Repertório 451 MHz,
O grito de guerra de Davi Kopenawa Yanomami Transcrição
Leia a transcrição do episódio #63 do 451 MHz: O grito de guerra de Davi Kopenawa Yanomami.
19abr2022 | Edição #57Ouça mais Episódios
Paulo Werneck: Hoje é dia 19 de abril, o dia escolhido no calendário para a gente lembrar todos os povos indígenas de nosso país — povos que são os guardiões da rra e de grande parte da biodiversidade do planeta. São também os que mais sofrem com a degradação do meio ambiente e com o avanço do garimpo ilegal de ouro em suas regiões, sem falar de outras violações de direitos, como problemas com a demarcação de terras. Por isso, a gente antecipou o lançamento do 451 MHz para esta semana, para fazer data e tema coincidirem.
Não precisa ser Dia do Índio para falar de cultura indígena aqui no podcast. Quem já ouviu nossa entrevista com o Krenak e a antropóloga Aparecida Vilaça sabe que a gente sempre está trazendo esse tema, seja aqui no podcast, seja na 451, a revista dos livros.
Hoje, a gente vai falar do passado, presente e futuro dos nossos povos originários. Nosso convidado há muito tempo fala da queda do céu: a crença de que o céu entrará em colapso se um dia a floresta, o seu pilar, desaparecer. A floresta, que é tão importante para quem vive dela como é fundamental para quem mora longe dela, como a gente — na verdade, dependemos da floresta.
O 451 MHz de hoje conversa com o xamã Davi Kopenawa Yanomami.
O Davi Kopenawa Yanomami é reconhecido no mundo todo como um dos maiores líderes na luta pela preservação das terras indígenas. Ele faz parte do povo Yanomami, que ocupa a maior terra indígena do Brasil, nos estados de Roraima e do Amazonas, na fronteira com a Venezuela — o território yanomami inclusive se espraia também pelo território venezuelano.
Você já deve ter ouvido falar do Davi na literatura. Em 2015, ele lançou pela Companhia das Letras o livro A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. O livro foi escrito em parceria com o antropólogo francês Bruce Albert e é uma espécie de chamado para a preservação da floresta amazônica. Sete anos depois, o cenário é ainda mais preocupante. Hoje, os Yanomami enfrentam a segunda grande corrida do ouro, com pelo menos 20 mil garimpeiros ilegais dentro de seu território. Só para ter uma ideia: entre 2010 e 2020, a área ocupada pelo garimpo nas terras indígenas cresceu quase 500%. Além da destruição da biodiversidade, os garimpos ilegais, especialmente os de ouro, expõem os povos indígenas a uma série de doenças, como malária, Covid e difteria, além da contaminação por mercúrio. Isso sem contar o aumento da violência contra essa população.
Esse diagnóstico, justamente na data de hoje, pode parecer um pouco pessimista e até alarmista para você, que está ouvindo a gente agora. Então imagine só como fica essa situação para quem lutou durante a vida inteira pela preservação da terra e está vendo esse legado ser ameaçado por políticas públicas predatórias e por um governo que, como contou Davi, não se importa.
Mas a conversa que eu e a Paula Carvalho tivemos com ele também traz um pouco de esperança no que está por vir, com o surgimento de novas lideranças indígenas e a parceria com os não indígenas, ou seja, nós, os napa, numa corrente de luta pela nossa Terra Mãe. Awei?
Paulo Werneck: Que bom te ver, Davi. Muito obrigado por estar conosco aqui nesta entrevista, que será publicada no Dia do Índio, 19 de abril. O que significa essa data para você?
Davi Kopenawa Yanomami: O Dia do Índio é todo o direito do índio, não é dia. O povo da floresta não usa “dia”. Para mim, o Dia do Índio significa que os brancos atravessaram o mar num grande barco e chegaram à floresta no dia 19 de abril. Encontraram a terra onde meu povo está morando. Para mim, isso aí é o pensamento dos invasores que chegaram. E os invasores recentes botaram um dia. Nós não usamos dia, usamos a lua para [marcar] o dia, o mês e o ano. Nós, os povos indígenas do Brasil, não usamos dia, nem data, nem mês. Não consigo explicar o uso do “nosso dia” para os Yanomami.
Paula Carvalho: Oi, Davi, sou a Paula e também estou muito feliz por estar aqui para esta entrevista. Queria te perguntar como está a situação do garimpo na Terra Yanomami. A gente tem ouvido várias denúncias…
Davi Kopenawa Yanomami: Várias vezes já contamos para vocês. Meu filho também já explicou muitas vezes. Vocês moram longe do perigo, a gente mora na ponta. O garimpeiro invadiu a Terra Yanomami. Em 2021, 2022, piorou muito: cresceu o número de garimpeiros, trouxeram muitas máquinas, aviões para poder entrar na Terra Yanomami. Também trouxeram muitos helicópteros. Aumentou também o povo da cidade que apoia a entrada dos garimpeiros na Terra Yanomami. E aumentou muito a poluição. Chegou muita gente. Na beira dos rios, cavaram buracos. Está muita bagunça.
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Piorou muito este ano. Estão indo para a cabeceira do rio Uraricoera e até para as montanhas. Ficam trabalhando um mês, dois meses, aí acaba o ouro e abrem mais [buracos] em outro lugar, onde tem mais ouro. Está acontecendo isso na cabeceira do rio Uraricoera e na cabeceira do rio Mucajaí, nas cabeceiras do rio Apiaú e Catrimani. Essa região até a fronteira do Brasil e Venezuela já está toda destruída. É muito ruim, muito ruim mesmo.
Botaram a balsa, muitas balsas. Todo mês estão subindo de barco — um barco grande, levando mercadoria, gasolina. Estão levando até as mulheres para serem usadas pelos garimpeiros. O mercúrio está aumentando muito, quando chove, cai pelo rio. E a nossa saúde está toda estragada. Muita doença: malária, pneumonia, disenteria… E a outra doença que eles levam no corpo, transmitindo para nossas índias. Isso está acontecendo e a gente está denunciando. E vocês estão nos entrevistando para contar a situação do meu povo Yanomami. Sempre espero resultado de vocês, para pressionar as autoridades, os empresários. Os empresários que estão estragando [a terra indígena] moram aqui em São Paulo, que é a maior cidade.
Não está bom não, parente. A água está poluída. Uma parte [do território] ainda está boa, mas onde tem ouro continuam destruindo. Eu não vou dizer que vai parar, porque não vai. Porque Bolsonaro está junto, garimpando. Ele está aliado ao grande empresário, não vai nos escutar, não vai ler o seu jornal. Ele não está preocupado com meu povo Yanomami, não está preocupado com o rio, com a floresta, não está preocupado com a nossa saúde, do povo indígena.
Paulo Werneck: A gente está com você aqui justamente para denunciar e dar toda a força que pudermos para o povo Yanomami e todos os povos da floresta. O céu está caindo? Isso significa que nós estamos vivendo a queda do céu?
Davi Kopenawa Yanomami: O nosso planeta Terra, a Mãe Terra, é tão forte, mas está ferido. As máquinas e os venenos que o garimpo usa adoecem uma parte.
[O céu] não está caindo ainda porque meu povo ainda está vivo, eu ainda estou vivo. Só vai cair quando acabarem os Yanomami, acabar o rio, a floresta, nossos animais, nossa chuva, nossa lua, nosso sol. [Isso] vai acontecer, como meu povo fez um histórico e passou para mim, para eu falar para vocês sobre a queda do céu. Tendo Yanomami, vamos continuar vivos. E vocês continuam a pressionar os grandes empresários a parar um pouco [a destruição]. Então o céu ainda vai aguentar.
Paulo Werneck: Queria que você contasse como é o seu trabalho de xamã, o que faz no dia a dia desse trabalho.
Davi Kopenawa Yanomami: Continuo estudando para aprender mais a alma da terra, do rio, das montanhas. Quando entro na minha comunidade, Watoriki, junto com meus colegas, nós temos o dia para continuar a estudar e a trabalhar. Entrar em contato com o grande xapiri que está no planeta. Eu também preciso curar a pessoa que está doente, de malária, pneumonia. Agora, tem uma doença nova, que apareceu em 2020. A doença saiu de debaixo da terra, estava enterrada. As grandes máquinas fizeram um buraco, buscaram e saiu a doença. Se chama coronavírus. O coronavírus é muito forte, mas nós também somos. Eu e o pajé trabalhamos para o matar o espírito do mal. Esta é a minha missão, cuidar da saúde — da floresta, saúde do dia a dia — e também cuidar da nossa Mãe Terra. Essa é minha função, que nós aprendemos dos xapiris. Omama nos deu sabedoria para cuidar da Terra quando ela está precisando de ajuda.
Paula Carvalho: O seu filho, Dario, também é uma liderança indígena importante. Como você vê esses jovens líderes indígenas, essa nova geração que está surgindo?
Davi Kopenawa Yanomami: O jovem indígena é o nosso futuro, o futuro do povo. Em cada lugar, nós temos uma liderança jovem junto a nossa liderança na luta.
O meu filho está seguindo nosso caminho, nossa luta. Isso é muito importante hoje, em 2022. É importante ele aprender a falar melhor o português, aprender a usar o computador para mandar mensagens para vocês. [Para os] jovens indígenas Yanomami, estar sempre conversando com vocês é muito importante. E [também para] os outros parentes, Kayapó, Xavante, Tukano, Macuxi, Wapichana… Cada um de nós tem uma liderança para seguir e para conversar com vocês e com as autoridades não indígenas. Foi a natureza que escolheu [as lideranças] para elas seguirem o caminho da saúde, da defesa do povo, também para vocês, não só para os índios. Eles estão lutando junto, geral — geral Brasil e geral nosso mundo.
É muito importante os jovens aprenderem a usar o computador, o celular, para entrar em contato com vocês. Eu, Davi, não vou ficar como uma pedra, [viver] duzentos anos. Nós temos uma vida muito curta. Então nossos filhos vão ficar, vão continuar lutando, conversando com vocês, denunciando. Os brancos estão sempre contra nós, roubando nossas terras, sujando nossas florestas. São outros, no futuro, que vão continuar nesse caminho [de luta] para poderem sobreviver. Esse é o nosso pensamento.
Paulo Werneck: Davi, agora em 2022 estamos comemorando trinta anos da demarcação da Terra Yanomami. Como vai ser a festa?
Davi Kopenawa Yanomami: É importante celebrar. Vocês todos sabem que estamos preparando uma festa para comemorar a homologação da Terra Yanomami, há trinta anos. Vamos comemorar a homologação da terra que os brancos, as autoridades, registraram, o governo federal assinou, mas não está garantido. A terra não está sendo respeitada, mas vamos fazer uma festa porque o nosso território yanomami precisa se fortalecer. Vamos chamar os outros [povos] para comemorar e agradecer nosso território Yanomami. É isso que estamos preparando. No dia 23 de maio vamos chamar outros parentes para dançar e cantar, pedir a força da natureza para a gente continuar e não deixar meu povo Yanomami acabar.
Depois, vamos ter uma conversa entre nós: Fora garimpo, o Foro das Lideranças contra o garimpo. Para não ter garimpo em terra indígena. Todo mundo vai se pintar, pegar suas flechas e vamos conversar entre nós como vamos nos defender e enfrentar o homem que está mexendo conosco, o homem da cidade, e as grandes mineradoras que estão querendo colocar em nossa Terra Yanomami. E depois vamos ter a assembleia da Hutukara, pensar em quem vai ser o presidente da Hutukara, o vice-presidente, o tesoureiro…
Paulo Werneck: Conta para a gente: o que é Hutukara?
Davi Kopenawa Yanomami: Hutukara para você é mundo, o mundo em que nós estamos, a Terra. Para o Yanomami, Hutukara é a Terra, o céu, o universo. Ela é uma [coisa] só. A Terra cuida de nós, sustenta nossa saúde, quer nos fazer respirar, viver bem, dormir bem. Em língua portuguesa [Hutukara] é mundo.
Paulo Werneck: Bonito. E é o nome da associação de todos vocês, dos parentes todos, como vocês chamam, não é?
Davi Kopenawa Yanomami: É o nome que escolhemos para a associação. Esse nome é conhecido no nosso mundo dos povos da floresta, então colocamos esse nome no papel. Hutukara é uma arma dos povos Ye’kuana e de outros povos indígenas.
Paula Carvalho: Davi, como você aprendeu a falar português? E quantas línguas você fala?
Davi Kopenawa Yanomami: Falo shamatari, yawari, yanomama, xiriana, sanumá, ye’kiana… Falo sete etnias de língua materna.
Foi muito difícil aprender a falar seu idioma [português], sua língua nacional. Eu fui escutando o homem branco falar. Quando ele chega às comunidades, fala: “bom dia”, “como vai?”, “vamos trabalhar”, “vamos tomar banho”, “vamos comer”. Aí eu pegava as palavras. Fiquei pensando: “Poxa, esse é o homem branco que veio invadir as nossas terras… É muito difícil aprender sua língua”. Português é estrangeiro, vocês são estrangeiros para mim. Mas eu estava interessado em aprender sua língua estrangeira, o português. Deu certo. Eu nunca entrei na escola do governo, não tive oportunidade de entrar na escola dos brancos. Aprendi na prática: trabalhando, andando, viajando com o pessoal do governo, da Funai.
Paulo Werneck: E tinha muita igreja?
DW: Tem uma igreja de missionários no rio Toototobi, que fica perto da Venezuela. Tinha uma comunidade Marakanã e outra chamada Toototobi, que é onde eu cresci. Vi os missionários chegando. Eles são crentes, vieram ensinar os Yanomami a virar pastor, virar missionário. A outra igreja, dos padres, chegou a outras comunidades. Eles [os padres católicos] vieram só para olhar, cuidar de nós, não mexeram conosco. São da Igreja Católica. Eles respeitaram os Yanomami, mas as missões evangélicas não respeitaram: essa igreja dos americanos queria acabar com nossa língua, mudar nosso pensamento, nossos costumes. Awei?
Paulo Werneck: Davi, eu queria te perguntar também sobre uma amiga sua, a Claudia Andujar, que é uma grande artista e é uma pessoa muito importante. Eu queria saber do seu contato, da sua amizade com a Claudia Andujar.
Davi Kopenawa Yanomami: Eu conheci a Claudia Andujar. Nós chamamos napanhoma. Napanhoma é não índia. [Ela é] uma mulher branca que fugiu da guerra. Foi embora com a mãe, o pai dela morreu na guerra. Primeiro, ela foi para os Estados Unidos, para aprender inglês, depois veio para o Brasil, para Boa Vista e depois para a Terra Yanomami. Então ela chegou na missão Catrimani. É da igreja dos padres [católicos], dos missionários da Consolata. Eu estava em outra comunidade e a conheci em 1956. O pessoal da Funai falava que ela era mulher perigosa, que estava interessada em olhar a terra e a floresta para trazer o povo dela para tomar conta das nossas terras. Fiquei pensando: “Será que essa mulher branca é perigosa mesmo? Por que ela é perigosa?”. Eu fui assim me aproximando, perguntando se ela era realmente perigosa. Aí ela falou: “Olha, Davi, eu não sou perigosa, eu vim aqui para conhecer você, conhecer a realidade do povo Yanomami, escutar a sua fala yanomami. Eu aprendi um pouquinho, depois eu ensino para você… E você não está sabendo do que a grande mineração está atrás… O povo da cidade está querendo tomar as suas terras. É por isso que eu estou aqui na sua comunidade. Você pode conversar, você pode me perguntar o que estou fazendo, mas eu quero conhecer primeiro. Conhecer sua família, sua maloca, andar um pouco por seu lugar. E depois eu vou fazer meu trabalho, tirar foto”.
A Claudia Andujar é uma mulher corajosa, defende nossos direitos. Defende a terra, a saúde e nossos costumes. Ela fez um bom trabalho, uma boa luta, e conseguimos buscar nossa terra, a Terra Yanomami. Se ela não tivesse chegado a nossa comunidade, a nossa terra seria toda pequenininha. Foi ela que me ensinou, falando sobre o perigo da cidade. A cidade é muito perigosa para os índios. Por que é perigosa? Porque o homem branco quer pegar tudo. Matar os índios, matar a floresta e depois roubar a terra para ele usar, criar boi, fazer mais estrada. Isso eu escutei e aprendi com ela.
Paula Carvalho: Davi, o que você acha da Funai?
Davi Kopenawa Yanomami: A Fundação Nacional do Índio é do governo, é braço do governo, que a fundou para proteger o povo indígena, da floresta, das montanhas. Naquele tempo, quando nós éramos pequenos, eu acho que a SPI [Serviço de Proteção aos Índios], “espedoria”, matava muitos meus povos indígenas do Brasil. A SPI, “espedoria”, maltratou e matou milhares de povos indígenas nativos. Então é por isso que foi criada a Fundação Nacional do Índio, para proteger o resto do povo indígena que sobrou. Então foi muito importante. Agora, só ficou o nome da Funai. Nome bonito, mas as pessoas que trabalham dentro da Funai hoje são fracas, são vendidas. [A Funai] se vendeu para o grande empresário, o grande destruidor, A Funai hoje está com os militares, hoje é o governo militar, é Jair Bolsonaro. Todos os militares dentro da Funai são Bolsonaro. [A Funai] não olha mais para o indígena. A minha visão e a do povo indígena é que hoje ela não está mais interessada em ajudar, cuidar, proteger a nossa vida.
Paulo Werneck: O governo, inclusive, está querendo transformar os garimpeiros em “povos tradicionais”. Fizeram uma lei que diz que o garimpeiro é como se fosse um povo indígena. É uma provocação, parece, né?
Davi Kopenawa Yanomami: Para os povos indígenas, a grande mineração não vai trazer benefícios para o povo da floresta e da montanha. Eu sou contra a grande mineração, sou contra esse projeto. E quem escreveu [o projeto] foi o presidente da Funai; chama-se Romero Jucá. Ele escreveu sobre mineração. Aí o governo Bolsonaro aproveitou. Não é todo mundo que quer, é uma minoria, que eles usam. O governo brasileiro está usando o nome do meu povo indígena. O povo Yanomami não está pedindo para colocar máquina em terra indígena. Não pode! Ele fala que o Yanomami está passando fome, Yanomami está precisando isso, aquilo. Isso aí inventaram, não é verdade.
Paulo Werneck: Não é verdade a fome entre as crianças Yanomami, por exemplo?
Davi Kopenawa Yanomami: O meu povo Yanomami nunca passou fome, já se passaram quinhentos anos e o meu povo nunca precisou da comida da cidade. Mas em outras partes, onde os garimpeiros estão destruindo o igarapé, eles passam fome. Como em Uraricoera, Cajaí, Alto Catrimani, Surucucus. Onde tem garimpo realmente estão passando fome, porque acabaram com a comida deles. Destruíram o igarapé, mataram o peixe, envenenaram os peixes. A minha comunidade Yanomami não está passando fome, só vai passar quando a mineração entrar na terra indígena. Aí, sim, nós vamos passar fome. Vão morrer muitas de nossas crianças, nossas mulheres, nossos jovens. Vamos passar fome e ter doença. Como São Paulo, que também está doente. Água suja, imagina! Se o governo colocar a mineração na comunidade, eles vão nos matar. Isso é o que ele quer, esse é papel dele. Porque ele quer dinheiro. Essa aí é a minha fala para você.
Paula Carvalho: Davi, você já lançou um livro, A queda do céu, e um filme também, A última floresta. Qual é a importância de fazer filme, fazer livro?
Davi Kopenawa Yanomami: É importante fazer filme para mostrar onde sobrou a última floresta, a floresta amazônica. Só existe no Brasil, em outros lugares do mundo não tem floresta como nós temos. Eu tenho, você tem também. Não é só Yanomami que tem floresta. Foi muito importante fazer um filme para chamar atenção para o erro do desmatamento da floresta — esse trabalho não é justo, é ruim para mim e para ele, e para você. Então essa última floresta está andando, ajudando e protegendo nossa vida, do povo da floresta. Essa é nossa luta e nosso trabalho.
O livro A queda do céu está indo na ponta do caminho. Está ajudando também. Esse livro é o meu pensamento junto com um antropólogo que se chama Bruce. Ele também fala português e conhece a realidade de minha família, do meu povo, então eu pedi que ele me ajudasse a escrever. Não é para mim, é para você ler. Para você, teu filho, tua filha, professor, professora, antropólogo. É o histórico do que o branco vem fazendo: trazendo a doença, a violência. Tem histórico bom, tem histórico triste. A queda do céu chegou à universidade: o professor, a estudante mulher, o estudante homem estão lendo. Para a gente lutar junto, para o estudante da cidade mudar de ideia, para proteger o nosso planeta Terra.
Paulo Werneck: Você está escrevendo um livro novo?
Davi Kopenawa Yanomami: Estamos escrevendo um livro de novo. Um livro pequeno, mais fácil de ler. Esse livro se chama Xaraka [?]. O livro pequeno vai entrar no pensamento e até no coração da gente. Para a gente ficar com vontade de ajudar, de chegar aonde o povo está sofrendo, aonde está saindo sangue.
Paulo Werneck: Que bom, estamos ansiosos para ver. Davi, como é a educação? Tem escola? Quem é que ensina, quem é que dá aula para as crianças? Como é que funciona essa parte?
Davi Kopenawa Yanomami: Todos nós criamos as crianças. A mãe, o homem branco, o negro. [A criança] é como fruta, planta nova. Tem muita gente que está maltratando nossas crianças. Na minha comunidade, aonde o garimpo ainda não chegou, as crianças estão vivendo bem, com bastante comida: banana, macaxeira, cana, batata, cará, castanha, buriti, açaí e outros alimentos da floresta, [carne de] caça, peixe. Nós temos bastante comida. Mas em outras partes, as crianças estão tomando água suja e pegando muita doença, malária, estão ficando fracas. Quando o garimpeiro está perto, [a criança] não pode sair como saía antigamente.
A escola yanomami é para ensinar nossas crianças a andarem na floresta. Nós não temos escolas como vocês têm. Na escola yanomami, levamos a criança para o mato, para a floresta, e aí damos aula para ela: “Olha aqui uma árvore que dá castanha para comer. Esta água limpa é para beber, tomar banho, para viver bem. Esta fruta se chama pupunha, é para comer, para ficar forte, ter a sabedoria da árvore e comer a fruta para sonhar”. Essa é a escola para nossas crianças Yanomami.
E também ensinamos a flechar. Fazemos o arco e a flecha e damos para as crianças, para elas começarem a aprender a fazer a seus próprios [arco e flecha] e não precisarem mais do pai. As índias também. A mãe ensina a rachar lenha, a ralar mandioca para fazer beiju, a buscar água. Então essa aí é nossa aula magna. Chama aula magna, é sem lápis e papel. O nosso papel é a fala, para eles entenderem melhor. Não precisa comprar papel, não precisa comprar caneta, não precisa de dinheiro para eles aprenderem a correr, a respeitar, a andar na linha. É só com isso que a gente dá aula para nossas crianças Yanomami. Awei?
Paulo Werneck: Maravilha, queria ter estudado nessa escola aí, Davi. Ainda é tempo de aprender alguma coisinha com vocês.
Paula Carvalho: Já que a gente está falando de criança, queria saber: como foi a sua infância?
Davi Kopenawa Yanomami: (ri) Quando eu era criança? O mesmo que estou contando para você. Meu pai, minha mãe, meu tio cuidaram de mim porque eu era pequeno, não sabia nada. Não me botavam no chão, para eu não me machucar. Daí eu fui crescendo, comecei a andar com os caçadores, até encontrar a onça. Você conhece a onça?
Paula Carvalho: Nunca vi.
Paulo Werneck: Eu também não.
Davi Kopenawa Yanomami: Então, eles me levaram para a floresta e a gente encontrou duas onças andando. Eu aprendi assim: “Olha, isto aqui é onça, é perigoso, mata criança”. Eu pensava: “Poxa, acho que ela não vai me matar, não vai me morder, mas eu a mato”. E fui crescendo. Então eu fui até o pajé, meu tio, para cheirar yãkoana. Eu cheirava. Era para me acostumar e, quando ficasse grande, virar pajé.
Comecei a cheirar quando meu tio estava cheirando, e eu ficava treinando o meu nariz e o meu pensamento: “Como é que funciona esse rapé?”.
O rapé traz sabedoria para o jovem Yanomami. Só para homem, para mulher não. É a mulher que cuida de nós: do homem da cidade, do homem da comunidade e da criança também. Ela não pode sujar e poluir seu pensamento.
E eu fui crescendo, me pintando, dançando, gritando alegria para agradecer ao nosso criador, ao homem que nos criou. Nosso criador é muito inteligente, é muito honesto. Foi assim que aprendi, assim que xapiri me ensinou, que mamãe me ensinou.
Mamãe falava: “Meu filho, você vai nessa linha, nesse caminho de vida e sabedoria para andar sem doença, sem problema. O outro caminho não é bom: é onde anda o espírito mau, você fica doente, machucado, a cobra vai te morder”. Eu fui ensinado e preparado assim quando estava crescendo. A minha família e o meu povo me deixaram crescer para eu entrar na briga, conversar com vocês e contar a situação do povo Yanomami e Ye’kuana. Awei?
Paula Carvalho: Está certo!
Paulo Werneck: A minha última pergunta: o que vai ter para comer na festa dos trinta anos da homologação? O que vocês vão comer de gostoso?
Davi Kopenawa Yanomami: Ei! A comida de nossa terra é gostosa. Onde não tem veneno derramado, a comida nasce sadia. Na festa, vamos comer mingau de banana. São uns trezentos, quatrocentos litros de banana cozida numa canoa. Nós chamamos canoa uma árvore grande que a gente derruba e faz um buraco tipo canoa para cozinhar a banana.
Vamos tomar esse vinho de banana e vinho de açaí. Açaí original, regional. E depois nós vamos tomar vinho de macaxeira. Macaxeira que nossa Terra Mãe cuida é muito gostosa. E peixe para todo mundo comer, peixe sadio! Peixe sadio é muito gostoso. É uma piranha. Conhece piranha?
Paulo Werneck: Conheço.
Davi Kopenawa Yanomami: Piranha é bom para proteger o nosso sangue, para não pegar doença de branco e doente. E a anta, caça grande que também temos na floresta. Anta animal: é a anta, a titu, a paca. Isso é o que nós vamos comer na festa de comemoração dos trinta anos da homologação. Awei?
Paulo Werneck: Awei!
Paula Carvalho: Parabéns aí para vocês! Que a festa seja maravilhosa. Com certeza vai ser.
Paulo Werneck: Viva o povo Yanomami! Viva a luta dos povos indígenas! E a gente queria agradecer muito a você e a todos os seus parentes e ao pessoal que nos ajudou com esta entrevista. Muito obrigado. Boas festas e boa luta. A gente está junto com você, Davi. Obrigado.
Davi Kopenawa Yanomami: Eu também agradeço muito. Vamos juntos. Não se esqueça de nós, de que nós estamos juntos. O índio Yanomami não está sozinho, nós estamos com a força da natureza, a força dos xapiri, a força dos outros povos indígenas e das outras crianças da Europa. Nós estamos juntos para não deixar as autoridades colocarem máquinas na Terra Yanomami. Vamos gritar juntos para não deixar [isso] acontecer.
Paulo Werneck: Como é que grita?
Davi Kopenawa Yanomami: Quando o Yanomami está bravo, ele se pinta e pega esta borduna. Esta arma é como trovão e o relâmpago. Vamos nos pintar como ensinou o guerreiro da floresta, que nos ensinou primeiro nosso grito. A gente grita em direção ao inimigo. É o grito do guerreiro para matar o inimigo que está nos maltratando.
Matéria publicada na edição impressa #57 em fevereiro de 2022.
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