Livros e Livres,

O ex

Paul B. Preciado faz de seus livros uma bússola ética para os humilhados e ofendidos de nosso tempo

01jan2024 | Edição #77

Causou furor a conferência de Paul B. Preciado em Paris, na Escola da Causa Freudiana, em 2019. Convidado para falar a mais de 3 mil psicanalistas sobre as mulheres na psicanálise, mas calado pelo teor da sua fala, Preciado se tornou o arauto de um momento no qual o anacronismo das instituições ditas progressistas não pode mais ser encoberto pela racionalização da teoria. Suas posições já eram conhecidas demais na Europa para acreditar que a plateia foi pega de surpresa.

O racha discursivo ficou explicitado pela profusão de palmas e vaias, cujo volume o impediu de continuar. Como o silenciamento não é de seu feitio, fomos brindados com o livro Eu sou o monstro que vos fala: relatório para uma academia de psicanalistas (Companhia das Letras, 2020), no qual ele publica a conferência completa seguida de outras reflexões preciosas.

Eu sou o monstro que vos fala: relatório para uma academia de psicanalistas

Ali testemunhamos o quanto a lucidez e assertividade de Preciado são acompanhadas de seu senso de justiça. Capaz de separar o joio do trigo, o autor não deixa de reconhecer a importância da psicanálise em seu atribulado percurso pessoal, ao mesmo tempo que não poupa críticas à heteronormatividade de alguns profissionais que foram incapazes de escutá-lo.

Dissidentes das normatividades, da lógica binária, da heteronormativa… Preciado não cansa de apontar os lugares a partir dos quais somos presa de categorias cuja única razão de existir é impor hierarquias que visam a exploração e a “destruição dos viventes”. Nesse sentido, sua bandeira vai muito além das lutas identitárias, e aponta para o risco de naturalização e acirramento de posições de exclusão.

Daí sua autodefinição como dissidente do sistema sexo-gênero, como preconizado por Gayle Rubin em “Tráfico de mulheres”, artigo escrito em 1975 e parte do livro Politicas do sexo, lançado pela Ubu em 2017. Mas a melhor forma que Preciado encontrou para falar de sua condição de dissidência talvez seja a de se autodenominar como sendo “ex”. “Sou um ex”, ele responde às insistentes perguntas sobre sua identidade, fazendo alusão à fala pretensamente atribuída a Gregor von Rezzori.

Prefixo que aponta para o anacronismo das posições que nos são tão caras e, no entanto, passageiras, o “ex” também é usado por Lacan para refletir sobre a nossa identidade, ou melhor, nossa não identidade.

Identidade não é um conceito psicanalítico que aposta nas identificações. O sujeito se identifica com traços que lhes são ofertados pelos cuidadores primordiais na tentativa, sempre vã, de constituir uma identidade. Sou isso, sou aquilo, sou aquilo outro é o mantra que usamos ao longo da vida para marcar uma posição, uma referência que sirva de esteio para nossa circulação no mundo. Embora seja uma condição imprescindível da nossa existência, a negociação que se estabelece com essa ficção identitária é fundamental. Assim, para a psicanálise as identificações estão aí justamente para recobrir a ausência de uma identidade última. Nesse sentido, não somos idênticos a nós mesmos e “exsistimos”, segundo Lacan. Daí autodeclarar-se “ex” soar tão consonante com a lógica psicanalítica.

Viva os viventes

Preciado advoga pelo vivente, denunciando a crueldade na matança de animais, a destruição ecológica ligada aos combustíveis fósseis, as opressões de classe/gênero/raça do modo de organização que ele chama de “petrossexorracial”.

Ao colocar o vivente no centro de sua ética, minimizando a miragem da luta identitária, Preciado dialoga, sem explicitá-lo, com a cosmovisão dos povos originários para quem a lógica dos brancos é dos “comedores de terra”, como diz Kopenawa.

A necrobiopolítica que nos levará todos à ruína e alguns poucos “privilegiados” aos porões de Marte, exposta por Preciado, o faz afirmar em seu último texto, Dysphoria Mundi: o som do mundo desmoronando (Zahar, 2023), como num mantra que “Wuhan está em toda parte”. Texto de fôlego que ele produziu em resposta ao imenso sofrimento pessoal e mundial da pandemia, Dysphoria revela um filósofo que transita sem pudores entre as formas que melhor se prestem a expressar sua indignação e esperança com o mundo como o conhecemos. Ali está sua aposta de que o mundo que desmorona diante de nós dará lugar de pertencimento aos excomungados e aos explorados.

O filósofo luta contra as adversidades com uma escrita engajada que jorra à altura do ultraje vivido

A forma como o filósofo enfrenta a Covid-19, sozinho em seu apartamento em Paris, ardendo em febre e temendo por sua integridade física — ele teve uma sequela no olho que quase lhe custou a visão — nos revela um pouco da função da escrita em sua vida. Ou talvez, por que não?, a função da vida em sua escrita. O texto, de uma lucidez impressionante, composto de ensaios curtos e certeiros, revela alguém que luta contra as adversidades pessoais e coletivas por meio de uma escrita engajada que jorra na proporção do ultraje vivido.

Preciado denuncia um mundo em decomposição enquanto luta pela criação de espaços de diálogo e de inclusão do vivente. Assim como respondeu às vaias produzindo um texto crítico e conciliador, o filósofo aponta um caminho de luta que leva em consideração o mundo que queremos.

Ao falar das fake news que nos causam tanta preocupação, Preciado se pergunta para qual mundo nossa verdade se prestará. Mais do que a busca de uma verdade última, o filósofo nos obriga a responder com que mundo sonhamos. Sem essa bússola ética, de pouco servirá nossa vã filosofia.

Esse texto faz parte do especial “Livros e Livres”, sobre literatura LGBTQIA+, realizado com o apoio do Fundo de Direitos Humanos do Reino dos Países Baixos e publicado na edição #77 da Quatro Cinco Um

Editoria com apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos

Desde 2023, o Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos apoia a cobertura especial Livros e Livres, dedicada a títulos com temática LGBTQIA+

Quem escreveu esse texto

Vera Iaconelli

Psicanalista, escritora e colunista da Folha de S.?Paulo, é autora de Manifesto antimaternalista: psicanálise e políticas da reprodução (Zahar, 2023).

Matéria publicada na edição impressa #77 em novembro de 2023.