Cinema,

Anatomia de uma outra queda

Mais do que culpa ou inocência, precisamos refletir sobre a dinâmica de poder em um casal heterossexual

27fev2024

“O que aconteceu foi que… a minha mulher é artista e eu sou artista e tivemos uma briga sobre eu ser mais, é… exposto ao público do que ela e ela foi pro quarto e eu fui atrás e ela caiu da janela.”

Essa é a gravação de uma chamada de emergência feita pelo escultor americano Carl Andre em setembro de 1985. Ela foi reproduzida no julgamento dele pela morte da esposa, a artista cubano-americana Ana Mendieta. Ela tinha 36 anos. Ele morreu aos 88, em janeiro de 2024.


Fotografias de Ana Mandieta são exibidas em exposição na Galeria Nacional de Arte Moderna em Roma, em 2010 [Franco Origlia/Getty Images]

Ana Mendieta nasceu em Havana, numa família abastada que, ao menos inicialmente, apoiou a revolução de Fidel Castro. Quando as coisas começaram a azedar na ilha, ela e uma irmã foram mandadas sozinhas para os Estados Unidos, num programa do governo americano que recebia adolescentes cubanos. Foram parar em Iowa, estado cuja população é até hoje quase 90% branca. As meninas passaram de uma vida protegida, numa família grande e unida, para uma perambulação entre campo de refugiados, instituição para jovens infratores, casa de acolhimento e colégio interno. Sofreram muito racismo e xenofobia. A mãe e outra irmã só se juntariam a elas cinco anos depois, quando o pai foi preso pelo regime.

Ana cresceu, foi para a faculdade e virou artista plástica, como sempre quis. Trabalhou com fotografia, filme, escultura e performance, explorando os temas do exílio, da imigração, do deslocamento e da violência, especialmente contra a mulher. Em um de seus primeiros trabalhos, recriou a cena de um recente estupro e assassinato de uma aluna da mesma faculdade, tendo como suporte o próprio corpo, manchado de sangue e com as mãos amarradas. Em outro trabalho da mesma época, derramou sangue de boi por baixo da porta de casa e ficou do lado de fora, de onde filmou e fotografou a reação dos passantes àquele fluido viscoso que escorria calçada abaixo.

Quando a polícia chegou, Carl abriu a porta e pediu licença para ir lavar as mãos 

Ao longo de sua curta carreira, Ana Mendieta usou barro, areia, pedra, carvão e sangue como materiais artísticos. Muitas obras foram realizadas diretamente na paisagem: esculpindo na parede de uma caverna como se fossem petroglifos, cavando diretamente no solo ou na areia, ou usando água e fogo; muitas são silhuetas do corpo feminino sendo queimadas. É um trabalho que pode, com tranquilidade e sem medo do clichê, ser chamado de visceral. É muito impressionante, interessante, intrigante e bonito.

Em 1978, Mendieta foi para Nova York buscar seu lugar no mundo da arte. Lá, se juntou à galeria feminista A.I.R. (Artists in Residence) e fez a sua primeira exposição individual, em 1979. Foi aí que, com a carreira em ascensão, conheceu Carl Andre, escultor muito conceituado e poderoso no mundo da arte, com carreira sólida, porém estagnando. Sua última individual tinha sido em 1970, e o movimento minimalista, do qual ele era um dos líderes e fundadores, teve seu apogeu em fins dos anos 50, começo dos 60, e já não era a vanguarda.

Ana tinha um metro e meio, era bem magrinha, bonita e estilosa, cheia de vida, um desses carismas que a gente reconhece até em foto 3×4. Alegre, gostava de dançar e de cantar. Carl era treze anos mais velho, grandão, volta e meia descrito pelos amigos como um urso. Usava uma barba comprida de personagem de Turguêniev e só andava de macacão tipo jardineira, daqueles com alças, fivelas e muitos bolsos — de dia, à noite, no bar da esquina ou em coquetéis. E também durante seu julgamento pela morte de Ana.

Brigas épicas

O contraste se estendia também à arte. Ela fazia performances em que usava o próprio corpo, a terra, a natureza, a paisagem. Ele fazia esculturas minimalistas, tentando reduzir o objeto artístico ao mais simples possível: blocos de madeira e placas de metal simplesmente dispostas no chão, pilhas de tijolos. Não podiam ser trabalhos mais diferentes.

A paixão foi imediata e intensa. Ambos tinham temperamento forte. Até amigos o descreviam como um sujeito arrogante, que ficava insuportável quando bebia. E beber era praticamente um ofício naquele grupo de artistas da Nova York nos anos 70 e 80. Ela também não era nada fácil.

Os amigos contam de brigas épicas que os dois tinham em público, em geral no fim da noite, já bêbados, para o constrangimento de quem estava em volta. Ele era mulherengo e vinha de dois casamentos anteriores. Ana descobriu casos dele mais de uma vez e se magoou muito. Diziam que ele já tinha sido violento com companheiras anteriores, mas nunca foi denunciado. Eram só boatos.

Ana e Carl ficaram juntos por seis anos, entre muitas idas e vindas. Em janeiro de 1985, depois de uma separação por causa de uma das muitas traições (às vezes simultâneas), Ana e Carl fizeram as pazes. Para surpresa absoluta dos amigos, resolveram se casar. Poucos meses depois, em setembro, ela caiu da janela do apartamento dele, onde não chegou a morar, no 34º andar do número 300 da Mercer Street, no bairro de Greenwich Village, em Nova York.

Quando a polícia chegou, poucos minutos depois da chamada de emergência — “O que aconteceu foi que… a minha mulher é artista e eu sou artista e tivemos uma briga sobre eu ser mais, é… exposto ao público do que ela e ela foi pro quarto e eu fui atrás e ela caiu da janela.” —, Carl abriu a porta e pediu licença para ir lavar as mãos. Os policiais notaram que ele tinha arranhões ainda frescos no nariz e nos braços. Carl então contou aos policiais que ele e Ana estavam vendo um filme que espelhava a vida dos dois, só que ao contrário. Ela ficou irritada, quis ir dormir e queria que ele fosse junto. Ele não quis e continuou vendo TV. Uns quinze minutos depois, foi até o quarto ver como ela estava. Não a encontrou, então voltou para a sala e assistiu aos últimos dez minutos do filme. Voltou de novo para o quarto, e como ela não estava lá, fez a chamada de emergência.

Já era a segunda vez que ele dizia, sem ninguém perguntar, que de certa forma era responsável pela morte dela

Notem que esse relato já é diferente do que se ouve na gravação, feita no calor da hora. Mais tarde ele o modificará novamente: ambos estavam dormindo, houve uma queda repentina da temperatura, Ana se levantou para fechar a janela e caiu acidentalmente. Levando em conta que o parapeito era alto e ela tinha um metro e meio, seria difícil acreditar nessa versão. Ela teria subido no parapeito do 34º andar para fechar a janela? Não faz sentido. Ainda assim, em situações de estresse as pessoas se confundem, não lembram direito o que aconteceu, os dois tinham bebido. Foi dado a ele o benefício da dúvida.

Os policiais perguntaram se ele a tinha visto pular, ele respondeu que não. Se ele tinha olhado pela janela — de novo, não. Então como sabia que ela havia pulado? “Eu só sei.”

Enquanto esperavam a viatura que o buscaria, Carl tirou um livro da estante, um catálogo do seu trabalho, e o mostrou aos policiais, explicando que era um artista importante: “Eu sou um artista muito bem-sucedido, entende, e ela não era. Talvez tenha sido isso o que a perturbou. Então, de certa forma, eu a matei”. Já era a segunda vez que ele dizia, sem ninguém perguntar, que de certa forma era responsável pela morte dela. A primeira fora explicando que talvez devesse ter ido dormir na hora em que ela quis. Como não foi, “de certa forma” ele a teria matado.

Três anos depois, em 1988, Carl André foi julgado e absolvido. Não foi um tribunal do júri: o advogado dele abriu mão desse recurso e escolheu o julgamento apenas por um juiz, o chamado bench trial. O advogado achou que a figura de Carl, de jardineira e barba de mujique, não inspiraria simpatia nos jurados. Um juiz tenderia a se ater às provas e a levar mais a sério a presunção de inocência, sem se perturbar com o acusado o tempo todo lendo o New York Review of Books durante as sessões. Ainda por cima, o juiz designado para o caso perdera a esposa poucos meses antes e poderia ser simpático ao luto de Carl.

A defesa explorou a origem cubana da vítima, seu temperamento latino, considerado inflamado e instável, o uso de sangue em sua arte, o que demonstraria tendências suicidas e atração pela morte. Também demonizaram seu interesse pelas religiões afro-cubanas. Sua morte foi descrita como uma última e desesperada performance artística.

‘Não! Não! Não!’

Muitas evidências foram consideradas inadmissíveis, por serem circunstanciais ou de testemunho indireto, o que significa que o juiz não podia levá-las em conta: os arranhões no rosto, nos braços e nas costas de Carl, que poderiam ser indícios de luta corporal; o medo de altura de Ana, conhecido por todas as suas amigas; o fato de que ela confidenciara na véspera à irmã e a uma amiga que queria o divórcio e que estava reunindo provas da infidelidade de Carl para entrar com o processo. Houve ainda uma voz de mulher gritando “Não! Não! Não!” logo antes da queda, ouvida por um homem que passava na calçada. As muitas brigas públicas do casal também não foram levadas em conta, nem as contradições entre as diferentes versões de Carl para o que se passou naquela noite.

O teor de álcool no organismo dela era relativamente alto (segundo Andre disse aos policiais, naquela noite, ela não estava bêbada). O teor de álcool no organismo dele não foi medido, apesar das muitas garrafas vazias que os policiais encontraram no apartamento. Uma amiga de Ana, advogada, telefonou sem saber que ela tinha morrido e foi atendida pelo advogado de Carl, que lhe deu a notícia. Ela estranhou o advogado estar sozinho no apartamento, enquanto Carl estava na delegacia. O local era, afinal, a cena de uma morte suspeita. Deveria ter sido isolado pela polícia para que as evidências fossem preservadas e pudessem ser investigadas.

O filme vencedor da Palma de Ouro em Cannes retrata uma situação paralela, com os gêneros invertidos

Naquela noite, só tinha os dois no apartamento. Ninguém sabe ao certo o que aconteceu. Carl Andre morreu em janeiro deste ano sem jamais ter tocado no assunto publicamente. Nunca saberemos com certeza se ela pulou, se caiu ou se ele a matou. Ele foi absolvido, mas isso nos basta? E se tivesse sido condenado, nos bastaria? O que nos basta nesses casos?

O filme vencedor da Palma de Ouro em Cannes no ano passado, Anatomia de uma queda, retrata uma situação paralela à vivida por Mendieta e Andre, porém com os gêneros invertidos. No longa, da diretora e roteirista francesa Justine Triet, uma escritora de sucesso é acusada de matar o marido, um escritor fracassado, empurrando-o da janela do chalé onde moram . [Alerta de spoiler daqui para a frente.]

Na história, não sabemos ao certo o que aconteceu. As evidências da perícia são questionáveis, e todo o resto é circunstancial. Justine Triet disse em várias ocasiões que essa ambiguidade é proposital, e que o tema que a interessa não é culpa ou inocência, mas a relação de poder no casal heterossexual. A busca, segundo ela utópica, por uma igualdade entre homem e mulher no lar, entre pai e mãe, entre dois profissionais. Ela acha que essa tensão sempre existirá, e o que precisamos é aprender a lidar com ela de um jeito novo.

No julgamento do filme, ouvimos a gravação feita pelo marido de uma briga do casal na véspera da morte, justamente sobre isso: sobre Sandra (Sandra Hüller) não abrir mão do tempo de que precisa para escrever, trabalhar. Samuel (Samuel Theis), o marido, se sente injustiçado porque sobra para ele, segundo sua interpretação, o trabalho de cuidados com a casa e com Daniel, o filho de onze anos, cego depois de um acidente. Ela o acusa de usar o filho como desculpa para não escrever e ser um covarde por não ter a coragem de tentar realizar suas ambições, de ter fracassado como escritor. Já ele a acusa de ser egoísta, de sacrificar o casamento e o filho, de ser ambiciosa, de o usar como apoio e de só fazer o que quer, na hora que quer.


Sandra Hüller em cena do filme Anatomia de uma queda, de Justine Triet [Reprodução]

É uma cena incômoda, que nos coloca na posição de voyeurs, como se estivéssemos espiando a briga de um casal de verdade, só que com os papéis de gênero trocados. O homem é quem reclama de ter sacrificado sua vocação e seu talento pela família. E é ela quem não cede, quem diz que sim, é ambiciosa, quer escrever e fazer sucesso, e vai continuar trabalhando para isso. Ele que se adapte, em vez de se sacrificar. Para ela, o sacrifício que ele alega estar fazendo é na verdade uma escolha dele para se furtar ao risco do trabalho criativo. Para ele, é uma escolha dela, à qual a família é obrigada a se submeter.

A ficção de 2023 repete muitos dos temas do caso real de 1985: a dinâmica de gênero em um casal heterosesxual, questões de poder, ambição, inveja, vocação, talento, ciúmes e morte. Mais uma vez, há uma absolvição. E, mais uma vez, isso nos basta?

Certamente não basta para as muitas artistas feministas que passaram a protestar em frente a museus e galerias de arte que exibem obras de Andre. Em 1992, a primeira vez desde a morte de Mendieta em que uma obra dele foi incluída numa grande exposição nos Estados Unidos (ele continuou a circular, expor e vender suas obras na Europa sem dificuldades por décadas), um piquete foi organizado em frente ao Guggenheim SoHo, em Nova York, por um grupo de mulheres manchadas de vermelho segurando faixas com a pergunta “Onde está Ana Mendieta?”. Isso passou a se repetir sempre que se falava em Carl Andre. Em 2014, quando a prestigiosa Dia Art Foundation organizou uma retrospectiva do artista, as manifestantes jogaram vísceras e sangue de galinha em frente à galeria. Depois do #MeToo, protestos do tipo passaram a acontecer também em Londres e Berlim.

O que pensamos dessas duas histórias diz muito mais sobre nós do que sobre as tramas em si

Hoje, a obra de Ana Mendieta é estudada em escolas de arte e admirada por artistas, curadores e colecionadores. Especialmente mulheres, mas não só. Há muitos ensaios e estudos acadêmicos sobre o trabalho dela, e obras suas estão presentes nos principais museus, coleções particulares e galerias do mundo. Para o público leigo, tem um podcast no estilo true crime chamado Death of an Artist, de 2022, produzido pela Pushkin Industries, a produtora do escritor americano Malcolm Gladwell. E também um livro de 1990, Naked by the Window, ou “nua na janela”, do jornalista Robert Katz. O título perturbador foi tirado de versos de um poema de Carl Andre que diz:

& she stood naked by the window, waiting to be struck, perhaps where her white breasts were red

Em tradução livre: “& ela de pé, nua na janela, à espera do golpe, talvez onde seus seios brancos estavam vermelhos”.

Carl Andre também faz parte do cânone. Já era o caso quando conheceu Ana. Seu lugar na história da arte é indiscutível. Mas sua vida nunca mais foi a mesma. Ao menos não no seu país de origem. Por anos, ele foi xingado na rua, no mesmo bairro onde antes era idolatrado. Mulheres que o cruzavam pela vizinhança faziam questão de atravessar a rua ostensivamente. Sua existência passou a ser muito mais isolada. Casou-se novamente em 1999 e viveu o resto da vida no mesmo apartamento onde Ana morreu. E isso, nos basta?

O que pensamos dessas duas histórias, a da vida real e a da ficção, diz muito mais sobre nós do que sobre a história, ou as tramas, em si. Podemos achar, como eu acho, que Carl Andre matou Ana Mendieta, e que Sandra Voyter não matou Samuel Malenski. O caso ficcional é suicídio, o real é feminicídio.

Mas isso não passa de uma opinião, a minha opinião, baseada no que vi e li nos dois casos, e também nas minhas crenças e no meu conhecimento de mundo. Especialmente o meu conhecimento sobre a dinâmica de gênero e poder num casal heterossexual numa sociedade patriarcal. Mais do que culpa ou inocência, mais do que condenação ou absolvição, cadeia ou liberdade, é sobre essa dinâmica que precisamos refletir. É isso que precisa mudar.

Quem escreveu esse texto

Branca Vianna

É fundadora da Rádio Novelo e apresentadora do Rádio Novelo Apresenta.