Repertório 451 MHz,

Em defesa do livro

Os escritores Jeferson Tenório e Airton Souza falam sobre o que está por trás da tentativa de censura aos seus romances premiados

22mar2024

Está no ar 451 MHz, o podcast da revista dos livros. Neste 108º episódio, os convidados são os escritores Jeferson Tenório e Airton de Souza. Nos últimos tempos, ambos foram objetos de ações de tentativa de censura, de restrição da circulação de seus livros. O romance O avesso da pele, de Tenório, foi recolhido de escolas públicas de Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná por, segundo seus governos, apresentar “linguagem imprópria”. Já Outono de carne estranha, de Souza, provocou uma crise no prêmio Sesc de literatura após o autor ler um trecho do romance. O episódio foi realizado com apoio da Lei de Incentivo à Cultura e da Companhia das Letras.



Jeferson Tenório é escritor, professor de literatura e editor da Diadorim, editora recém-criada da qual é um dos fundadores. Em 2020 ele publicou o romance O avesso da pele (Companhia das Letras). vencedor do Jabuti no ano seguinte e de muitas outras premiações. 

O escritor Jeferson Tenório [Lia Lubambo]

Airton Souza é professor de história e escritor com mais de cinquenta títulos publicados, muitos em editoras alternativas do Pará, onde vive. Em 2023, ganhou o prêmio Sesc, um dos mais importantes da literatura brasileira. Como parte da premiação, o romance Outono de carne estranha foi publicado pela Record.

O avesso da pele, de Jeferson Tenório

As ações para impedir a leitura de O avesso da pele fizeram as vendas do romance aumentarem 400% nas últimas semanas, segundo a editora Companhia das Letras. Também renderam protestos e atos de solidariedade a Tenório, que explicou por que não vê como uma notícia positiva esse interesse recente pelo livro.

“Não é bem assim pelas motivações que levam as pessoas a irem atrás do livro. Se elas procuram o livro por um evento extraordinário é uma coisa preocupante. Se esse evento tem a ver com censura, acho que a extrema direita tem sido mais eficiente em promover livros do que a ala mais progressista”, disse o escritor.

“É realmente um momento ambíguo porque eu fico feliz que o livro esteja chegando a mais pessoas, mas por outro lado é triste ver todas as informações falsas que têm saído nas redes e reduzindo o livro ao que ele não é.”

Diante de tantas fake news envolvendo seu romance, o escritor definiu O avesso da pele como “uma declaração de amor aos livros, ao conhecimento e à educação”. A história trata da relação de Henrique, um professor de literatura negro que é brutalmente assassinado pela polícia após uma aula, e seu filho Pedro, um estudante de arquitetura que rememora a história do pai. 

Para o autor, o livro alcançou toda a repercussão porque tem algumas chaves de leitura que tocam em temas sensíveis, como o racismo estrutural, a violência policial, a precariedade da educação e o luto. 

Leitura dramática

Vencedor do prêmio Sesc de Literatura, que revela e publica novos autores, Airton Souza viu sua conquista se transformar em problema ao ler um trecho do romance na cerimônia que marcava os vinte anos da premiação. Parte dos organizadores não gostou do que ouviu e, nas semanas seguintes, funcionários ligados ao prêmio foram demitidos (embora a entidade negue haver relação) e um documento interno foi divulgado com um alerta sobre o livro de Souza. 

O caso culminou com rompimento da parceria de vinte anos entre a editora Record, que publicava os romances vencedores do prêmio e o Sesc. “Diante de divergências com relação a novos caminhos do prêmio, as duas partes decidiram interromper o seu acordo”, anunciou a editora nesta quinta (21).

“O meu caso, em relação ao do Jeferson, tem um detalhe importante: ele tem a prova concreta [da censura]: um vídeo e documentos emitidos pelos Estados. No meu caso, eu não tenho uma prova concreta”, diz o escritor. “Até hoje não recebi nenhuma ligação de ninguém do Sesc para me explicar nada, para pedir desculpas ou negar. Ver livros sendo atacados é muito ruim.”

Filho de pai garimpeiro, Souza conta que o projeto do romance o acompanhava há muitos anos. A história narra uma relação entre dois garimpeiros em Serra Pelada. 

“A presença de homossexuais no garimpo era proibida. Então, a ideia de colocar dois homens vivendo uma relação amorosa era mostrar a resistência através do amor, como o amor pode resistir a esses processos de horror que acompanham o histórico desse país há mais de quinhentos anos.”

Outono de carne estranha, de Airton Souza

Jeferson Tenório contou que estava na cerimônia, durante a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), quando o escritor paraense fez a leitura. “As pessoas ficaram visivelmente comovidas. Me causou surpresa saber que a leitura tinha causado tanto incômodo.” Para o autor gaúcho, as ações de restrição dos livros é parte de um sentimento da nossa época, de recrudescimento de posturas conservadoras. 

Formação de leitores

Autor de cinquenta títulos, Airton Souza, que vive em Marabá, falou sobre as dificuldades de publicação e de circulação de livros num dos maiores estados do país. “A grande maioria dos meus livros foi publicado por editoras de Belém e eu estou a quinhentos quilômetros da capital. Então, até para circulação dentro do próprio estado a gente enfrenta dificuldade, imagine em nível nacional.”

Com a publicação do seu romance pela Record, o escritor contou que é a primeira vez que um livro seu está sendo comercializado nas plataformas digitais. 

Tanto Tenório quanto Souza falaram sobre a importância dos prêmios literários para revelar novos autores, caso do prêmio Sesc, ou para fazer com que novos leitores cheguem aos seus livros. Um processo que, na opinião do autor de O avesso da pele, está hoje centrado na figura do professor, mas que precisa de eventos de promoção dos livros e mais bibliotecas públicas, sobretudo nas periferias das grandes cidades.

Souza, que é professor de história em Marabá, contou que a escola em que leciona não conta com nenhum programa de promoção da leitura entre os estudantes. “Nunca passei por uma situação como essa que o livro do Jeferson sofreu porque os alunos não leem. Os pais acreditam que essa responsabilidade é do professor, mas não temos um acervo disponível para os estudantes.”

Leitores tardios

O escritor paraense falou de sua formação tardia como leitor. “Venho de uma situação de extrema pobreza, filho de pai e mãe analfabetos. O livro era algo muito distante da minha realidade até eu virar adulto. Eu já tinha publicado vinte livros de poesia quando me dei conta de que a leitura era algo importante para minha formação como sujeito e escritor.” 

Jeferson Tenório também contou ser um leitor tardio. “Fui ler meu primeiro livro aos 23 anos, o Feliz ano novo, do Rubem Fonseca, que me marcou muito e mostrou que a literatura também poderia ser feita de maneira mais coloquial, trazendo palavrões, cenas mais impactantes.” 

Feliz ano novo, de Rubem Fonseca

Só na universidade, no curso de Letras, o escritor diz ter tomado contato com a leitura dos grandes autores ocidentais, como Cervantes, Shakespeare e Homero. Ao final do curso, segundo Tenório, teve acesso à literatura negra. 

“Costumo dizer que a coisa mais importante na minha vida foi me tornar leitor. E cada percurso é único. Tive muitos alunos que não liam e na vida adulta se tornaram excelentes leitores. Todo tempo é tempo”, diz.

Mais na Quatro Cinco Um

O avesso da pele foi resenhado na Quatro Cinco Um em 2020, logo após a sua publicação, por Luciana Araujo Marques: “É impossível não reconhecer em nosso cotidiano cada uma das formas de expressão da letalidade do racismo trazidas à tona por Tenório, que não se intimida em colocar o debate no centro de sua obra de forma explícita, sem ser didático”. 

No mesmo ano, Jeferson Tenório escreveu um artigo para a revista dos livros sobre o assassinato de João Alberto Freitas, homem negro espancado até a morte em Porto Alegre em 2020. 

“Um homem está morto. E é um homem negro. No dia 19 de novembro de 2020 este homem negro foi ao supermercado Carrefour, discutiu com uma funcionária da loja. Logo a seguir foi escoltado por dois seguranças brancos até o estacionamento onde foi brutalmente espancando e morto. Fim da linha. Marcha fúnebre racista”, escreveu.

Tenório também participou da primeira edição d’A Feira do Livro, em 2022, em uma mesa com o também escritor gaúcho José Faleiro. 

O melhor da literatura LGBTQIA+

O episódio traz uma sugestão da escritora Gabriela Soutello, autora de Antes que eu me esqueça: 50 autoras lésbicas e bissexuais hoje, publicado pela Quintal Edições. Ela indica Zami: uma nova grafia do meu nome. Uma biomitografia, de Audre Lorde, publicado em 2021 pela Elefante com tradução de Lubi Prates. 

Zami: uma nova grafia do meu nome. Uma biomitografia, de Audre Lorde

“O livro é de 1982, mas chega ao Brasil só em 2021. É muito legal que editoras pequenas como a Elefante, a Bazar do Tempo, a Relicário e a Ubu criaram a coleção Audre Lorde fazendo esse trabalho de trazer suas histórias para o Brasil. Zami é um livro que me emocionou muito, com a história da autora desde muito pequena até os 23 anos, e os meus trechos favoritos são muito poéticos e políticos, como quando ela cozinha o seu prato caribenho favorito com a mãe e todas as vezes que ela se apaixona por uma mulher — e foram muitas”, conta a autora.

Confira a lista completa de indicações do podcast 451 MHz no bloco O Melhor da Literatura LGBTQIA+

O 451 MHz é uma produção da Rádio Novelo e da Associação Quatro Cinco Um.
Apresentação: Paulo Werneck
Coordenação Geral: Évelin Argenta e Paula Scarpin
Produção: Ashiley Calvo
Edição: Luiza Silvestrini
Produção musical: Guilherme Granado e Mario Cappi
Finalização e mixagem: Pipoca Sound
Identidade visual: Quatro Cinco Um
Coordenação digital: Bia Ribeiro
Para falar com a equipe: [email protected].br