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Quando começamos a ler o mundo?

Livro-imagem de autores latino-americanos sobre período-chave da evolução humana é uma ode à arte e à sensibilidade das crianças

01set2024 • Atualizado em: 30ago2024 | Edição #85
Ilustração de Jairo Buitrago (Divulgação)

Se para Paulo Freire a leitura de mundo precede a leitura da palavra, eis aqui um livro que ilustra a máxima do educador pernambucano quase ao pé da letra. Desde as primeiras imagens de Ugh!, do peruano Rafael Yockteng e do colombiano Jairo Buitrago, somos convidados a testemunhar uma Terra distante no tempo e no espaço, quando um pequeno grupo de hominínios vive a sua vidinha no Pleistoceno (a última época geológica antes da nossa, o Holoceno).

Uma vidinha que inclui grandes aventuras — enfrentar uma manada de bisões, caçar mamíferos ferozes, sobreviver (ou não) a avalanches, dormir sob nevascas, fugir de dentes-de-sabre —, e também atividades mais prosaicas — subir e descer montanhas, estender a mão para o vizinho na hora de atravessar o penhasco, parar para um xixi no tronco ou caminhar por quilômetros em silêncio observando tudo ao redor e notando detalhes que comumente passam despercebidos.

A narrativa em imagens mostra o nascimento das inscrições rupestres e como nos tornamos humanos

Pois é isso que vemos nesse livro, como já indica o subtítulo: “um relato do Pleistoceno”. Acompanhamos um grupo composto de pessoas e de alguém que não parece ser da mesma espécie que nós, um grandalhão meio macaco com tacape na mão. De fato, hoje se sabe que ocorria essa convivência e até colaboração entre espécies. (O próprio termo “hominínios” existe para abarcar os humanos atuais, Homo sapiens, e todas as outras espécies da nossa árvore evolutiva, como os neandertais.)

A certa altura, notamos como o grupo vai perdendo integrantes — as baixas são inevitáveis em condições tão adversas — e como um deles tem um comportamento diferente: uma menina atenta a cada acontecimento do caminho não apenas avisa o grupo dos perigos que só ela enxerga, como, ao fim do dia, transforma seu olhar sensível, sua leitura de mundo, em histórias desenhadas e narradas ao pé da fogueira. Note-se: uma criança, uma menina, e não um “homem­-das-cavernas”.

Assim termina essa narrativa épica em imagens, um jeito lindo, emocionante e inteligente de mostrar o nascimento das inscrições rupestres e de como nos tornamos humanos. Lindo, porque os desenhos de Yockteng são de uma maestria sem igual; emocionante, porque sentimos as dores desses personagens, cada um com sua individualidade; e inteligente porque combina conhecimento científico com brincadeiras que dramatizam e divertem, como as caretas de pavor e bravura e o tamanho exagerado de alguns animais da megafauna (por exemplo, uma preguiça gigante, que não era tão grande como vemos ali).

Depois tudo foi diferente

Nas páginas finais de Ugh!, um texto narra, e adensa, o significado do que tinha acabado de acontecer nas belas ilustrações. Explica como a menina se apropriou do que viveu e transformou isso em desenho, artefato, linguagem. Uma pequena aula de estética e história da arte, interessante e necessária para desmistificar como essas primeiras imagens foram criadas. Ao contrário do que dizem por aí, não há nada de sobrenatural nelas, são registros naturais dos primeiros transumantes, os povos originários.

No entanto, a fruição do livro prescinde desse texto, a beleza da história se completa sem ele. Aliás, o nome do livro em inglês, Afterward, Everything Was Different, parece apropriado para resumir a moral da história sem se alongar, apesar de entender a importância do texto final como afirmação de valores. Já o título que a edição brasileira adotou me pareceu um pouco redutor, como se estivesse tratando “daqueles homens-das-­cavernas, uga-uga”. A intenção dos autores ficou mais clara ao assistir a uma conversa on-line entre eles e a editora colombiana María Osorio, da Babel Libros. A ideia surgiu de uma brincadeira sobre o que sabemos (ou não) sobre essas pessoas: como elas falavam? Provavelmente uma língua que não era bem língua ainda, de sons guturais? É por aí que eles foram.

Para terminar, deixo vocês com a leitura crítica do Rafael, de dez anos, que não fala português e leu apenas as imagens: “A gente vê as coisas que os homens criaram, como os desenhos com pedaços de madeira que eles queimaram. E eles descobrem um monte de técnicas para os desenhos e melhoram as técnicas de caça, mas a cada vez que melhoram, eles perdem um homem, e isso é triste. O que eu não gostei foi a parte das pessoas que morrem ou que ficam muito machucadas. […] O que é legal é que eles melhoraram tanto a técnica que, quando chega a parte que lutam com o urso, ninguém morre. No final eles desenham e a criança faz um chamego no pai. E quando eles desenham, eles contam uma história.”

Quem escreveu esse texto

Ana Paula Campos

Designer, é autora de Inventório, mestrado pela fau-uspsobre design e livros informativos para crianças.

Matéria publicada na edição impressa #85 em setembro de 2024. Com o título “Quando começamos a ler o mundo?”

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