzia de colegas que haviam sido selecionados o que eles tinham escrito na carta. Todas as respostas que ouvi soavam parecidas e o traço em comum era um minimalismo quase blasé: “Por que não?”. Eu nunca fui blasée, embora tenha tentado. Na semana seguinte, abria a seleção para o Oficina, e fui pessoalmente levar minha carta de intenção na Oswald de Andrade. Desta vez eu não ia errar, e em vez de destilar todo o meu emocional exagerado e juvenil, escrevi uma única linha em letra de forma, a mais minimal que pude. Não fui chamada, claro. Ficou a lição óbvia, mas não menos importante: seja você mesma, e estará no lugar certo.

Uma grande família

Os atores do Oficina são grandes, forjados num espaço incomum, devoram o público com seus gestos largos, poderosas caixas torácicas e suas máscaras greco-tupy. De longe — e de perto também —, eles me parecem uma grande família. As fronteiras entre arte e vida aparentam ser completamente borradas, senão inexistentes. E é justamente por isso que, ao me sentar para escrever sobre Zé Celso, só consigo falar sobre o Oficina.

Nesta quinta-feira, essa família perdeu seu grande fundador e maior alicerce, e todos nós ficamos desolados. Para mim, um sentimento de orfandade: perdemos o grande pai do teatro brasileiro contemporâneo e agora temos que andar com as próprias pernas. Temos que ser gente grande e lembrar de Zé para não cair nas armadilhas da mediocridade. “Não há morte que o morra” escreveu Zé Miguel Wisnik em seu Instagram, e eu fiquei aqui pensando que sim, famílias continuam depois de grandes perdas, ainda mais uma fundada na eternidade do solo teatral.

Num artigo escrito em 1960, Patricia Galvão defende a ideia de que só o teatro amador pode ser mais e maior que o teatro profissional, justamente por não ter nada a perder. É claro que todos nós queremos ser amadores quando se trata de fazer por amor, mas queremos também ser profissionais quando se trata de receber pelo ofício que exercemos. Em alguns momentos, conseguimos unir as duas coisas, mas, quando leio o texto de Pagu, rio do seu idealismo, que não leva em conta os boletos da vida prática. Quem consegue a proeza do amadorismo, se a vida exige profissionalismo?

Eu acho que o Zé conseguiu, ininterruptamente. “Durante minha vida inteira nunca fiz nada que não gostasse e isso me custou muito.” Quem foi ao Teatro Oficina nesta madrugada pôde sentir no corpo a energia tremenda que este homem mobilizou em sua existência. O coração pulsando música, a água nos olhos e a vontade de dançar. A energia transcendente de quem foi entidade em vida correndo nas veias de todos que foram saudar seu corpo queimado e que por algumas horas se transformaram em atores do velório do grande xamã do teatro brasileiro.

Evoé.

Quem escreveu esse texto

Martha Nowill

Atriz, é autora do livro de poemas O que ela quer (Edith) e roteirista do filme Vermelho russo.

Matéria publicada na edição impressa #72 em julho de 2023.