A Feira do Livro,
A Feira do Livro 2024 termina com debates sobre como o passado ecoa no presente e norteia o futuro
Último dia do evento tratou da subjugação histórica das mulheres e do genocídio palestino, das lutas abolicionista e pela justiça por vítimas da ditadura e da atual destruição dos biomas brasileiros
08jul2024 • Atualizado em: 10jul2024Reflexos do passado no presente e as perspectivas que eles abrem para o futuro em diversas áreas estiveram em discussão nas mesas de domingo (7) d’A Feira do Livro, último dia da edição 2024 do festival literário.
Os debates entre autores e pensadores envolveram a subjugação histórica das mulheres e o genocídio palestino em meio à guerra entre Israel e o Hamas, o movimento abolicionista do século 19, a luta das vítimas da ditadura pelo direito à memória, além de tratar da efervescência cultural dos anos 70 e 80, da importância da tradução de autores que abrem novos horizontes literários e da destruição dos biomas brasileiros hoje.
A programação do último dia d’A Feira fez o público acordar cedo. Num Palco da Praça lotado às dez da manhã, a psicanalista e escritora Vera Iaconelli e a psicóloga, poeta e ativista indígena Geni Núñez discutiram na mesa “Formas de afeto” temas enraizados no senso comum, como trabalho de cuidado, maternidade, gênero e monogamia.
Sobre os violentos processos de subjugação das mulheres, Iaconelli afirmou que chegamos num momento de crise do cuidado. “As mulheres realmente compram a ideia de que ser mulher é ser mãe, é ser cuidadora. E elas entram numa lógica neoliberal de achar que dá pra ser CEO e ainda ser essa cuidadora. Então chegamos num colapso do cuidado”, apontou. “Temos crianças cuidando de outras crianças porque os responsáveis por elas estão cuidando de crianças de outras classes.”
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Segundo Núñez, para lidar com questões como essa é preciso criticar os universalismos, como os que estão por trás das ideias de gênero e monogamia, algo que ela tem pesquisado a partir das cartas de jesuítas que vieram ao Brasil para catequizar os indígenas.“Nessas cartas, nossos antepassados eram bichos, e só depois de serem civilizados seriam homens e mulheres. Para ser homem ou mulher, é preciso primeiro ser humano”, disse.
Outro tipo de subjugação com raízes históricas, a do povo palestino, foi o assunto da mesa “De São Paulo a Gaza”, com o ensaísta e tradutor húngaro Peter Pál Pelbart e o escritor e filósofo Vladimir Safatle. Em falas preparadas previamente e lidas pelos dois convidados, eles trataram do genocídio palestino, dos significados da guerra entre Israel e o Hamas e das perspectivas do conflito.
Safatle analisou quatro processos que acredita estarem por trás do que acontece hoje em Gaza, mas que para ele dizem respeito ao mundo como um todo: repetição, dessensibilização, desistorização e vazio jurídico, usados contra populações colocadas em extrema vulnerabilidade em qualquer lugar. “Estamos diante de um laboratório global de sujeição”, afirmou.
Falando de um ponto de vista da intelectualidade judaica, que produziu nomes que vão de Hannah Arendt a Franz Kafka, Pelbart disse que a atual conformação do Estado de Israel é um desrespeito a essa tradição. “O que assistimos hoje é o triste ocaso de toda uma tradição ética e revolucionária”, disse. “No seu silêncio, na sua conivência, eles cometem um crime contra a tradição e a ética judaicas”, avaliou, referindo-se a intelectuais judeus que apoiam a guerra ou se calam diante dela.
Geração no espelho
Uma geração que redefiniu o jornalismo no Brasil e depois brilhou na literatura do país foi retratada na mesa “Páginas de um país”, com os autores Maria Adelaide Amaral e Ivan Angelo. No Palco da Praça, eles conversaram sobre suas carreiras, seus livros e sobre como buscam refletir sobre o país em seus escritos.
Angelo, que lançou em 2023 o romance Vida ao vivo (Companhia das Letras), sobre um magnata da mídia que decide expor sua vida pessoal no horário nobre de sua emissora de televisão, falou sobre como surgiu o personagem.“Queria expor a cabeça de um magnata dono da maior rede de comunicações num país fictício”, contou o escritor.
Já Maria Adelaide, que retratou sua geração e a luta pela redemocratização do país em Aos meus amigos, revisto pela autora e reeditado este ano pela Instante, relatou como a paixão pela literatura começou cedo em sua vida. “Na merda total que foi minha infância e adolescência, enquanto meus pais, imigrantes, estavam preocupados com a sobrevivência, eu voava com os livros”, disse.
Também no contexto da celebração dos livros, a importância do trabalho dos tradutores foi destaque da mesa “Homenagem a Leiko Gotoda”, principal referência em tradução da literatura japonesa no Brasil. No encontro entre a tradutora Rita Kohl, que verteu diversas obras japonesas para o português, e a editora Luara França, que trabalhou em edições de livros traduzidos por Gotoda e Kohl, a mediadora Gabriela Mayer, criadora do site e do podcast sobre literatura Põe na Estante, saudou a ocasião.
“Esse encontro é uma oportunidade de reunir mulheres tradutoras para falar de outra mulher tradutora pioneira”, disse Mayer, lembrando que França também tem experiência na tradução, embora da língua inglesa. Ao descrever a homenageada, que aos 83 anos de idade tem saído pouco de sua casa em São Paulo, Mayer lembrou do ineditismo do trabalho de Gotoda.
“Tínhamos traduções diretas somente dentro da comunidade Nikkei e nas universidades. A Leiko abriu o caminho nas editoras”, comentou Kohl. Ela e França ainda ressaltaram o “brilhantismo” das traduções de Gotoda para livros de grandes autores japoneses como Eiji Yoshikawa, Haruki Murakami, Yukio Mishima e o Nobel de literatura Kenzaburo Oe. “Além de um conhecimento absurdo do japonês, o texto dela em português é impecável. Ela é uma escritora brilhante”, disse França.
Da abolição à crise ambiental
O legado de outro intelectual brilhante, o engenheiro, inventor e um dos líderes do movimento abolicionista brasileiro André Rebouças, foi debatido na mesa “Avenida Rebouças”, que reuniu as historiadoras Ana Flávia Magalhães, diretora do Arquivo Nacional, e Hebe Mattos, que organizou as cartas e diários do abolicionista.
O movimento pelo fim da escravidão no Brasil foi um esforço multifacetado que se desenvolveu ao longo do século 19, destacaram as convidadas da mesa. “O racismo cria o imaginário de que pessoas negras só eram escravas. Apesar do Brasil vir de uma sociedade escravista, existia uma construção intelectual muito grande dentro dessa população”, disse Mattos.
Magalhães chamou atenção para os reflexos, sentidos ainda hoje, de uma abolição que não significou inclusão social da população negra. “Políticas que não considerem que a maioria do Brasil não é branca atualizam as violências que vêm sendo produzidas desde o século 19 até hoje”, pontuou. “A cidadania plena de pessoas negras neste país nunca foi um projeto claro. Ou a gente lida com essa fratura fundadora, ou a gente vai fazer a manutenção da violência.”
O processo histórico de destruição dos biomas de regiões como a Amazônia e a Chapada Diamantina esteve em debate na mesa “Natureza em chamas”, com o documentarista João Moreira Salles e o escritor e analista ambiental Pablo Casella. Segundo Moreira Salles, que escreveu sobre a região amazônica em Arrabalde (Companhia das Letras), tal destruição é resultado não só do desmatamento e da expansão das fronteiras agropecuárias, mas também de uma cultura que desconhece e não se interessa pela biodiversidade.
“Fazer a conversão simbólica de sair do boi e ir para o mundo florestal, ancestral é absolutamente essencial para a proteção da floresta”, disse. “É preciso criar uma força política pela Amazônia. Marina Silva e os ambientalistas precisam ser apoiados. Lula precisa ser criticado cada vez que manda recados ambíguos”, declarou o fundador da revista piauí.
Casella, que escreveu sobre brigadistas que lutam contra queimadas na Chapada Diamantina no romance Contra fogo (Todavia), associou a crise ambiental ao capitalismo. “É possível lapidar o capitalismo para a sobrevivência do planeta e todas as suas espécies?”, questionou Casella. “Existe a corrente que diz que é inerente ao capitalismo produzir tragédias, extinção. Está na base desse sistema a ideia do crescimento infinito num planeta com recursos finitos. Aí está o erro original.”
Ditadura e extrema direita
No momento em que o golpe militar de 1964 completa sessenta anos, e três dias depois de o presidente Lula recriar a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos durante o regime, a mesa “Ditadura nunca mais” reuniu dois autores que pesquisam crimes praticados em nome do Estado brasileiro durante o período e a resistência das famílias de vítimas da ditadura.
Camilo Vannuchi e Pádua Fernandes defenderam que conhecer crimes do Estado é direito da sociedade, e por isso a luta dos familiares das vítimas da ditadura não interessa somente a elas. “Não é só assunto de família, e não pode ser um fardo somente para elas. Esses familiares têm consciência do caráter coletivo da sua luta”, disse Fernandes. “A memória é um direito social, direito do povo. Quem tenta privatizar essa luta são os conservadores, que tentam esconder essas histórias.”
“A luta por verdade, memória e justiça é uma luta de familiares e principalmente de mulheres”, ressaltou Vannuchi, citando que mães, esposas, filhas e irmãs dos torturados e mortos são as principais responsáveis pela sociedade brasileira hoje conhecer os detalhes de muitos crimes do regime militar.
Os embates em defesa da democracia também ecoaram na mesa “Sempre Paris” em que a tradutora Rosa Freire d’Aguiar falou da efervescência cultural, política e comportamental de Paris, onde foi correspondente nos anos 70 e 80, e das eleições legislativas francesas deste domingo. Ela comemorou as pesquisas de boca de urna projetando uma vitória surpreendente da esquerda no segundo turno do pleito e classificou a notícia como “um motivo para comemorar”.
“Tremi muito esses dias. Ganhamos dessa vez, mas tem uma extrema direita relativamente forte na França. No primeiro turno houve muitos votos de protesto, motivados pela precarização dos subúrbios e porque o Estado de bem-estar social, do qual os franceses sempre se gabaram, acabou degringolando”, avaliou.
Na última mesa d’A Feira do Livro 2024, “Tempo mãe”, a escritora Silvana Tavano, que publicou este ano o romance Ressuscitar mamutes (Autêntica Contemporânea), conversou com a editora da Quatro Cinco Um Iara Biderman, estreante na ficção com o livro de contos Tantra e a arte de cortar cebolas (Editora 34), sobre as relações entre o tempo e as memórias.
Em seu livro, Tavano mistura pesquisa e ciência com elaborações sobre a figura materna, o passado, o presente e o futuro. Para ela, a ficção é um lugar privilegiado para mesclar realidade e fabulação. “Acho que há um hibridismo na literatura. Essas fronteiras têm se borrado, porque a pesquisa alimenta a literatura e lhe dá verossimilhança. O fantástico é necessário, mas o fundo de realidade também.”
A Feira do Livro 2024
29 jun.—7 jul.
Praça Charles Miller, Pacaembu
A Feira do Livro é uma realização da Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos voltada para a difusão do livro no Brasil, e da Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais. O patrocínio é do Grupo CCR, do Itaú Unibanco e Rede, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, da TV Brasil e da Rádio Nacional de São Paulo.
Peraí. Esquecemos de perguntar o seu nome.
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