Cinema,

O doce exílio que transformou Paraty numa cidade de cinema

Mostra exibe no município fluminense treze longas e curtas-metragens que ilustram sua vocação para ser cenário — do paradisíaco ao apocalíptico

26out2023 | Edição #75

Nos primeiros minutos de Gabriela, produção internacional dirigida por Bruno Barreto e lançada nos cinemas em 1983, o ator italiano Marcello Mastroianni anda por ruas identificadas num letreiro como “sertão da Bahia, 1925”. Quem já viajou para o litoral sul do Rio de Janeiro não se deixa enganar: a caminhada do personagem Nacib ao som dos acordes instrumentais de Tom Jobim é pelas vielas de pedra de Paraty, a 250 quilômetros da capital carioca e cenário paradisíaco escolhido pelos realizadores de Gabriela para fazer as vezes de algum vilarejo no passado do nordeste brasileiro.

 Sonia Braga e o italiano Marcello Mastroianni no cartaz de ‘Gabriela’, que levou imagens de Paraty para o mundo [Divulgação]

O filme de Barreto foi o trabalho de maior repercussão mundial a eternizar imagens da cidade fluminense e faz parte de um contexto cultural efervescente que, desde a primeira metade do século 20, tornou Paraty uma locação desejada por cineastas no país. Segundo dados oficiais, atualmente somam-se 35 filmes e 21 novelas gravados por lá.

A Mostra de Cinema de Paraty, que começa na quinta-feira, 26, e segue até domingo, reúne uma pequena fatia dessa história num retrospecto de treze curtas e longas-metragens filmados na cidade num período restrito a duas décadas, entre 1967 e 1988. A escolha do recorte, feita pelo curador Luiz Carlos Lacerda, definiu-se pelo período em que o município recebeu filmes de nomes fundamentais no processo histórico do cinema brasileiro, como Walter Lima Jr., Nelson Pereira dos Santos, Bruno Barreto e Ruy Guerra.

Os títulos terão exibição única no Cinema da Praça, simpática sala de oitenta lugares localizada no centro histórico, num sobrado restaurado. Em quatro dias, a programação organizada pela Casa de Cultura de Paraty alterna sessões e bate-papos com realizadores, elenco e equipes. Estão confirmadas presenças da atriz Cláudia Ohana, que atua em Erêndira (1983) e A bela Palomera (1988), ambos de Ruy Guerra; e dos diretores Bruno Barreto e Walter Lima Jr., que também exibem no festival alguns de seus trabalhos.

Distopia tropicalista

Os filmes na Mostra ilustram uma trajetória local de ambientação cinematográfica em Paraty que remonta a 1948, ano de produção do primeiro longa-metragem filmado lá. Estrela da manhã é um obscuro trabalho de Oswaldo de Oliveira (sob o pseudônimo Jonald), com roteiro de Jorge Amado e elenco com Paulo Gracindo e Dorival Caymmi. Mas a Mostra se inicia de fato em 1967, com Brasil ano 2000, de Walter Lima Jr., distopia tropicalista estrelada por Anecy Rocha na qual Paraty se torna cenário de um país devastado pela Terceira Guerra Mundial.

Feito durante a ditadura militar, Brasil ano 2000 é representativo tanto de seu período histórico quanto da própria escolha de locação ter sido feita exatamente na segunda metade da década. Foi depois do golpe de 1964 que Paraty se tornou, como gosta de dizer Luiz Carlos Lacerda, o “doce exílio” de uma geração de artistas que se deslocaram para a cidade em fuga da repressão do regime autoritário, especialmente a partir de 1968.

“Essa coisa de Paraty virar um polo de produção aconteceu muito em função do isolamento geográfico da cidade”, relembra Lacerda, diretor e roteirista, conhecido por amigos e conhecidos como Bigode. De fato, para chegar a Paraty, era necessário sair do Rio de Janeiro por via terrestre e pegar uma barca em Mangaratiba até chegar à ilha. Ou então encarar a estrada de chão batido e lama que ligava o continente ao litoral sem nenhuma estabilidade ou segurança. “Num certo sentido, isso nos protegia dos militares e transformou Paraty numa espécie de paraíso para todos nós”, exalta Bigode.

O cineasta de 78 anos é o nome mais recorrente a assinar filmes registrados em Paraty. Só na Mostra ele está com quatro títulos: os curtas O sereno desespero (1971) e O acendedor de lampiões (1980) e os longas Mãos vazias (1971) e O princípio do prazer (1979), além de ter participado da produção de diversos outros títulos lá realizados. No “doce exílio” do qual fala Bigode, cineastas principalmente vindos do Rio de Janeiro levavam seus projetos à cidade litorânea. Rapidamente formou-se por lá um grande “estúdio ao ar livre”, por onde transitavam técnicos, atores, atrizes, diretores e roteiristas, enquanto moradores e comerciantes locais constantemente eram convocados como figurantes.

Essa coisa de Paraty virar um polo de produção aconteceu muito em função do isolamento geográfico da cidade. Isso nos protegia dos militares e transformou Paraty numa espécie de paraíso para todos nós.

Dessa fase estão no evento dois filmes emblemáticos de Nelson Pereira dos Santos: Azyllo muito louco (1970) e Como era gostoso o meu francês (1971), feitos praticamente em sequência com a mesma equipe de produção e elenco, incluindo artistas que se dirigiam a Paraty para se refugiar. “Quando filmamos Azyllo muito louco, o que aparecia de gente perseguida pela ditadura na cidade que acabou virando ator no filme…”, relembra Bigode, assistente de direção do longa. “Muitas pessoas do meio de cinema iam se exilar em Paraty nessa época e, logo que chegavam, o Nelson já colocava como algum personagem de camisa-de-força nas cenas de hospício”.

Adaptação livre do conto “O alienista”, de Machado de Assis, Azyllo muito louco é apontado pelo curador como o trabalho mais singular dessa Paraty cinematográfica. Não só pelas cenas no Forte Defensor Perpétuo – que reproduz a casa de loucos descrita por Machado –, mas principalmente pelo fato de o diretor integrar ao roteiro “causos” ouvidos pela cidade e personagens inéditos na história original que foram descritos a Nelson pelo poeta e músico José Kleber.

Ser iluminado

Referência local e principal ponte artística entre os exilados e o município, José Kleber nasceu em Paraty em 1932 e é o nome mais proeminente quando se pesquisa o “doce exílio” a partir dos anos 60. Agitador cultural, boêmio e figura querida entre moradores da cidade, Kleber escreveu e narrou o curta-metragem documental Vila de Nossa Senhora dos Remédios de Paraty (1968), dirigido por Pedro Rovai e um dos títulos na programação da mostra. O filme registra o trabalho da artista plástica paulista Djanira, que mantinha um ateliê na barra do Corumbê.

Amigo de Nelson Pereira dos Santos, Zé Kleber estimulou o realizador de Vidas Secas (1963) a filmar Azyllo muito louco em Paraty . Zé Kleber está no elenco, assim como em Como era gostoso o meu francês e principalmente em Mãos vazias, adaptação de um romance de Lúcio Cardoso no qual o poeta paratiense é protagonista, ao lado de Leila Diniz.

Existe uma Paraty que surge nestes nossos filmes despreocupada com a cenografia, mais caiçara, mais natural. Eu prefiro assim do que tentar fazer a cidade parecer um estúdio de Hollywood

Morto em 1989, Kleber é lembrado pela cidade como “um ser iluminado”, nas palavras de seu sobrinho Lúcio Cruz, artista plástico que tem um ateliê em Paraty e é herdeiro intelectual e afetivo do tio, irmão de sua mãe. “Ele ajudou Paraty a se abrir para o mundo”, diz Cruz. O pintor e gravurista acumula boas histórias dessa relação, tão próxima a ponto do tio e ele dividirem um quarto em casa por algum tempo.

Cruz recorda, por exemplo, quando sofreu um acidente e quebrou o fêmur aos oito anos de idade, no começo da década de 70. Ficou um ano acamado e contava com a presença constante do tio e das visitas ilustres que iam almoçar com a família, como a própria Leila Diniz. Ou quando o rapaz frequentava, já adolescente, a comunidade hippie fundada por Kleber numa fazenda próxima que recebia vários dos “exilados” para viverem a vida livre.

Todo esse contexto, mais a geografia estonteante, favoreceu Paraty como cenário de cinema ao longo dos anos. Para Bigode, mais interessante que pensar a cidade através dos filmes é pensar os filmes através de Paraty. “Existe uma Paraty que surge nestes nossos filmes despreocupada com a cenografia, mais caiçara, mais natural. Eu prefiro assim do que tentar fazer a cidade parecer um estúdio de Hollywood”, diz o curador.

Uma peculiaridade extra na programação da Mostra de Cinema de Paraty é a recorrência de adaptações literárias, provável consequência de uma geração formada por livros referenciais e em busca de recontextualizá-los num outro cenário político e cultural. Além de Machado de Assis (Azyllo muito louco) e Lúcio Cardoso (Mãos vazias), comparecem nos créditos dos filmes Hans Staden (Como era gostoso o meu francês), Jorge Amado (Gabriela) e Gabriel García Márquez (A bela Palomera e Erêndira).

A programação completa pode ser consultada no site da Mostra de Cinema de Paraty.

Quem escreveu esse texto

Marcelo Miranda

É jornalista, crítico e curador de cinema.

Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.