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Cinema Paraty

Em quatro dias, mostra revela a turistas e moradores uma cidade diferente retratada em clássicos do cinema brasileiro

01nov2023

Numa tarde de sábado em Paraty, duas vozes se destacam entre os ocupantes das mesas durante um almoço no restaurante Fazenda Bananal: “A poesia entra no cinema quando você encontra o mito no cotidiano, pois o mito é a síntese do cotidiano! Eu odeio alegoria por causa disso. Cinema é arte para expandir as ações”, diz uma delas. “O cinema é uma língua, cada emoção é um detalhe dessa língua!”, responde o interlocutor ao primeiro, que concorda: “Isso, isso, é sintaxe, é gramática…”.

Quem estivesse com os ouvidos atentos ia captar diálogos intensos como este. Os cineastas Bruno Barreto, 68, e Walter Lima Jr., 84, falavam sobre cinema com a naturalidade e a empolgação de quem dedicou a vida a essa arte. Diante deles, as atrizes Cláudia Ohana e Dandara Guerra, mãe e filha, acompanhavam sorrindo o desenrolar da conversa. Descobriram ali, inclusive, que Lima Jr. mantém um perfil no Instagram para comentar os filmes a que assiste.

O almoço era um momento de intervalo nas atividades da Mostra de Cinema de Paraty, realizada entre 26 e 29 de outubro para exibir diversos títulos filmados na cidade, entre eles Gabriela (1983), de Bruno Barreto; Ele, o boto (1987) e Brasil ano 2000 (1969), de Walter Lima Jr.; e Erêndira (1983) e A bela Palomera (1988), de Ruy Guerra, ambos com Cláudia Ohana no elenco.

As sessões aconteciam no Cinema da Praça, um casarão no centro histórico com uma sala de exibição de oitenta lugares que ficou lotada em quase todas as onze exibições programadas. Minutos antes de cada sessão, filas enormes se formavam na calçada, com turistas e moradores curiosos para ver as ruas de pedra da cidade retratadas na tela, em várias épocas e contextos. A chuva que caía esporadicamente colaborou para que mais pessoas encontrassem no cinema um abrigo estimulante.

A poesia entra no cinema quando você encontra o mito no cotidiano, pois o mito é a síntese do cotidiano! Cinema é arte para expandir as ações

O cineasta Luiz Carlos Lacerda, curador do evento, relembrou um dito popular que ele diz ter sido usado pelo poeta paratiense José Kleber para definir Paraty: “Se cobrir, vira circo; se cercar, vira hospício”. A frase, eternizada numa canção de Chico Mário em 1980, reverberou num dos títulos exibidos no sábado, Azyllo muito louco (1970). A adaptação de Nelson Pereira dos Santos para o conto “O alienista”, de Machado de Assis, encheu o Cinema da Praça e causou um misto de diversão e desconforto na plateia, que se surpreendeu com a maneira inusitada como Paraty aparecia na tela.

Em cena, Nildo Parente é o padre Simão Bacamarte, que cria um hospício na cidade e interna qualquer pessoa que ele considere minimamente louca. A certa altura praticamente todos os moradores são confinados no lugar. Boa parte da ação se passa no Forte Defensor Perpétuo, vila militar construída em 1793 e hoje um museu de equipamentos do Exército. Em Azyllo muito louco, o forte é o hospício criado pelo protagonista, uma crítica frontal de Nelson Pereira dos Santos à ditadura militar. 

A noite de sábado teve ainda uma sessão de Gabriela com ocupação máxima na sala. A plateia gargalhava a cada estripulia de Nacib (Marcello Mastroianni) em meio à sua paixão ardente pela personagem-título vivida por Sônia Braga. Depois da exibição, o diretor Bruno Barreto conversou com o público. Ele revelou que este é o filme que ele menos gosta entre os 23 que dirigiu desde 1973, quando fez Tati, sua estreia em longa-metragem.

“Entender por que e como contar uma história é algo que considero mais importante que a história em si. Quando aceitei fazer Gabriela, eu não tinha clareza do que me movia”, revelou o diretor. 

Barreto tinha sido contratado pelos estúdios da MGM para dirigir uma adaptação internacional do romance de Jorge Amado depois do imenso sucesso de sua versão de Dona Flor e seus dois maridos, lançada em 1976 (com a mesma Sônia Braga). Mesmo em dúvida sobre que rumos dar ao livro do escritor baiano, o diretor não cogitou recusar o trabalho com um gigante como Marcello Mastroianni, à época próximo dos sessenta anos.

O Mastroianni não tinha nenhum jeito de ser estrela, convivia tranquilo com a gente e dizia que aqui ninguém o assediava. Assédio mesmo só dos turistas

As filmagens de Gabriela ocuparam Paraty em 1982, quando a produção se instalou por meses na cidade. Mastroianni se encantou com o lugar e, segundo lembranças do comerciante Pedro Marton, o ator italiano terminava o expediente e seguia para o mar na companhia de pescadores.

“Ele se dava muito bem com o pessoal aqui. Gostava de beber cachaça e encontrar amigos na casa da família do [navegador] Amyr Klink”, conta Marton. “O Mastroianni não tinha nenhum jeito de ser estrela, convivia tranquilo com a gente e dizia que aqui ninguém o assediava, que o pessoal era respeitoso. Assédio mesmo só dos turistas”.

Copiões para a população

Assim como Pedro Marton, vários moradores compareceram à mostra nos quatro dias, cumprindo um dos objetivos da Casa da Cultura de Paraty de exibir a cidade nas telas àqueles que vivem nela. 

“A proposta era a de reapresentar Paraty em seu reflorescimento intelectual, que se deu no contato de cineastas que a descobriram nos anos 60 e 70”, diz Cristina Maseda, diretora da Casa da Cultura e coordenadora da mostra. “Eles ficaram encantados de ver como esse lugar preservava seus saberes e fazeres tradicionais mantendo a identidade cultural tão forte”.

Cristina destaca que, tão emblemático quanto reunir títulos tão significativos à história do audiovisual brasileiro ambientados na cidade, é vê-los projetados no Cinema da Praça. Antigamente funcionava ali o Cine São Jorge, fundado em 1949 e administrado por Pedro Stanisce, lembrado com carinho por antigos frequentadores da sala pelos clássicos programados ao longo de 25 anos.

No período de realização dos filmes incluídos na Mostra, entre 1968 e 1988, a sala também foi usada para cineastas que filmavam em Paraty assistirem logo aos copiões (versões brutas de imagens registradas na câmera). 

Luiz Carlos Lacerda relembrou que “seu” Pedro permitia às equipes assistirem aos copiões desde que ele pudesse cobrar ingressos, a valores simbólicos, dos curiosos locais que quisessem ver também. “A sala ficava lotada de gente assistindo a imagens sem som e sem tratamento, só para poderem se ver e ver a cidade nas telas”, contou Lacerda. Fechado em 1973, o Cine São Jorge foi posteriormente adquirido pela prefeitura, revitalizado e reaberto em 2018 como centro cultural e, claro, sala de cinema de programação regular.

Vampiros em Paraty

Contato local bastante procurado quando o assunto é pesquisa de locações, o barqueiro e professor de vela Dinho Silva é um agitador cultural do audiovisual em Paraty. Sempre acionado pelas equipes de produção para encontrar na cidade os cenários adequados a cada tipo de filme, ele tem a experiência de ter trabalhado na instalação de uma rede de TV local, na virada dos anos 80 para os anos 90, e de ter estudado cinema e televisão em Cuba.

Nas últimas três décadas, Dinho virou uma espécie de “antena” para quem precisa encontrar pessoas e espaços em Paraty para realizar filmes, séries e novelas. Foi assim que também esteve na pesquisa de locação para A saga Crepúsculo: Amanhecer (2011), conclusão da trama vampiresca protagonizada por Kristen Stewart e Robert Pattinson.

Paraty foi o cenário da lua de mel do casal, especificamente o Saco do Mamanguá, enseada a meia hora de barco pela costa. Na superprodução de Hollywood, o lugar aparece como a fictícia Ilha de Esme, onde se localiza um casarão dado de presente à mãe de Edward (Pattinson) e para onde ele leva a jovem Bella (Stewart) depois do casamento.

Minha função era mostrar aos produtores de ‘Crepúsculo’ que eles podiam filmar aqui. Fui seduzindo até se sentirem bem em Paraty

“Minha função era mostrar aos produtores de Crepúsculo que eles podiam filmar aqui. Antes de ir com a equipe até as possíveis locações, eu os levei a um jantar na Casa do Príncipe [casarão turístico pertencente à família Orleans e Bragança, descendentes da princesa Isabel], depois para conhecerem a atmosfera da cidade. Fui seduzindo até se sentirem bem em Paraty e então mostrar a eles as opções de locação”, conta Dinho.

Todas essas histórias e tantas mais se cruzaram nos quatro dias de mostra, influenciadas pelo vai e vem de espectadores no Cinema da Praça que, ao enxergarem Paraty enquadrada por olhares tão distintos, perceberam como se pode transformar a beleza histórica e natural da região em expressão artística.

A Mostra de Cinema de Paraty foi realizada pela Casa da Cultura como expansão da exposição “Para uma história cultural de Paraty: 1945-2019", patrocinada pela Petrobras por meio do Programa Petrobras Cultural.

Quem escreveu esse texto

Marcelo Miranda

É jornalista, crítico e curador de cinema.