Listão da Semana,
Três belos romances e outros nove lançamentos
Romances podem ser uma boa forma de mergulhar no isolamento em casa, nesses dias de calamidade que estamos vivendo
26mar2021 | Edição #43Três bons — e relativamente curtos — romances estrangeiros podem ser uma boa forma de mergulhar no isolamento em casa, nesses dias de calamidade que estamos vivendo. Chega às livrarias nesta semana o esperado romance de Sayaka Murata, Terráqueos, uma história sobre conformismo na sociedade e a sensação de deslocamento experimentada por uma parte das pessoas, que a autora define como “extraterrestres”. Os cristais do sal, uma história premiada, publicada na Colômbia, retrata a vida precária numa ilha do Caribe. E o também celebrado Ocean Vuong, vietnamita-americano, tem seu celebrado romance de estreia publicado no Brasil.
A cultura indígena no Brasil também está entre as novidades da semana, com duas reedições de peso: O cru e o cozido, primeiro volume do ciclo das Mitológicas, em que Claude Lévi-Strauss desenvolve sua interpretação de mitos ameríndios, volta às livrarias. E Quarup, romance de Antonio Callado sobre um padre que faz uma expedição ao Xingu, ganha edição com prefácios de autores indígenas: Daniel Munduruku e Márcia Kambeba.
Sete outros lançamentos completam a seleção: um clássico da luta antirracista, dois infantis, uma coletânea de Letrux, uma antologia de Florbela Espanca, uma interpretação do Brexit e um manual que explica tudo sobre séries de TV.
Viva o livro brasileiro!
Terráqueos. Sayaka Murata.
Trad. Rita Kohl • Estação Liberdade • 288 pp. • R$ 59
Mais Lidas
A escritora japonesa retoma alguns temas tratados em Querida konbini (2018), mas aborda a questão do abuso sexual num tom mais pesado: a narradora é uma menina que não pertence a este mundo e procura escapar aos planos do que chama de “Grande Fábrica”, formada por centenas de milhares de ninhos que geram pessoas condenadas ao trabalho. Para escapar do destino de fazer parte dessa fábrica de gente, ela deseja um casamento “limpo”, isto é, sem sexo.
Leia também: as resenhas do novo romance, na edição atual da Quatro Cinco Um, e de Querida konbini, fenômeno mundial com uma história de amor às avessas.
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Sobre a Terra somos belos por um instante. Ocean Vuong.
Trad. Rogerio Galindo • Rocco • 224 pp. • R$ 59,90/29,90
Destaque da nova geração de autores LGBT nos Estados Unidos, Ocean Vuong nasceu no Vietnã, numa fazenda de arroz, e obteve asilo com sua família em Connecticut, depois de sofrerem perseguição das autoridades comunistas por terem origem miscigenada — seu avô era um soldado americano que lutou na Guerra do Vietnã, quando conheceu a avó de Vuong, em 1967. Uma vez nos Estados Unidos, a família foi abandonada pelo pai do escritor. Depois de colecionar prêmios por seus livros de poesia, estreou no romance com este Sobre a Terra somos belos por um instante, uma comovente carta escrita pelo filho para a mãe analfabeta, que, por isso, jamais conseguirá lê-la. O romance recupera passagens da vida da família desde o encontro dos avós do autor no Vietnã, a chegada aos Estados Unidos, as surras que ele levou, a descoberta da homossexualidade e da morte e a descoberta do mundo da arte e da vida intelectual em Nova York.
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Os cristais do sal. Cristina Bendek.
Trad. Silvia Massimini Felix • Moinhos • 196 pp. • R$ 51
O livro ganhou a primeira edição do prêmio nacional de romance Elisa Mújica (2018), concedido à literatura de mulheres na Colômbia. Uma mulher retorna à ilha em que nasceu, no arquipélago de San Andrés, no Caribe colombiano, e reflete sobre a letargia, as preocupações e o isolamento de seus habitantes, num lugar em que a beleza natural parece ser uma espécie de consolo para tantas carências materiais. O conflito diplomático com a Nicarágua, que reivindica a posse sobre o arquipélago, e a afirmação da cultura local raiza são panos de fundo da história, que espelha os interesses jornalísticos da autora, colunista em veículos regionais e nacionais.
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A des-educação do negro. Carter Godwin Woodson.
Trad. Carlos Alberto Medeiros • Penguin Companhia das Letras • 200 pp • R$ 34,90
Escrito em 1933 pelo historiador afro-americano Carter Godwin Woodson (1875-1950), o primeiro filho de escravizados a obter o título de doutor em sua área e o segundo estudante negro a se doutorar em Harvard, o livro mostra como a educação tradicional (branca e racista) adotada nos Estados Unidos não levava em consideração a história dos negros em sua amplitude e tinha um impacto nefasto sobre a população afro-americana. Woodson formulou então um programa pedagógico que propunha uma ruptura com o sistema branco em todas as searas da sociedade (saúde, economia, direito, religião etc.), para com isso destruir os alicerces sociais do racismo.
Na introdução, a professora da Universidade Federal da Bahia Ana Lúcia Silva Souza perfila o autor e a obra e procura trazer as ideias de Woodson para o contexto brasileiro: “Também no Brasil temos que ser bem instruídos sobre nossa própria história negra”, escreve. “Carter G. Woodson enfatiza a necessidade de usufruir dos direitos conquistados. Esse é um ponto importante para o caso brasileiro, um país que tem ainda uma democracia jovem e frágil, na qual o direito a se ter direito ainda é muito seletivo, o que gera efeitos danosos.”
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O cru e o cozido. Claude Lévi-Strauss.
Trad. Beatriz Perrone-Moisés • Zahar/Grupo Companhia das Letras • 512 pp. • R$ 99,90
“O objetivo deste livro é mostrar de que modo categorias empíricas, tais como cru e cozido, fresco e podre, molhado e queimado, que a mera observação etnográfica basta para definir com precisão, sempre a partir do ponto de vista de uma cultura particular, podem servir como ferramentas conceituais para isolar noções abstratas e encadeá-las em proposições.” Assim Claude Lévi-Strauss define o propósito deste ensaio clássico publicado originalmente em 1964.
A tradução do primeiro volume do ciclo Mitológicas, anteriormente publicada pela extinta Cosac Naify, ganha prefácio inédito da tradutora Beatriz Perrone-Moisés, que qualifica o conjunto de quatro livros como “um projeto extraordinário e revolucionário”. “Dessa obra mestra pode-se dizer muita coisa — e sempre haverá mais. O fato é que só pode ser apreciada e fazer sentido na execução — como música. É preciso que cada leitora e leitor execute com Lévi-Strauss cada passagem do texto, tendo como instrumento sua mente, feita ‘lugar vazio onde algo acontece’”.
A música, aqui, de fato é um motor do pensamento: o volume é dedicado a ela, e os capítulos e partes são nomeados com gêneros musicais, do “Canto bororo” e das “Variações jê” à “Fuga dos cinco sentidos” e o “Concerto de pássaros”.
Leia também: resenha de Lévi-Strauss, biografia do “intelectual discreto e original” que percorre os tempos e espaços em que forjou seu pensamento.
Spoiler: a próxima edição da Quatro Cinco Um traz uma resenha de Pedro Paulo Pimenta sobre o livro: “Nessa ‘viagem pela terra redonda da mitologia’, Lévi-Strauss parte de ‘reflexões da matéria do mundo em que vivem os humanos, nas categorias empíricas que abrem O cru e o cozido’ e chega ‘ao nada, poeira silenciosa de estrelas a que somos lançados no final de O homem nu’”.
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Séries: o livro. De onde vieram e como são feitas. Jacqueline Cantore e Marcelo Rubens Paiva.
Objetiva/Grupo Companhia das Letras • 208 pp. • R$ 59,90
Neste misto de manual prático, livro de história e estudo de mercado, o escritor Marcelo Rubens Paiva e a executiva de TV Jacqueline Cantore mostram como surgiram as séries audiovisuais (primeiro no cinema, em 1912, depois na TV, na década de 1940), suas diferentes “eras de ouro” nos Estados Unidos e sua aclimatação no Brasil. Depois, com abundantes exemplos extraídos das séries mais populares (Os Sopranos, Big Bang Theory, Breaking Bad etc.), analisam a estrutura do gênero e mostram como elaborar um bom roteiro, explicando todas as fases de sua criação a partir de dicas de escrita dos grandes mestres do audiovisual e da literatura, do celebrado mentor de roteiristas Robert McKee a Ernest Hemingway.
O panorama do mercado de streaming e da TV aberta é, em si, uma série ainda sem desfecho: YouTube, Amazon, operadoras de celular, HBO, Apple, TikTok, Paramount são alguns dos muitos nomes citados entre os “novos players” que vêm entrando em campo nos últimos tempos e são analisados na última parte do livro, que certamente se beneficiou da longa trajetória de Jacqueline Cantore no mercado internacional (hoje ela está na Globo). Em apêndice, os autores apresentam tabelas com as melhores séries de cada ano segundo a imprensa norte-americana e um glossário com os principais jargões da indústria.
Leia também: as reflexões de Kalaf Epalanga sobre como a fluidez de gênero, o estilo visual complexo, a abundância de referências culturais e a aguda crítica social definem a era da televisão artística.
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Brexit: origens e desafios. Roger Scruton.
Trad. Alessandra Bonrruquer • Record • 196 pp. • R$ 49,90
O filósofo conservador britânico morto em 2020 expõe neste ensaio de 2017, escrito e publicado no calor da hora, as origens históricas e culturais da opção política feita pela maioria do eleitorado britânico em 2016, de deixar a União Europeia. No livro, ele especula sobre a identidade britânica “como corpo político” e sobre seu futuro “como povo único, sujeito a um único Estado de Direito”. Os capítulos discutem a esquerda e a direita na política do Reino Unido, a situação histórica do país em relação aos nacionalismos, em particular na Europa, “as raízes da liberdade britânica”, a globalização e o panorama internacional. Scruton foi um dos maiores defensores do Brexit, para ele um instrumento de proteção da identidade nacional, questão que segundo ele “está ligada à da soberania: quem nos governa, e de onde?”.
Leia também: resenha sobre como a obra de Scruton mostra as várias facetas do pensamento conservador, mas se exime de discutir a desigualdade social.
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Poemas e contos. Florbela Espanca.
Oficina Raquel • 120 pp. • R$ 30
A antologia reúne 42 poemas e sete contos da autora portuguesa (1894-1930), que escreve sobre o amor, a solidão, a angústia e o desejo sempre num estilo pós-romântico: “Há uma Primavera em cada vida:/ É preciso cantá-la assim florida,/ Pois se Deus nos deu voz, foi para cantar!/ E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada/ Que seja a minha noite uma alvorada,/ Que me saiba perder… pra me encontrar…”. Apresentação de Raquel Menezes.
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Quarup. Antonio Callado.
José Olympio/Record • 574 pp. • R$ 89,90
O quarup é “uma festa por meio da qual, ritualmente, os índios revivem o tempo sagrado da criação. Em meio a danças, lutas e um grande banquete, os mortos regressam à vida, encarnados em troncos de madeira (kuarup ou quarup) que, ao final, são lançados na água. O ritual fortalece e renova a tribo, que tira dele novo alento, transformando a morte em vida”, como define Lígia Chiappini no estudo crítico incluído na edição.
Publicada em 1967, a obra é um “romance de formação” que, tendo como pano de fundo a transição da era Vargas para a ditadura, mostra o processo de “deseducação” de um padre que se entrega ao sexo e se envolve com a luta armada. Todo o livro está atravessado pela contradição entre a utopia e o desencanto com a realidade. Traz uma crítica densa à intelectualidade brasileira da época e à repressão do regime militar (o que levou o autor a ser preso logo após a decretação do AI-5). Foi provavelmente o romance brasileiro mais lido em 1968. Guimarães Rosa mandou um bilhete a Callado elogiando o romance: “Quarup saiu grande na pintura e no desenho, nas minúcias e no todo, em fundo e na superfície. Colosso”.
A nova edição traz prefácios inéditos de autores indígenas: Daniel Munduruku e Márcia Kambeba, além do estudo de Chiappini e de um perfil do autor por Eric Nepomuceno.
Leia também: resenha de Tudo em volta está deserto: encontros com a literatura e a música nos tempos da ditadura. Entre a filosofia e o ensaio pessoal, Eduardo Jardim trata de Quarup e discute o desafio ao pensamento e à poesia naquele período.
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Tudo que já nadei: ressaca, quebra-mar e marolinhas. Letrux.
Planeta • 160 pp • R$ 34,90/ 13,99
Desde o copo americano estampado na capa até o oceano em fúria em dia de ressaca, a água preside a segunda coletânea de escritos da cantora e compositora Letícia Novaes, que foi sensação das pistas de dança nos idos de 2018 e 2019, quando ainda existiam pistas de dança. Neste livro esperado, ao menos pelos fãs — sua estreia em livro, Zaralha, publicada pela diminuta editora Mórula, chega a custar R$ 150 em sebos virtuais —, Letrux mescla prosa literária — a seção “Ressaca”, que ela define como “famoso textão” —, poemas — “Quebra-mar”, ou “famoso poema, mesmo”— e as “Marolinhas”, segundo a autora “algumas considerações anônimas”, poemas curtos entre o haicai, o aforismo e poema-piada à maneira da Poesia Marginal dos anos 1970. Assim como nas letras das canções, o leitor vai encontrar no livro o lirismo debochado (ou o deboche lírico?) de Letrux : “A água hoje está gelada. De doer o grelo. Acham que é só o saco. Mas o grelo também congela. Eu entro mesmo assim. E, quando saio do mergulho, me visualizo como uma grande bala Halls preta, tal qual monólito, plantada na areia”.
Leia também: Letrux escreveu na Quatro Cinco Um sobre a experiência de assistir a um show de Patti Smith em São Paulo: “Senti que estava tomando um passe”.
Ouça também: A artista foi uma das convidadas do nono episódio do 451 MHz, o podcast para quem lê até com os ouvidos. Na ocasião, falou sobre política, inspiração e a obra musical e literária de Patti Smith. Ouça o episódio, que também recebeu a escritora Djaimilia Pereira de Almeida e o historiador José Murilo de Carvalho. A Quatro Cinco Um também disponibilizou o áudio da entrevista com Letrux na íntegra.
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Uma planta muito faminta. Renato Moriconi.
Companhia das Letrinhas • 48 pp. • R$ 44,90
A inspiração para este livro, diz a nota biográfica sobre o autor, “surgiu quando seu amigo Paulo, dono de um restaurante vegetariano, engoliu uma mosca, sem perceber, enquanto bocejava”.
O ilustrador brasileiro conta a história de uma plantinha carnívora que vai crescendo e, sempre com fome, vai devorando todos os bichos, homens, alienígenas, anjos, bruxas, dragões que passam por sua frente, até que se depara com algo inesperado.
Leia também: resenha de O dia da festa, livro em que o artista plástico promove um encontro entre crianças e artistas como Tarsila, Rodchenko e Botticelli, e texto sobre a versatilidade do seu estilo, que se adapta a todo tipo de narrativa.
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Frida Kahlo e seus animalitos. Monica Brown e John Parra.
Trad. Laura Erber • Ils. John Parra • FTD Editora • 44 pp. • R$ 49
Conta a história da pintora Frida Kahlo e de seus bichinhos de estimação, todos eles muito especiais: dois macacos, um papagaio, três cachorros, dois perus, uma águia, um gato preto e um cervo.
Leia também: resenha da biografia ilustrada de Frida Kahlo, escrita por Violeta Ferrari Corullon, aos 13 anos, e artigo da autora mexicana Valeria Luiselli sobre o nascimento da Fridolatria.
Matéria publicada na edição impressa #43 em fevereiro de 2021.
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