Sexo no feminino,
Uma queda pela tentação
É de experimentar o que produz e é produzido pelo desvio e pelo desejo que se faz o prazer, o amor e a vida
01ago2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #84Inicio este ensaio inspirada em um famoso poema de Hilda Hilst, chamado “Tenta-me de novo”, presente na antologia Do desejo (Biblioteca Azul, 2012):
E por que haverias de querer minha alma/ Na tua cama?/ Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas/ Obscenas, porque era assim que gostávamos./ Mas não menti gozo prazer lascívia/ Nem omiti que a alma está além, buscando/ Aquele Outro. E te repito: por que haverias/ De querer minha alma na tua cama?/ Jubila-te da memória de coitos e acertos./ Ou tenta-me de novo. Obriga-me.
Dentre tantos elementos incríveis neste poema, o que mais me encanta é justamente o duplo sentido da expressão “tenta-me”, que pode ser lida tanto como tentar, de insistir, quanto tentar de tentação. Enquanto escrevo este ensaio, me dou conta de que a palavra tentação, no contexto da ideologia cristã, ficou tão marcada pela noção de sedução imoral, que quase me esqueço que, antes disso, ela significa tentar, experimentar, instigar o que produz e é produzido pelo desejo. Ainda bem que Hilda Hilst e tantas outras referências na literatura nos ajudam a lembrar.
No dicionário Michaelis (2024), a palavra tentação é associada a alguns sentidos como: ato ou efeito de tentar, impulso íntimo ao pecado, apetite ou desejo, indicação ao mal, por sugestão sensual e do demônio. Estou falando disso, porque, da minha perspectiva, discutir o prazer, em nosso contexto, deve passar, necessariamente, pelo reconhecimento de que a moral dominante a esse respeito é a de matriz cristã colonial.
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Influenciado pelo platonismo, o cristianismo divide o mundo em duas partes hierarquicamente organizadas, na qual o real é inferior ao ideal, o sexo é inferior ao amor, o corpo é inferior à alma, a terra, inferior ao céu. Nesse sistema de monoculturas, não se admite concomitâncias, já que um grande critério do que seria evolução, progresso e desenvolvimento é justamente a tomada de partido em um dos lados do binarismo: ou se é animal ou se é humano; ou se é civilizado, ou se é selvagem; ou se goza ou se ama; ou é azul ou é rosa; ou é homem ou é mulher.
Ao mesmo tempo, com as mudanças históricas na forma como as relações foram estruturadas, em um contexto mais contemporâneo, há uma outra idealização: a de que a monogamia e o amor romântico deem conta de não deixar que nada falte, já que o esperado é que em uma única relação se tenha o melhor amigo, o melhor amante, a família, o trabalho, as férias, o amor e o sexo. Diante do fracasso da conquista desse cenário, uma das narrativas mais comuns que escutamos na clínica e fora dela é: “Se me amasse, não teria me traído”.
Que outros desejos são possíveis para além daqueles produzidos por sua própria proibição?
Traição, nesse contexto, é entendida como sinônimo de quebra de exclusividade sexual e ainda que se possa advogar pela polissemia do termo, em verdade, a primeira e imediata associação feita no senso comum, na mídia hegemônica e na literatura científica costuma ser referente à sexualidade. Voltando à frase, talvez possamos pensar que, em muitos casos, justamente porque ama é que “traiu”. Afinal, nesses sistemas, amor não coexiste com sexo, nem corpo com alma. Para além de supostos méritos individuais, há algo nas posições estruturais dessas cenas que tentam predeterminar sentidos, ou seja, uma mesma pessoa, ao ocupar o lugar de esposa, pode não experimentar o sexo, o desejo, o tesão; já enquanto no lugar de “outra”, aí sim, seria associada a toda essa dimensão. Sob o preço, é claro, de não ser atrelada ao amor, ao sagrado e à família. Nesse binarismo, parece não haver saída: quanto mais se ama, menos tesão, quanto mais excitação, tanto menor o espaço para a ternura. Mas precisa ser sempre assim? Que outros desejos são possíveis para além daqueles produzidos por sua própria proibição?
Gosto de pensar que o termo “outra”, utilizado como referência à amante, também cabe à esposa, afinal, independente da categoria relacional, o outro é sempre outro, é sempre “outra” a pessoa com quem a gente se relaciona. Quando nos esquecemos disso, é comum que o desejo desapareça.
Mundo dividido
Pensando no que o machismo nos coloca, parece que ao feminino e à mulher a conjugação deve ser sempre na voz passiva, a amada. Como se o amor nos salvasse, nos desse sentido de existência e valor no mundo. Já a figura “má”, essa se desloca dessa posição fixa e também existe como a amante. Para além de ressignificar e alargar os significados de mulher e de feminino, me interessa muito pensar na beleza da desistência desses modelos, pois ainda que se busque desassociar um alinhamento entre a posição de feminino com a de mulher e a de masculino com a de homem, ainda persiste em mim a pergunta: porque seguir dividindo o mundo nessas duas posições?
A partir disso, outras tantas possibilidades de artesania se tornam possíveis, pois quando não acreditamos nos vereditos sociais sobre quem somos e seremos, sobre quem desejamos, como, quando e onde, algo de outra ordem pode surgir.
É melhor casar que viver abrasado, dizia o apóstolo Paulo. Em outras palavras, uma vez constatado o infortúnio do desejo, da carne, do corpo, o ordenamento é que as pessoas se casem depressa para conter tais ímpetos. O amor seria algo como a redenção do sexo, sua limpeza, o caminho reto.
Talvez, ao contrário do que o slogan prega quando diz que o mundo precisa de “mais amor”, quem sabe possamos questionar o excesso de sua presença, pois foi em nome desse amor que boa parte das violências contra nós se sucedeu, foi amando desse jeito que a gente aprendeu a fingir que gozou, foi amando dessa forma que aprendemos que a beleza e o encanto do mundo são inimigos da nossa “segurança”. A hipérbole cultural que esvazia e retira do sexo qualquer resquício de erotismo também é uma forma de repressão, da mesma maneira que o culto ao amor romântico reprime outras formas de amor.
Felizmente, é de tentação, de experimentação e desvio que se faz o prazer, o amor e a vida.
IMPECÁVEL
Tudo em linha reta
Tudo combinado, previsto, controlado
Dizia não ter nenhuma inveja
Não se permitia nenhuma gula
E engolir, só a ira
Preguiça, jamais
Luxúria, nem pensar
De tanto temer o fogo, congelou seus desejos
Com vergonha do orgulho, rebaixou suas alegrias e o sorriso alheio lhe ofendia
Mas nós, pecadoras, que você tanto repudia e tanto deseja, te convidamos a brincar conosco nesse lamaçal
Vem, talvez tenha chegado a hora de não ser mais tão impecável
Matéria publicada na edição impressa #84 em agosto de 2024.
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