

Literatura brasileira,
Questão sensível e sofisticada
Em diário, a atriz e roteirista Martha Nowill escancara com realismo e humor os dilemas da maternidade
17fev2025 • Atualizado em: 19fev2025Ser ou não ser mãe? Essa questão é o ponto de partida de Coisas importantes também serão esquecidas, diário de gravidez e puerpério da atriz, roteirista e dramaturga paulistana Martha Nowill. Em maior ou menor grau, a dúvida assola todas as pessoas nascidas com útero. É o corpo que vem equipado com uma maquinaria própria para gerar outra pessoa, mas quem sofre o dilema — muitas vezes bem mais longo e complexo do que uma gravidez ou puerpério — é o ser inteiro.
Não é para menos. Imposta social e historicamente como missão compulsória e sublime, na prática, a maternidade tem nuances mais complexas. Até aquelas mães que se sentem realizadas costumam relatar experiências de luto, solidão e desamparo. O nascimento da criança, afinal, inaugura de maneira abrupta uma nova fase na vida. Tudo muda. O corpo, a casa, o relacionamento com o companheiro ou a companheira, com os pais, os amigos, o trabalho e por aí vai. A condição, porém, é eterna. Os filhos crescem e podem, por infortúnio, morrer precocemente, mas uma vez mãe, sempre mãe.

Não há caminho inverso. É natural que a maternidade suscite muitos questionamentos, sobretudo para quem tem mais consciência das transformações. É natural também, mesmo nas melhores condições possíveis — a maternidade como escolha feita em um ambiente econômico e emocional razoavelmente bem estruturado —, que a gestação e os primeiros meses de vida dos bebês sejam cheios de altos e baixos, um paradoxo constante.
Mulheres de todos os tempos devem ter vivido isso na intimidade. Mas só recentemente elas têm ganhado maior espaço no debate público. Em 2023, em um ato histórico, Rosa Weber deu seu voto a favor da descriminalização do aborto, dias antes de se aposentar do cargo de ministra do Supremo Tribunal Federal. Na arguição emocionante, que só poderia ter sido proferida por uma mulher, chamou a questão de “sensível e sofisticada”.
O tema também ganha força em outras esferas, como a ciência e a arte. Livros como Manifesto antimaternalista (Zahar, 2023), da psicanalista Vera Iaconelli, ou os romances A filha perdida (Intrínseca, 2016), da italiana Elena Ferrante (adaptado para o cinema por Maggie Gyllenhaal e para o teatro por Juliana Araujo) e Morra, amor (Instante, 2019), da argentina Ariana Harwicz, mergulham no assunto sem pudores.
Coisas importantes também serão esquecidas é mais uma contribuição para tais reflexões. No livro, Nowill releva, sem censura, o período que antecede sua gravidez e vai até o aniversário de um ano dos gêmeos Benjamin e Maximilian (de 9 de outubro de 2019 a 2 de fevereiro de 2022). O relato começa no momento em que ela está no auge do dilema. Aos 39 anos, em seu terceiro casamento, e prestes a viver uma personagem para uma série da Globo, a atriz se pergunta se deve ou não interromper os métodos contraceptivos.
Martha domina a contação de histórias, tecendo fios de tragédia com maravilhosas cores de comédia
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Confusa com uma decisão tão íntima, acaba apelando para os sinais externos. “Se até 12 de novembro uma criança me der uma flor amarela, então devo liberar imediatamente para engravidar. Agora, se ela me der uma flor branca, significa que posso esperar mais um ano”, escreve, fazendo um acerto com um oráculo aleatório.
A atitude lembra as brincadeiras que meninas fazem para adivinhar o que os meninos sentem por elas. Lembra também o jogo que a protagonista de outra obra sobre o tema, Maternidade (Companhia das Letras, 2018), da canadense Sheila Heti, faz usando moedas para estabelecer um diálogo interno sobre ter ou não filhos. Mas, enquanto o romance se sustenta inteiramente nessa questão central, em sua não ficção, Nowill se liberta dela em poucas páginas.
Em junho de 2020, em plena pandemia de Covid-19, e depois de uma única transa sem evitar a gravidez, um teste de laboratório dá positivo. “Não fiquei feliz nem triste, só aliviada por ter algo concreto sobre um assunto que me atormenta há anos”, escreve.
Sem dedos
No diário, passa a registrar experiências comuns a qualquer gestante, como quando se dá conta de que vai fazer tudo o que disse que não faria — “Dizem que a gravidez é um eterno cuspir para cima e cair na testa” — ou quando percebe a fragilidade emocional deflagrada pelos hormônios — “Sinto que posso chorar ininterruptamente pelos próximos meses”. Mas a maior parte da história é um retrato de uma realidade infelizmente rara no Brasil: o ingresso ao mundo da maternidade vivido por uma artista sem renda fixa, mas de classe alta, que mora na metrópole mais rica e bem assistida do país, São Paulo, às voltas com a gravidez e, depois, com o desafio de criar gêmeos.
Só que Nowill registra tudo com a maestria de quem domina a contação de histórias, tecendo fios de tragédia com maravilhosas cores de humor. Para quem já passou por tudo isso em condições semelhantes, fica impossível não se identificar, chorar, gargalhar e revisitar os momentos delicados e sombrios da própria vida. Para quem ainda não tomou a decisão ou está prestes a passar por tudo isso, é uma excelente previsão do que está por vir. E, para os homens, uma oportunidade de viver a maternidade pela ótica feminina.
Ainda no início da gestação, por exemplo, Nowill sofre com o medo de não ter condições financeiras para sustentar os bebês. Faz cálculos e cálculos tentando prever quanto gastará com fraldas e chega a acreditar que o casal não conseguirá pagar por elas. É um exemplo cômico do grau de descolamento da realidade que grávidas podem atingir. A ansiedade é aplacada pelo tempo e apoio da rede de afeto que a cerca. Amigas organizam um chá de bebê, do jeito que era possível em plena pandemia, parentes presenteiam o casal com quantias de dinheiro e até os trabalhos que pareciam impossíveis nessas condições permanecem.
Nowill também narra, sem dedos, as transformações do próprio corpo, as dúvidas sobre o parto, intensificadas pelo fato de gestar gêmeos, os momentos delicados vividos com o companheiro, Luiz, e a diferença com que cada um encara a situação.
Ele me ajuda em tudo, faz massagem no meu pé, é meu parceiro, mas não tem dimensão do que é uma gravidez. Nenhum homem tem. Se os homens engravidassem, o mundo seria um lugar diferente.
E os hilários:
De noite, enquanto troca os meninos, Luiz faz um cálculo idiota sobre quanto vai medir o pau deles no futuro.
Enquanto a pandemia corre lá fora, a autora narra a reconfiguração da sua estrutura pessoal e familiar. O avô, por quem ela tem um amor especial, morre, assim como o padrasto, que há anos tratava um câncer. Recém-divorciado, seu pai vai morar com ela e o marido. Médico, o pai passa a dar grande apoio, muitas vezes, outras se comporta como um filho que ela ainda não tem: “De noite pedimos pizza e meu pai quebrou um prato. Fiquei furiosa, porque ele quebrou o prato e continuou comendo pizza sem nem pedir desculpas”.
O livro amadurece junto com a narradora. A mulher do início que cria oráculos de brincadeira e disputa Yakults com os enteados, nas páginas finais, abre a casa para a família estendida, que inclui a ex-mulher do parceiro acompanhada pelo atual namorado. As minúcias domésticas também vão ganhando o tamanho que a rotina lhes dá, e Nowill volta a se ocupar do trabalho e das questões para além da casa. Retoma um manuscrito de Patrícia Galvão, a Pagu, que a atriz tem a missão de montar no teatro, e outros compromissos particulares.
Como leitores e leitoras, passamos pelas linhas com o desejo de que a frase dita pela diretora com quem Martha Nowill trabalha durante a gestação um dia seja a realidade de todas: “nenhuma mulher deve ser punida pela maternidade”.
CORREÇÃO > A diretora com quem Nowill trabalhou durante a gestação não foi Charly Braun, conforme constava em uma versão anterior do texto (atualizado em 19 de fevereiro de 2025).
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