Cinema,

As invasões bárbaras

Kleber Mendonça Filho decreta a cidade como protagonista e expõe o vazio subjetivo para o qual caminhamos

01fev2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #78

Muitas das minhas inquietações sobre as cidades foram traduzidas em narrativa e imagem em Retratos fantasmas, mais novo trabalho do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho. O filme traça um novo paradigma sobre a percepção de como as cidades, as pessoas e a arte — especificamente a sétima arte aqui — estão juntas e misturadas na função involuntária de moldar o tempo, o espaço e as relações que se criam e dinamizam no centro de si mesmas.

Desde que lancei Empoderamento (Pólen Livros, 2019) e me somei aos que defendem a simbiose entre o individual e o coletivo como única possibilidade de avanço no trabalho sociopolítico e humano-psíquico para a transformação da nossa sociedade e de toda a nossa história, não consigo, sobretudo como urbanista mulher negra, pensar nas cidades apartadas dessa perspectiva.

Mendonça já vem situando suas narrativas cinematográficas tomando a cidade como cenário em sutil vínculo com as próprias histórias. Em Retratos fantasmas pesa a mão, no melhor sentido da expressão, e decreta a cidade (nesse caso, sua Recife) como protagonista e em relação indissociável com as vivências expressas em pouco mais de uma hora e meia de documentário. Mescla gravações amadoras feitas nos anos 90, enquanto dava os primeiros passos na carreira, com percepções, lastros históricos e percursos contados em primeira pessoa. Passa pela leitura de quatro ambientes onde viveu e se desenvolveu: o apartamento da mãe, o bairro em que cresceu, o centro da capital pernambucana e os cinemas de rua.

Esse arranjo que fala da própria história do cineasta não está inserido em um discurso único ou colonizador de outras experiências. Ao contrário, é justamente narrando sobre si que ele evoca e exalta a importância de outros sujeitos desconsiderados pela história hegemônica, influentes no seu trabalho e na sua formação, tanto de maneira prática como subjetiva.

Mendonça afirma, a cada minuto, que somos o quê ou onde ocupamos. Somos nossas terras, casa, bairro

O centro histórico da metrópole não é apenas o que ele vê, é também um receptáculo aglutinador de outras trajetórias que por ali passaram e, como na canção dos Novos Baianos, “deixou e recebeu um tanto”. Assim também é com outros redutos da infância e vida adulta. Falta na cultura brasileira esse insight sobre como somos muito mais afetados pelos espaços físicos em que vivemos do que julga nosso enviesado conhecimento técnico sobre a formação das cidades, dos territórios que ocupamos ou das políticas urbanas. Mendonça afirma, a cada minuto, que somos o quê ou onde ocupamos. Somos a nossa cidade, casa, bairro, ou seja, somos o espaço em que estamos.

A narrativa evoca uma sensação de orfandade diante das mortes simbólicas do antigo centro recifense e dos marcos de transformação urbana que o diretor, assim como a população, presenciou. Esse paralelo intuitivo construído entre a casa, como microcélula de espaço individual, o bairro, como macrocélula de organização espacial coletiva, e a cidade, como totalidade do espaço físico de convivência, tem como elo a figura materna, real ou instigada pela nossa percepção, que também é mediadora entre passado e futuro da sua vivência familiar e urbana.

A ausência da mãe é produto de mudanças mal-arranjadas feitas ao longo do tempo. Mal-arranjadas porque as transformações territoriais partem da errônea concepção intelectual que exclui a função das cidades e dos espaços físicos que descendem dela: abrigar pessoas, suas histórias e relações.

No protagonismo está uma cidade-mãe, geradora de vidas e gestora dos acontecimentos dessas vidas que são independentes entre si, mas não desgarradas do todo. Sua ausência como espinha dorsal ou ligação entre as partes muda tudo e deixa saudade. No centro também está o luto de Mendonça pela mãe, que foi seu norte, e pela cidade, seu suporte.

Fantasmas camaradas

Vemos a Recife do manguebeat, do maracatu e, indiscutivelmente, da paisagem permeada por uma trilha de exaltação ao cinema. Os cines São Luiz e Veneza são dois dos expoentes da cidade. Marcaram o cenário urbano recifense, mesmo que por vezes passassem desapercebidos. Como fantasmas, frequentemente eram invisíveis, mas como espécies de fantasmas camaradas, fundamentais à estrutura da vida.

Tudo se faz na cidade, inclusive os erros. Erro na extinção do cinema de rua e sua inestimável contribuição. Erro no adensamento permeado por nossa mentalidade eugenista ainda atuante. Erro nas verticalizações desenfreadas que reforçam, cotidianamente, as ideias de hierarquias humanas no inconsciente coletivo. Erro nas transformações da cidade que definem até os rumos do cinema — hoje escamoteado não só pela ausência de nós mesmos nas salas em detrimento dos resíduos imperialistas que se sobrepõem à nossa capacidade histórica de produzir grandes obras da sétima arte, como também pela tímida relação do nosso povo com essa ausência.


Cena do documentário ‘Retratos fantasmas’, de Kleber Mendonça Filho [Divulgação]

Retratos fantasmas reúne muitas ideias e anseios, dores e saudades. Mendonça se ergue como voz autorizada por muitas outras vozes e injeções de ânimo para os nostálgicos que ainda resistem, como o próprio diretor, lutando para manter nossa dignidade cinematográfica e urbana.

O vazio, não apenas físico, como também subjetivo, para o qual caminhamos, fala por si só nas perturbações reais do nosso cotidiano moldado por erros sucessivos das políticas urbanas. O apagamento de nossa história, que deveria ser facilmente identificada no traçado das ruas, nas fachadas das casas, no frescor dos parques e pracinhas que adornam tantas infâncias e no fácil acesso às salas de cinema, que deram espaço a farmácias e igrejas neopentecostais.

A cada esquina existe uma drogaria pronta para fornecer lenitivos medicamentosos para as dores existenciais enquanto seguimos invisibilizando a nós e aos outros, como a sagacidade da cena final sugere. Sem o cinema como espelho social, somos invisíveis — assim como os motoristas de aplicativos que ignoramos enquanto nos perdemos na voracidade de nossos feeds.

Quem escreveu esse texto

Joice Berth

Arquiteta e urbanista, é autora de Se a cidade fosse nossa (Paz & Terra, 2023).

Matéria publicada na edição impressa #78 em dezembro de 2023.