A paixão segundo Luiz Fernando Carvalho

Cinema,

A paixão segundo Luiz Fernando Carvalho

Longa baseado em romance de Clarice Lispector apreende a fala que busca dar forma ao caos da narradora de 'A paixão segundo G.H.'

10abr2024

A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, foi publicado no final de 1964. Poucos meses depois, José Américo Motta Pessanha, na revista Cadernos Brasileiros de maio-junho de 1965, assim descreveu o modo de ser da narradora-protagonista: “G.H. fala, fala. Ininterruptamente, sem capitulação, sem desistência […] G.H. é fala. E tão radical que é filosófica. É linguagem de redescobrimento de filosofia, que estava soterrada”. Não se trata, pois, de um mero monólogo. É fala que se constitui como um pensamento que, em última instância, chega a refletir sobre si próprio. No final do livro, a narradora oferece uma justificativa para seu falar incessante:

Minha voz é o modo como vou buscar a realidade; a realidade, antes de minha linguagem, existe como um pensamento que não se pensa, mas por fatalidade fui e sou impelida a precisar saber o que o pensamento pensa.

Duas décadas depois do lançamento do livro, em 1988, em texto para a edição crítica coordenada por Benedito Nunes, Antonio Candido observou: “A jovem romancista ainda adolescente estava mostrando à narrativa predominante em seu país que o mundo da palavra é uma possibilidade infinita de aventura, e que antes de ser coisa narrada a narrativa é forma que narra”.

Cartaz do filme A paixão segundo G.H., feito pela neta de Clarice Lispector (Divulgação)

Pensamento que (se) pensa, forma que (se) narra: como transpor para o cinema esse livro que se molda menos sobre ações do que sobre pensamentos ou sobre ações mínimas, num espaço restrito, que, porém, são, em si, manifestações de um pensamento de máxima amplitude? Como levar para a tela essa narrativa que se dobra sobre si mesma, essa fala que é imediatamente filosofia? Foi esse o desafio que se impôs Luiz Fernando Carvalho.

Desorganização profunda

No livro, tudo começa com G.H. falando da “desorganização profunda” que está vivendo. No dia anterior, ela se dirigiu ao quarto da empregada Janair, que havia se demitido na véspera. Imaginava encontrar um quarto escuro, sujo, desordenado, mas se deparou com um ambiente claro, limpo e ordenado, com um desenho a carvão na parede, representando uma mulher nua, com a qual se identifica, um homem também nu e um cachorro. Lá, encontrou ainda uma barata, que, num rompante de desespero, esmagou com a porta do armário, quebrando-lhe a casca e liberando a massa informe de seu interior, que acabou comendo em outro rompante, desta vez de loucura e comunhão.

O longa de Carvalho apreende essa desorganização que leva a protagonista a não saber mais quem é e que se replica numa desorganização da fala. Daí, o livro tomar uma forma espiralada, que se inicia e termina com travessões, indicando uma continuidade antes circular do que linear, e repete, no princípio de cada capítulo, a frase final do anterior, além de retomar, a todo momento, questões já tratadas.

A atriz Samira Nancassa em cena do filme

O filme se move também em espiral, não respeitando, por vezes, a ordem do livro — o que não é um demérito, e sim demonstra uma compreensão da estrutura narrativa que Clarice coloca em movimento. Não por acaso, a própria imagem da espiral é evocada já na abertura do filme. Na primeira vez que vemos G.H., sua figura aparece distorcida, espiralada, como se seu corpo se derretesse diante de nossas vistas, nos dando a ver a perda da “montagem humana” de que ela fala.

A G.H. do filme fala tanto quanto a do livro. Fala o tempo todo e, muitas vezes, olhando em close para nós, mas, como no livro, se dirigindo a alguém a quem pede que lhe dê a mão para enfrentar essa caminhada em busca de “dar uma forma” ao que lhe aconteceu (“sem dar uma forma, nada me existe”). No filme, esse alguém é o ex-amante, de quem nunca vemos inteiramente o rosto. Vemos — e muito — suas mãos, assim como as de G.H., como se nelas estivesse cifrado o elo com a forma que ela tanto busca: “Uma forma contorna o caos”. É com as mãos que trabalha G.H., que é escultora, e é dando as mãos a alguém, que, em certa medida, ela recupera a “terceira perna” metafórica que tinha e perdeu e fazia dela “um tripé estável”.

Na paisagem reduzida de um ‘quarto de empregada’, é toda a dinâmica social de um país que se dá a ver

Carvalho tampouco abre mão do caráter autorreflexivo dessa fala, não simplificando o pensamento que é a base de sustentação do livro. Também explora muito bem no filme um certo traço histérico na fala de G. H., o que a faz falar sem parar, num fluxo incessante, como se precisasse se apoiar na linguagem para não sucumbir de todo, para não perder de vez a razão e as boas maneiras tão condizentes com aquela pessoa que ela era e na qual não se reconhece mais. No filme, essa cisão da personalidade de G.H. aparece muito bem delineada na sobreposição dos dois tempos da narrativa. Vemos a G.H. senhora de si, elegante, altiva, andando por seu apartamento tão elegante quanto ela (“o apartamento me reflete”), enquanto, no quarto da Janair, está a G.H. que não sabe mais quem é, descabelada, suada, que grita jogada no chão em desespero, petrificada diante da barata e do “império” construído por Janair.

Na espiral do filme, a imagem da barata vai e volta, sempre em primeiríssimo plano. Vemos suas longas antenas, depois, além de sua cara e de seu corpo marrons-escuro, a massa esbranquiçada que sai de seu interior. A imagem de Janair também vai e volta. Ela, ao contrário de G.H., não fala. Não com palavras. Só nos encara com a altivez da “rainha africana” que é (na brilhante interpretação de Samira Nancassa) — e, nesse momento, partilhamos do mesmo lugar incômodo — incomodado — de G.H. O olhar de Janair é uma fala e uma acusação, como percebe G.H. ao olhar o desenho a carvão na parede: “Nunca antes me ocorrera que, na mudez de Janair, pudesse ter havido uma censura à minha vida”. Carvalho, com seu filme, apreendeu também esse aspecto crucial do livro: na paisagem reduzida de um apartamento, e mais ainda de um “quarto da empregada”, é toda a dinâmica social de um país ainda assombrado pelos fantasmas de sua história violenta que se dá a ver.

Quem escreveu esse texto

Veronica Stigger

Escritora e crítica de arte, é autora de Sul (Editora 34).