Cinema,

Semear a memória

Realizado por duas mulheres, documentário preserva lembranças de jornalista que mostrou o que a ditadura de Pinochet tentava esconder

28fev2024

Em uma imagem desfocada, vemos uma mulher sentada na cama conversando com um homem deitado ao lado dela. “O que aconteceu?”, “O que fazemos aqui?”, ele pergunta. “Estou aqui para que você se lembre quem foi Augusto Góngora”, responde ela. Esta é a cena de abertura de A memória infinita, novo documentário da cineasta chilena Maite Alberdi, único filme dirigido por uma mulher latino-americana concorrendo ao Oscar de 2024.

Na sequência, imagens de arquivo apresentam o casal que conversa de maneira amorosa e divertida. Ela é Paulina Urrutia, atriz e ex-ministra da Cultura do governo de Michelle Bachelet. Ele é Augusto Góngora, jornalista que dedicou boa parte da trajetória profissional à criação e difusão de imagens que o Chile de Pinochet escondia com a censura. 

A opressão e a pobreza resultantes da ditadura sanguinária do país eram retratadas nas reportagens feitas por Góngora para o programa Teleanálisis, gravado em fitas vhs que eram distribuídas clandestinamente a organizações de oposição ao regime Pinochet. Além do programa — cujo arquivo foi declarado parte do projeto Memória do Mundo, da Unesco — Góngora organizou, ao lado de outros autores, a coletânea Chile: la memoria prohibida, crônicas da realidade política e social da ditadura daquele país. Estamos diante de um homem que dedicou a vida à construção da memória. 


Cena do documentário A memória infinita, de Maite Alberdi [MTV Documentary/Divulgação]

Porém, acometidas pela doença de Alzheimer, as lembranças de Góngora se esvaem. A enfermidade avança nas cenas e acompanhamos, pelo olhar sensível da diretora, o cuidado de Paulina com o marido ao longo desse processo. Eles conversam em um restaurante, caminham juntos, participam dos ensaios da nova peça de teatro que ela prepara, observam um eclipse solar.

Essas imagens captadas por Alberdi constituem a primeira metade do documentário. Com a pandemia, as filmagens são interrompidas. “Agora nós é que temos que fazer o filme”, anuncia Paulina, na cozinha, em meio ao som do rádio que comenta o número de mortos no Chile em consequência da covid-19 naquele dia. A câmera está desfocada, o som tem ruídos e a linguagem do filme se aproxima das imagens caseiras dos dois, gravadas em viagens,
almoços de família e na construção da casa onde vivem. 

Percebemos então que as imagens de planos fechados da primeira parte do documentário, provavelmente feitas com zoom, pareciam próximas, mas são distantes. Até ali, uma equipe filmava o casal, de fora, descortinando com rigor técnico os cômodos da residência e tomando um visível cuidado com a luz. Já as cenas desfocadas feitas por Paulina, com luzes baixas e pouco contraste, trazem planos mais abertos — para que os dois caibam no quadro —, mas se revelam muito mais próximas.

Borrões

Por que naquela situação, em um cenário assustador como o da pandemia e diante da clara degradação da memória do companheiro, além de seguir cuidando de Góngora com carinho e risadas diárias, Paulina assume a tarefa de continuar as filmagens? Ainda mais tendo se oposto à ideia do filme em um primeiro momento, quando Alberdi mostrou interesse em retratar o casal? Diante da insistência do marido, Paulina compreendeu que se tratava de seu último ato de coerência — colocar-se novamente em frente das câmeras, trabalhando pela memória, desta vez para expor outro assunto proibido: o Alzheimer.

Apesar do cansaço e da dor pela “morte em câmera lenta” causada por essa doença, Paulina se manteve firme no projeto do documentário. Ao assumir as filmagens, ela radicalizou a proposta: convenceu-se da importância de fabricar a memória, mesmo — ou sobretudo — em circunstâncias adversas, e o filme cresce quando ela assume a câmera. Suas imagens turvas remetem aos borrões das lembranças de alguém em estágio avançado do Alzheimer; confundem-se com as memórias de Góngora e com o que lhe restam: o amor e o afeto.

Em um momento, vemos o jornalista chorar ao se lembrar de um amigo que lutava contra a ditadura e foi barbaramente degolado. Em outra cena, ele coloca a mão no peito de um modo que deixa claro que está inundado de amor por Paulina. A memória infinita de Góngora talvez seja aquela de seus sentimentos. E é a partir dos resquícios de suas recordações que a narrativa do documentário é estruturada.

O filme também nos toca, brasileiras e brasileiros, pelas características da nossa história

Em uma entrevista, a diretora contou que o filme nasceu de fato na montagem, que não está organizada de maneira cronológica ou seguindo um arco narrativo clássico. São os vaivéns da própria memória de Góngora que constituem o fio dessa crônica de uma deterioração cujo fim todo espectador já sabe qual é, mas cuja trama é tecida pelas imagens gravadas pelas duas mulheres, a esposa e a documentarista.

Em várias ocasiões, o chileno repete o próprio nome, para não esquecer de si mesmo. “Sou Augusto Góngora”, diz com firmeza. Vemos então imagens de arquivo do jornalista no discurso de lançamento de seu livro, afirmando que reconstruir a memória emocional da população chilena é fundamental depois de tantos anos traumáticos. De volta à vida do casal, acompanhamos Paulina lendo para ele o trecho de abertura desse livro: “Sem memória não sabemos quem somos, sem memória divagamos desconcertados sem saber para onde ir, sem memória não há identidade”. 

É justamente quando Góngora diz “já não sou” que a documentarista decide encerrar o filme. Este é o limite: não colocar em cena um Góngora que já não é nem está, um Góngora sem memória, sem identidade.

Coragem de lembrar

Além da beleza do amor de Paulina e da coerência do jornalista em seu ato final, o filme nos toca, brasileiras e brasileiros, pelas características da nossa história e do nosso contexto. Às vésperas do aniversário de sessenta anos do golpe militar de 1964, devemos também lutar pela memória histórica de nosso país. Como sugere Góngora, “reconstituir a memória não para ficar ancorado no passado, e sim para enfrentar as dificuldades do presente, para não repetir os mesmos erros”. Ou seja, para construir o futuro. 

Os responsáveis pela ditadura brasileira jamais foram julgados pelos crimes que cometeram. Diante dos ataques à democracia que vivemos nos últimos anos, em especial no 8/1/2023, faremos justiça ou seguiremos escolhendo ser um país sem memória?

Na dedicatória feita ao dar seu livro de presente a Paulina, no primeiro ano de namoro, Góngora escreveu que naquela obra “há dor, mas há também muita nobreza. Os que têm memória têm coragem e são semeadores”. O mesmo vale para o filme. Para nós, fica o convite para que sejamos, também, semeadoras e semeadores de futuro. Para que lembremos quem fomos e quem somos.

Quem escreveu esse texto

Paula Sacchetta

É documentarista.

Jonas Waks

É doutor em filosofia da educação (USP e Paris 8).