Coluna

Kalaf Epalanga

Um benguelense em Berlin

A revolução será televisionada

A fluidez de gênero, o estilo visual complexo, a abundância de referências culturais e a aguda crítica social definem a era da televisão artística

01nov2020 | Edição #39 nov.2020

Conversávamos sobre os episódios das séries televisivas de que ambos gostamos quando ela começou a abrir todas as gavetas do grande armário em mogno que está por detrás do balcão, em busca de um saca-rolhas. De quando em quando, voltava-se para mim, com os olhos sorridentes, demonstrando que continuava entretida pelo entusiasmo nas minhas palavras ao descrever-lhe o porquê de The Wire estar entre os cinco melhores produtos televisivos alguma vez criados nos eua. A série criada pelo escritor e ex-repórter policial David Simon partiu do formato clássico dos dramas policiais para se transformar em um ensaio abrangente e complexo de como o preconceito institucional e sistemático e as estruturas de poder opressivas afetam todo o tecido social. Uma obra-prima, pincelada com o mais fino humor ácido e dezenas de personagens icônicos — mas que, há dezoito anos, quando estreou, não teve o génio devidamente reconhecido e, durante cinco temporadas em que esteve no ar, nunca foi galardoada com um Emmy. A maior injustiça na nova era de ouro da TV.

O desaparecimento do saca-rolhas incomodava-a — via-se na forma como abria e fechava as mesmas gavetas, repetidamente —, no entanto, sua curiosidade ia além da superfície. Não se importou quando recuei até 1984, quando Simon, jornalista do Baltimore Sun, cobria a prisão de Melvin Williams, traficante local que viu sua ascensão ao mundo do crime ruir ao ser apanhado em um aparatoso sistema de escuta, liderado pelo detetive Ed Burns. Tanto o jornalista como o polícia eram obsessivos e moralmente íntegros, características perigosas para as carreiras que escolheram, o que fez com que se tornassem amigos e, mais tarde, parceiros criativos no livro The Corner, que se tornou uma minissérie para a HBO — e abriu caminho para que Simon apresentasse The Wire aos executivos daquele canal de televisão, inicialmente como uma drama e, depois, como algo audaciosamente novo: “Um romance para a televisão”.

O olhar dela me distraiu — não pelo sorriso que lhe rasgava os lábios, mas por sentir que, embora dominasse com destreza essa coisa do multitasking, senti-me egoísta — e suspendi a narração. Reparei que um cliente, na outra ponta do balcão, esperava ser servido. Questionei-me se seria também capaz de atender clientes, vasculhar gavetas em busca de objectos desaparecidos e ainda assim emitir opinião sobre como os dramas contemporâneos que vemos nos nossos ecrãs são tidos como “novelas visuais”. Traçar paralelos com as obras de romancistas do século 19, como Balzac, Dickens e as irmãs Brontë, tornou-se um 
exercício quase óbvio. Esta é a era da “televisão artística”, e os denominadores comuns são as múltiplas linhas de enredo, a dificuldade em classificar o gênero, o estilo visual complexo, a abundância de referências culturais e a aguda crítica cultural e social. 

Quando nos habituamos a trabalhar depois de o sol se pôr, tal como os polícias, médicos nas emergências hospitalares, bartenders, profissionais do sexo ou garis que limpam a cidade enquanto esta dorme, aprendemos a apreciar de maneira diferente a noite. Vaguear pelas ruas em busca de um lugar cuja musicalidade de vozes humanas nos convide a entrar e a nos deixarmos embriagar por uma babilónia de línguas e sotaques que não sabemos falar se torna uma quase-pulsão. Fico horas nesses lugares, a ouvir e a ver nos rostos das pessoas as suas histórias, até ser despertado por um qualquer evento inesperado. Foi assim que a conheci. Ouvi-a agradecer a um cliente japonês com um “obrigada” depois de este elogiar o vinho que ela lhe servira. A familiaridade na língua fez-me puxar conversa. Pedi para beber uma taça do mesmo vinho e, desde então, sempre que passo por Londres, surpreendo-a com uma visita.

Inédito

Foi ela que me apresentou Michaela Coel, de Chewing Gum, e Issa Rae, de The Misadventures of Awkward Black Girl, quando esta começava a fazer furor no YouTube, antes de Rae se juntar ao grupo de autoras de televisão negras responsáveis por criar um novo gênero de televisão, em que os limites impostos à feminilidade negra são desafiados e apresentados de forma nunca antes vista. Em Insecure, Rae é autora, produtora e protagonista da história centrada em uma jovem mulher que luta para estabelecer sua identidade enquanto navega por conflitos no círculo de amizades, no relacionamento insatisfatório e na carreira sem futuro. Tudo seguindo a tradição de séries como Curb Your Enthusiasm, The Office e Seinfeld — a autora procura encontrar o cômico no mundano, responde a questões existenciais como o que é ser uma jovem mulher negra comum. Para a minha companheira de conversa, que cresceu a ver Sex and the City, foi uma verdadeira revolução. Ver outras mulheres negras sendo peculiares e inseguras, permitindo-se serem imperfeitas e cômicas, cometendo erros e aprendendo com eles, a fez compreender e aceitar suas próprias inseguranças — mulher, negra, imigrante, saltitando de trabalho provisório em trabalho provisório até o sonho da música se tornar realidade.

Não me surpreenderia ver o Nobel de literatura ser atribuído ao autor de uma série televisiva

Com Michaela Coel, autora e protagonista de Chewing Gum, a questão surgiu em forma retórica: quando foi a última vez que vimos uma adolescente como a personagem Tracey Gordon, uma virgem ingênua de vinte e poucos anos de uma família religiosa, que tenta fazer sexo pela primeira vez e, no processo, descobre sua feminilidade e sexualidade como mulher negra no leste de Londres? A série é uma adaptação da peça que Coel escreveu como projeto de final de curso e é inspirada nas suas próprias experiências. Essa confiança na importância e no valor de compartilhar sua própria história foi reconhecida em 2016 quando ganhou os prêmios Bafta de Melhor Performance Feminina em Comédia e Talento Revelação, abrindo portas para os projectos seguintes, Been So Long e I May Destroy You — outra série baseada na sua vida, recriando a experiência traumática que foi ser abusada sexualmente enquanto trabalhava na segunda temporada de Chewing Gum.

Outro fator que define a aproximação entre a literatura e essa nova vaga de produtos televisivos é que muitos dos seus criadores e produtores têm formação literária. Antes de estudar cinema, Matthew Weiner, criador do célebre Mad Men, estudou filosofia, história e literatura na Wesleyan University. David Benioff e D.B. Weiss, criadores do aclamado Game of Thrones, eram ambos estudantes de literatura irlandesa. Ava DuVernay, cocriadora e realizadora da minissérie When They See Us, é formada em literatura inglesa e estudos afro-americanos. Esses são alguns exemplos que explicam a aproximação à literatura na forma como as estruturas narrativas, concepção de personagens e técnicas estilísticas são aplicadas nos dramas televisivos contemporâneos. 

Será que ainda veremos o Nobel ser atribuído ao autor de uma série, nos moldes do que aconteceu com Bob Dylan em 2016? A secretária permanente da Academia Sueca à época, Sara Danius, quando questionada sobre a escolha do autor de Blowin’ in the Wind e Hurricane, apontou que “se olharmos para trás, bem para trás, descobrimos Homero e Safo, que escreveram textos poéticos ou peças que foram feitos para ser ouvidos, apresentados, frequentemente junto com instrumentos, e é a mesma coisa com Bob Dylan. Nós ainda lemos Homero e Safo e gostamos”. Nessa lógica, atendendo que a produção televisiva começa a transformar e, em certa medida, democratizar a produção audiovisual de países periféricos e grupos sociais marginalizados, quebrando tabus e combatendo desigualdades, não me surpreenderia se Lena Waithe (The Chi) e Donald Glover (Atlanta) um dia ganhassem o prêmio Nobel de literatura.

Quem escreveu esse texto

Kalaf Epalanga

Escreveu Também os brancos sabem dançar (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #39 nov.2020 em outubro de 2020.