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Laços de família

Arqueologia e pesquisas genéticas demonstram a inegável mestiçagem entre nós e os neandertais

20nov2018 | Edição #12 jun.2018

Neandertais viveram entre a Europa, o Oriente Médio e partes da Ásia por mais de 200 mil anos, até desaparecerem ao redor de 30 mil anos atrás, ou seja, por volta do século 300 a.C. Durante essa época muito fria, quando em boa parte do tempo a temperatura média do planeta estava seis graus abaixo da atual, o nível do mar recuou mais de cem metros, a Escandinávia e partes do centro da Europa eram cobertas por grandes geleiras e o canal da Mancha não existia, já que o sul da Grã Bretanha era emendado com o continente. Grandes mamíferos, atualmente extintos, muito maiores que os de hoje, pastavam nas estepes frias que recobriam áreas que hoje são florestas. 

A história das pesquisas com neandertais, por terem vivido majoritariamente na Europa, se confunde com a história da paleoantropologia, que se constituiu como campo de pesquisa na Europa Ocidental ao longo do século 19. Desde o primeiro achado, próximo à cidade de Dusseldorf, em meados do século 19, diferentes imagens têm se apresentado pela ciência sobre esses nossos parentes próximos. Tais imagens foram tradicionalmente construídas com base no estudo dos esqueletos, preservados geralmente em grutas, mas também em artefatos de pedra lascada datados do mesmo período e, em alguns casos, diretamente associados às ossadas. 

Nos últimos anos, no entanto, tem havido uma verdadeira revolução no conhecimento sobre os neandertais: novas técnicas analíticas, como o estudo de isótopos de nitrogênio extraídos de ossos não totalmente fossilizados, a análise de microvestígios de plantas extraídos de cálculos dentários ou a aplicação de métodos geoquímicos para o estudo da composição das rochas que serviam como matéria-prima para a produção de artefatos, têm contribuído para um melhor entendimento para os modos de vida há muito extintos. 

Talvez a mais impactante dessas inovações tenha sido a possibilidade de extração do DNA de ossos enterrados há dezenas de milhares de anos. As dificuldades envolvidas no desenvolvimento dessas técnicas foram narradas por Svante Päabo em seu livro Neanderthal Man: In Search of Lost Genomes (2014), misto de autobiografia e relato de divulgação científica. No livro, Päabo narra sua trajetória: nascido na Suécia, filho ilegítimo de um prêmio Nobel, ao qual via secretamente aos sábados durante sua infância, e assumidamente bissexual, ele praticamente criou o campo de estudos sobre DNA antigo, incluindo o de neandertais, que tem revolucionado a arqueologia na última década.

Há uma revolução no conhecimento sobre neandertais. A inovação mais impactante é a extração de DNA de ossos de milhares de anos

Essas novas perspectivas sobre o estudo de neandertais são apresentadas de maneira clara e fluida no livro Neandertal, nosso irmão, escrito por uma paleoantropóloga, Silvana Condemi, e por um jornalista especializado em divulgação científica, François Savatier. Publicado originalmente na França, o livro é bem escrito, ilustrado e de leitura agradável, apesar de recheado de informações científicas densas. Como há poucos livros em português sobre o tema — com exceção, por exemplo, de Assim caminhou a humanidade, escrito por Walter Neves, Miguel Rangel Jr. e Rui Murrieta, publicado em 2015 —, a obra funciona perfeitamente tanto como introdução quanto como atualização sobre os debates em um campo dinâmico do conhecimento. 

Talvez por essa razão, tanto os editores brasileiros como os franceses tenham decidido acrescentar subtítulos infelizes — aqui, “uma breve história do homem”, lá, “300.000 ans d’histoire de l’homme”, em vez, por exemplo, de “da humanidade”. Há também algumas pequenas escorregadas que não são erros em si, mas poderiam ter sido evitadas por uma revisão técnica, por exemplo o uso do termo “azoto”, menos comum, para se referir ao elemento químico nitrogênio. Essas ressalvas não diminuem o valor da obra, que agradará ao público curioso sobre a história dos neandertais e a evolução humana em geral.

O livro tem dez capítulos, além de uma introdução e uma conclusão. Neles, os autores mostram como neandertais foram caçadores bem-sucedidos, capazes de abater animais muito maiores que seu próprio tamanho através de comportamentos que deviam ser coletivos e colaborativos. Dados de análise de rochas mostram como estabeleceram redes de troca e circulação de matérias-primas que incluíam amplos territórios.

Novo homem

O então chamado “homem de neanderthal”, identificado em meados do século 19, recebeu esse nome por haver sido encontrado no vale de Neander. Não existe, no entanto, um rio com este nome: Neander, em grego, quer dizer Neumann — “novo homem”, o que não deixa de ser curioso para designar uma espécie extinta —, sobrenome de um pregador pietista, Joachim Neumann, que reunia seus fiéis pelo vale no século 17. 

O primeiro fóssil neandertal escavado foi inicialmente atribuído ao esqueleto de um soldado da época napoleônica. A posterior descoberta de novos fósseis, ainda na Europa do século 19 e início do século 20, coincidiu com o avanço das teorias evolucionistas sociais no contexto político do colonialismo, ambos fundamentais para a constituição acadêmica da antropologia como disciplina científica. 

Naquele contexto, as populações que viviam nos países periféricos, como os aborígines australianos ou os indígenas da Terra do Fogo, seriam representantes, no presente, de formas de vida que já teriam se extinguido na Europa. Assim, quando o famoso paleoantropólogo francês Marcelin Boule publicou uma reconstituição de um indivíduo neandertal, feita a partir de ossos escavados no sítio de La Chapelle-aux-Saints, resultou uma imagem com aparência simiesca de um homem peludo, com olhar abestalhado e postura recurvada, enfim: um “homem das cavernas”. Sabe-se se hoje que aquele mesmo indivíduo sofria de artrite, que certamente provocava dores intensas, o que Boule não poderia perceber à época, mas influenciou sua famosa reconstituição.

Ao longo do século 20, a imagem dos neandertais como parentes distantes e ultrapassados na escala evolutiva foi paulatinamente se modificando: em 1939, o antropólogo Carleton Coon produziu outra ilustração, também famosa, desta vez de um neandertal barbeado e banhado, vestindo terno, gravata e chapéu, como qualquer cidadão de bem de qualquer cidade ocidental contemporânea. Na década de 1960, a descoberta de restos de plantas fossilizadas em sepultamentos neandertais na caverna de Shanidar, no Curdistão Iraquiano, mostrou evidências de comportamento simbólico associadas à colocação de flores nas sepulturas, talvez não muito distante de outros usos simbólicos de flores feitos pelos hippies.

Sapiens

A despeito dessas mudanças de perspectiva, é inegável que os neandertais desaparecem do registro fóssil no intervalo entre 30 mil e 20 mil anos atrás, mais ou menos à mesma época que ficam claras as evidências de ocupação da Europa por populações de Homo sapiens, a nossa espécie, vindas da África. Sim, a África, berço duas vezes da nossa linhagem evolutiva. 

É provável que a diferença mais marcante entre sapiens e neandertais seja a explosão de manifestações artísticas observada em sítios habitados por sapiens

A primeira, muito antiga, remonta a milhões de anos e deu origem a diversos hominídeos, inclusive os ancestrais dos neandertais que ocuparam a Europa há quase um milhão de anos, e o Cáucaso ainda antes, bem como partes da Ásia (neste caso os famosos “homens” de Java e Pequim). A segunda, mais recente, embora com cerca de 300 mil anos, deu origem ao Homo sapiens, espécie que posteriormente ocupou todo o planeta. 

O desparecimento dos neandertais é atestado pelo registro fóssil, já que diferenças morfológicas entre sapiens e neandertais são claras: estes tinham o cérebro maior e o corpo mais atarracado — talvez uma resposta evolutiva à necessidade de caçar animais muito maiores —, enquanto aqueles, ou nós mesmos, temos um corpo que tende a ser mais grácil e volume craniano em média ligeiramente menor. A essas diferenças juntam-se também outras, por exemplo, nos tipos de artefatos de pedra lascada associados a sítios com fósseis neandertais e sapiens. 

É provável, no entanto, que a diferença mais marcante seja a associação cronológica entre a verdadeira explosão de manifestações artísticas visíveis em sítios europeus e o período que coincidiu com a colonização do continente pelo H. sapiens. Tais manifestações incluem uma maravilhosa arte parietal preservada em cavernas como Chauvet — registrada no maravilhoso filme A caverna dos sonhos esquecidos, de Werner Herzog —, Lascaux, na França, ou Altamira, na Espanha, mas também a produção de objetos zoomorfos e antropomorfos em marfim, como as famosas “vênus”, estatuetas representando mulheres, encontradas na Europa central.

A associação entre um comportamento simbólico sofisticado e esses pioneiros sapiens europeus levou à formulação da hipótese, particularmente forte nos anos 1990, de que os neandertais tenham se extinguindo pela competição com esses primos afastados, africanos, que começaram a ocupar a Europa ao redor de 40 mil anos atrás. Essa hipótese, é verdade, sempre foi problemática: neandertais e sapiens conviveram aparentemente sem problemas por milênios no que é hoje a Palestina, do mesmo modo que pesquisas recentemente publicadas atestam a presença de grafismos em cavernas espanholas datadas em 65 mil anos. O livro aborda essa questão, explora várias hipóteses e propõe que mais de um fator, incluindo também a competição com sapiens, pode ter levado à extinção dos neandertais.

Código genético

A pá de cal sobre esse debate tem sido colocada pela publicação, na última década, de uma série de estudos sobre o DNA de diferentes neandertais. Tais estudos mostram que parte dos genes que compõem o DNA da nossa espécie resultam do cruzamento entre sapiens e neandertais no passado. Especificamente, a publicação, em 2017, do genoma de uma neandertal morta há cerca de 50 mil anos e enterrada na caverna de Vindja, na Croácia, indica que todas as populações contemporâneas com origem não africana têm entre 1,8 e 2,6% de genes que vêm dos neandertais. 

Entre esses genes — como uma espécie de vingança tardia — há variantes que podem estar associadas com males como cardiopatias, obesidade e depressão. Isso quer dizer que sapiens e neandertais não só conviveram, mas se acasalaram e deixaram crias férteis, algumas das quais talvez ancestrais dos leitores de origem não africana desta resenha. 

Neandertais nunca viveram nas Américas, África e partes tropicais da Ásia. A África tem a mais longa linhagem de ocupação relacionada à nossa espécie, remontando ao Sahelanthropus tchadensis, encontrado no Chade e datado em mais de 6 milhões de anos. Na Ásia, pesquisas genéticas e paleoantropológicas recentes têm indicado a presença de hominídeos previamente desconhecidos que eram contemporâneos dos neandertais. 

Sabe-se hoje que a ocupação das Américas data de pelo menos 25 mil anos, conforme sítios escavados no Piauí e em Mato Grosso

O caso mais famoso e polêmico é o do Homo sapiens altai, ou simplesmente identificado a partir do DNA extraído da falange de uma criança que morreu aos sete anos idade e foi enterrada na caverna de Denisova, na Sibéria, há cerca de 40 mil anos. Parece que esses hominídeos, conhecidos como denisovanos, ocuparam partes do continente asiático e deixaram uma herança genética notável, por exemplo, nas populações nativas da Austrália. É provável que, como os neandertais, denisovanos também tenham descendido do Homo heidelbergensis, espécie que ocupou a Europa e talvez partes da Ásia há 600 mil anos.

Dados genéticos recentes sugerem que os ancestrais dos povos ameríndios têm mesmo uma origem no nordeste da Ásia, a hipótese mais tradicional e robusta, em populações que se diferenciaram há cerca de 35 mil anos, se misturaram, ainda na Ásia ao redor de 25 mil anos atrás, com outras populações de origem eurasiana, e então colonizaram as Américas. Tal hipótese pode explicar a presença de genes de origem neandertal também entre populações indígenas das Américas, entre os quais o relacionado à incidência de diabetes tipo 2.

É preciso, no entanto, harmonizar os dados genéticos com as evidências arqueológicas e osteológicas que lhes são às vezes conflitantes: sabe-se hoje que a ocupação das Américas data de pelo menos 25 mil anos, conforme sítios escavados no Piauí e em Mato Grosso. Como explicar a ausência de sítios tão ou mais antigos no norte do continente americano, principalmente no Alaska? Do mesmo modo, qual o significado de fósseis como Luzia, descritos por Walter Neves e seus colegas, que têm a morfologia craniana diferente do padrão típico asiático, verificado entre os povos indígenas das Américas?

Tais discrepâncias e conflitos, longe de serem problemas, indicam um campo de pesquisa em efervescência, no qual diferentes linhas de evidência têm ampliado o conhecimento sobre nosso passado remoto. Apesar dos debates e diferenças, Neandertal, nosso irmão mostra que a humanidade tem uma longa e tortuosa história, marcada, por um lado, por conflito e competição, mas, por outro, por mistura e miscigenação. Talvez seja essa lição mais interessante que a paleontropologia nos traz: somos mestiços, e assim o seremos até que a próxima extinção nos carregue. 

Quem escreveu esse texto

Eduardo Neves

Professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, é autor de Arqueologia da Amazônia (Zahar).

Matéria publicada na edição impressa #12 jun.2018 em junho de 2018.