Listão da Semana,

29 histórias da pandemia e outros 11 novos livros

A literatura inspirada por situações de calamidade atualiza-se com uma infinidade de histórias baseadas no Covid-19

21mar2021 | Edição #43

Boccaccio 2.0

Em março de 2020, a procura por livros sobre pandemias e confinamento começou a disparar nas livrarias do mundo todo — caso de títulos como A peste, de Albert Camus, O amor nos tempos do cólera, de García Márquez, e Decamerão, de Boccaccio. Um ano depois, a literatura inspirada por situações de calamidade atualiza-se com uma infinidade de histórias baseadas no novo coronavírus — entre elas as de O projeto Decamerão, do New York Times, que chega nesta semana às prateleiras das livrarias brasileiras.

No conto assinado pelo brasileiro Julián Fuks, o narrador se desespera com as falas estapafúrdias e violentas das autoridades — desdenhando mortes, contradizendo a ciência, pregando o uso de um elixir capaz de extinguir a pandemia. Poderia ser a história de qualquer um de nós. Seja por meio dos escritos de Boccaccio no século 14, seja nas releituras e criações do presente (destaque para o conto de Margaret Atwood, em que alienígenas são enviados à Terra como parte de um auxílio a crises intergalácticas), a literatura é um dos caminhos possíveis para tentar compreender e digerir, ao menos em parte, o complexo momento atual. “Esperamos que você o leia com saúde”, escreve Caitlin Roper, produtora executiva do New York Times, na apresentação do livro. Esse é o nosso desejo para você também.

E viva o livro brasileiro.

 

O projeto Decamerão: 29 histórias da pandemia. Diversos autores.
Trad. Isabela Sampaio, Luisa Geisler, Rogerio W. Galindo e Simone Campos • Ils. Sophy Hollington • Rocco • 336 pp. • R$ 79,90

Antologia com 29 contos encomendados pela The New York Times Magazine para grandes escritores da atualidade durante a pandemia da Covid-19. Entre os autores estão Margaret Atwood, Mia Couto, Leïla Slimani, Alejandro Zambra, Colm Tóibín e Charles Yu, além do brasileiro Julián Fuks. Os textos, originalmente publicados on-line, também têm como inspiração as cem histórias reunidas por Giovanni Boccaccio durante a peste retratada em O Decamerão (1353).

Trecho: “Então, num momento indefinível entre os primeiros raios do amanhecer e a luz ofuscante do meio-dia, o tempo deixou de fazer sentido. Não houve alarde, não houve ruído, nenhum estrondo que anunciasse algo tão atípico. Alguém poderia imaginar relógios paralisados, calendários embaralhados, dias e noites fundindo os seus limites e tingindo o céu de cinza, mas não houve nada disso. O tempo desprovido de sentido era um acontecimento coletivo, mas estritamente íntimo. Não provocava mais que um torpor, uma indiferença, um tipo peculiar e profundo de desalento.” — Julián Fuks em “No tempo da morte, a morte do tempo”.

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Triste fim de Policarpo Quaresma. Lima Barreto.
Antofágica • 432 pp. • R$ 49,90

Com apresentação de Criolo e mais de quarenta ilustrações de João Montanaro, esse clássico de Lima Barreto traz também ensaios críticos de Jorge Augusto e de Fernanda Felisberto e um ensaio poético de Ferréz. Lançado há 110 anos, o romance é um retrato crítico da sociedade brasileira nos primórdios da República que ridiculariza o nacionalismo patético dos intelectuais, a hipocrisia da elite e a brutalidade dos militares.

Ilustração de João Montanaro

Trecho da apresentação: “A invisibilidade do ser questionador, que é tido como louco ou insensato. O sufocamento da importância da cultura brasileira, do original da terra, que é ridicularizado. A falta de suporte e reconhecimento da produção artística e intelectual de pessoas negras. Todos esses temas, levantados pela vida e obra de Lima Barreto, dão a impressão de que o autor veio ao futuro, ao Brasil de 2021, e escreveu sobre o país em Triste fim de Policarpo Quaresma, romance de 1911. A narrativa de Barreto expressa a confusão imposta sobre a mente do povo que ama sua pátria, mas não ama o que ela é de verdade. O extremismo de Policarpo se desenvolve numa série de ações cheias de ingenuidade, e seus exageros servem para identificar, de forma irônica e sarcástica, as definições de pátria e nação. Ele faz, assim, uma distinção aos nacionalistas que, antes de amar o Brasil, amam o próprio nacionalismo.”

Leia também: resenha da biografia de Lima Barreto, as cartas que o escritor trocou com Monteiro Lobato e um roteiro de suas andanças pelos trilhos, bares e ruas do Rio.

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Filosofia e poesia. María Zambrano.
Trad. Fernando Miranda • Moinhos • 116 pp. • R$ 60

María Zambrano (1904-91) foi a primeira mulher a receber o Prêmio Miguel de Cervantes, um dos mais importantes prêmios literários da língua espanhola, em 1988. Discípula de Ortega y Gasset, apoiou a causa republicana durante a Guerra Civil Espanhola e, em 1939, precisou se exilar no México, onde publicou essa sofisticada reflexão sobre a chamada razão poética — algo entre a criação poética e as indagações de caráter filosófico. Durante o exílio, teve contato com outros grandes escritores, como Octavio Paz e Albert Camus. Retornou à Espanha somente em 1982, onde morreu nove anos depois.

Trecho: “Não se encontra o homem completo na filosofia; não se encontra a totalidade do humano na poesia. Na poesia encontramos diretamente o homem concreto, individual. Na filosofia, o homem em sua história universal, em seu querer ser. A poesia é encontro, dom, achado pela graça. A filosofia busca, é requerimento guiado por um método.” Leia o trecho completo.

Assinantes da Quatro Cinco Um têm 25% de desconto no site da editora Moinhos. Conheça o nosso clube de benefícios.

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O sussurro das estrelas. Naguib Mahfuz.
Trad. Pedro Martins Criado • Carambaia • 112 pp. • R$ 59,90/ 41,90 

Entre os textos do egípcio Naguib Mahfuz (1911-2006) encontrados após a sua morte, em uma caixa com a indicação “para publicar em 1994”, havia dezoito inéditos. A descoberta foi feita por um jornalista em 2018 e os contos chegam agora ao Brasil. Todas as narrativas se passam em uma viela típica, um microcosmo da sociedade egípcia, com duas personagens recorrentes: o xeique e o imã, arquétipos das autoridades comunitária e religiosa. Mahfuz é até hoje o único escritor de língua árabe agraciado com o Nobel de Literatura (1988).

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O milho na alimentação brasileira. Carlos Alberto Dória (org.).
Alameda Editorial • 168 pp.  • R$ 48

A historiografia romântica fixou a ideia de que o alimento básico dos índios brasileiros era a mandioca. Os relatos de viajantes que adentraram o interior e sobretudo os dados arqueológicos mostram, contudo, o extenso uso do milho da Amazônia até os pampas, em especial nos territórios ocupados pelos tupi-guarani. Os ensaios do livro narram a história natural do milho e da mandioca e o modo como eram vistos por cronistas, viajantes e pintores na era colonial e no século 19. Apontam também a adoção do milho pelos exploradores paulistas e sua importância nas culinárias sertaneja, caipira e cabocla, além das técnicas de manipulação do cereal e sua difusão pelo sertão nordestino, onde serviu de base para uma culinária rica e saborosa. O livro traz receitas típicas do semiárido brasileiro, como a sopa de milho verde, a dobradinha de mugunzá e a farofa de cuscuz com banana frita.

Carlos Alberto Dória, organizador do livro, é também colaborador da Quatro Cinco Umleia seus textos aqui. O livro A culinária caipira da Paulistânia, do qual é coautor, foi resenhado na edição 19 da revista.

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Cajubi: ruptura e reencanto. Diversos autores. 
Editora Incompleta • 130 pp. • gratuito

O 1º Festival Cajubi, ocorrido em fevereiro, teve como tema as ideias de ruptura com um mundo opressivo e segregador e reencanto pelos mundos perdidos e apagados ao longo da história. O livro reúne textos transcritos das palestras proferidas durante o evento, além de ensaios inéditos, assinados por Ailton Krenak, Elisa Lucinda, Luiz Antonio Simas, Márcio Seligmann-Silva, Tiganá Santana e Tom Zé. A publicação tem também obras visuais de sete artistas: Denilson Baniwa, Marcia Ribeiro, Marcola, Marina Wisnik, Ricardo Càstro, Rodrigo Garcia Dutra e Uýra Sodoma. O nome do festival é inspirado na lenda Karajá em que o pássaro Cajubi rasga as trevas com o seu voo, criando o dia e a noite.

Fotografia de Matheus Belém

Clique aqui para fazer o download gratuito do e-book.

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A história do mundo em cinquenta cachorros. Mackenzi Lee. 
Trad. Sofia Soter • Ils. Petra Eriksson • Companhia das Letras • 192 pp. • R$ 59,90

Como o cachorro de Graham Bell ajudou a inventar o telefone e o Lulu da Pomerânia de Newton quase comprometeu nosso entendimento sobre as leis da gravidade são algumas das histórias contadas nesse livro, que revisita alguns dos mais importantes acontecimentos da história mundial por meio das aventuras (reais, ficcionais ou uma mistura de ambos) de cães ligados a eles. As curiosidades envolvem os animais de Napoleão, Lord Byron e Nelson Mandela; e cenários como o Titanic, o espaço sideral e o topo do Everest.

Assinantes da Quatro Cinco Um têm 25% de desconto no site da editora Companhia das Letras. Conheça o nosso clube de benefícios.

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Atlas do corpo e da imaginação: teoria, fragmentos e imagens. Gonçalo M. Tavares.
Dublinense • 528 pp. • R$ 159,90

O escritor e filósofo português investiga o corpo em quatro seções de caráter ensaístico-poético: O corpo no método, O corpo no mundo, O corpo no corpo e O corpo na imaginação. Apoiado sobretudo em Bachelard e Wittgenstein, ele sustenta que “o pensamento é o movimento humano por excelência”, pois é “o movimento que o distingue dos outros seres vivos”. Tavares diferencia o “pensamento imaginativo” do “pensamento repetitivo” e mostra sua importância nas diversas esferas de atividade humana. A edição é fruto de sua tese de doutoramento, defendida em 2006, e tem capa dura, fitilho e imagens feitas pelo coletivo de artistas plásticos Os Espacialistas.


Fotografia do coletivo Os Espacialistas

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A decodificadora: Jennifer Doudna, edição de genes e o futuro da espécie humana. Walter Isaacson.
Trad. Rogério W. Galindo e Rosiane Correia de Freitas • Intrínseca • 576 pp • R$ 79,90/54,90

Autor de biografias de Albert Einstein e Steve Jobs, o ex-editor da revista Time narra a vida da bioquímica molecular Jennifer Doudna, que desenvolveu uma ferramenta capaz de editar a estrutura do DNA e, com isso, abriu caminho para o descoberta de novas vacinas (como muitas das que combatem a Covid-19). O CRISPR, como foi batizada, abriu um novo mundo de possibilidades na medicina ao mesmo tempo que levantou delicadas questões éticas. Em 2020, ao lado de sua parceira de pesquisa Emmanuelle Charpentier, Doudna ganhou o prêmio Nobel de Química.

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Fábulas. Natalie Portman.
Ils. Janna Mattia. Trad. Alice Sant’Anna • Rocquinho • 64 pp • R$ 69,90

Três conhecidas histórias ganham toque moderno ao serem recontadas em verso pela atriz e cineasta norte-americana de origem israelense: A lebre e a tartaruga, Os três porquinhos e A rata da cidade e o rato do campo. “Ler histórias é uma das primeiras maneiras de começar a praticar empatia. Nós sentimos pelos personagens das histórias da mesma maneira que sentiríamos por nós mesmos ou nossos próprios amigos”, afirmou Portman ao site da editora MacMillan. Segundo a ganhadora do Oscar, que dedicou o livro aos filhos Aleph e Amalia, as histórias carregam mensagens sobre como o trabalho árduo compensa, a abundância pode ser perigosa e a perseverança e a determinação ganham da arrogância e da pressa.

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A calça dos mortos. Irvine Welsh.
Trad. Ryta Vinagre • Rocco • 432 pp • R$ 89,90

O autor de Trainspotting (1993), filmado por Danny Boyle em 1996, já tinha revisitado parte da história da gangue de jovens escoceses viciados em heroína nos livros Pornô (2002) e O artista da faca (2018). No novo romance, o grupo volta a se reunir e acaba se envolvendo com o submundo sombrio do tráfico de órgãos. Mark Renton, interpretado nos cinemas por Ewan McGregor, ressurge como um bem-sucedido empresário de DJs, e o psicótico Francis Begbie (Robert Carlyle na adaptação cinematográfica) aparece aparentemente recuperado como um renomado pintor e escultor, casado e pai de duas meninas.

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Interseccionalidade. Patricia Hill Collins & Sirma Bilge.
Trad. Rane Souza • Boitempo • 288 pp • R$ 67

Uma investigação sobre o potencial do conceito de interseccionalidade para explicar como as diferenças de raça, classe, gênero, sexualidade, idade, capacidade e etnia influenciam as relações de poder na sociedade, e de que modo essas desigualdades se relacionam e se moldam reciprocamente. O livro mostra como essa ferramenta analítica consegue iluminar temas como os protestos sociais sob o neoliberalismo, o hip hop, as mídias digitais, o feminismo negro no Brasil, a violência e a Copa do Mundo de futebol.

No dia 31 de março, as autoras participam do ciclo de debates gratuito Por um feminismo para os 99%, organizado pela editora Boitempo, viabilizado com a Lei Aldir Blanc e com apoio da Quatro Cinco Um. Veja a programação completa.

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Quem escreveu esse texto

Marília Kodic

Jornalista e tradutora, é co-autora de Moda ilustrada (Luste).

Mauricio Puls

É autor de Arquitetura e filosofia (Annablume) e O significado da pintura abstrata (Perspectiva), e editor-assistente da Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #43 em fevereiro de 2021.