Transescrita

Literatura,

Transescrita

A argentina Camila Sosa Villada tem sua obra completa lançada no Brasil, numa sequência que reafirma seus múltiplos talentos literários

01maio2024 • Atualizado em: 16jun2024 | Edição #81
Fotografias de Daniel Mordzinski

Camila está com dengue. Vestindo um quimono verde, olhos escondidos por óculos escuros grandes e redondos, cabelos úmidos, um cigarro (ou seria um baseado?) numa das mãos e um isqueiro na outra, Camila Sosa Villada reclama de dores. “É como se eu tivesse parido um bebê de oito quilos. Não posso me mover de tanta dor na cintura”, diz ela. Pouco antes de conectar-se à entrevista, a mãe da escritora, que ela chama de La Grace, lhe contou que o pai, Don Sosa, também estava com dengue. “Há uma negligência do governo com a epidemia”, diz Camila. “As farmácias não têm repelentes. Parece que estão escondendo o produto para especular. Estamos num momento tremendo.”

A notícia a preocupa, pois o pai deveria operar o coração naquela mesma semana de abril. Desde o ano passado, quando Don Sosa foi diagnosticado com leucemia, Camila diz viver “em pausa”. Nada de literatura, teatro ou cinema. Ela até tem ideias, mas não investe em nenhuma. “Estou como uma autômata, funcionando para resolver questões médicas do meu pai”, explica.

É a La Grace e Don Sosa que Camila dedica seu primeiro livro, A namorada de Sandro (2015), que chega às livrarias junto a outras duas obras da autora: o ensaio A viagem inútil (2018) e o romance Tese sobre uma domesticação (2019). O pacote embala a volta da escritora argentina ao país como uma das estrelas d’A Feira do Livro 2024, depois de participar da Festa Literária de Paraty, em 2022.

O sucesso de sua passagem pela cidade histórica fluminense colocou O parque das irmãs magníficas, romance protagonizado por travestis que se prostituem no Parque Sarmiento, em Córdoba, e Sou uma tola por te querer, livro de contos (ambos da editora Planeta), entre os dez mais vendidos do evento. Com os três lançamentos, toda a bibliografia de Camila ganha edição nacional, repercutindo o apreço das brasileiras. “Recebi uma avalanche de afeto [no Brasil]. Creio que foi um dos países em que mais vivi isso. Era como se eu fosse uma Virgem, uma santa. Me chamou a atenção porque nem aqui [na Argentina] isso acontece”, lembra ela.

A tríade reafirma seus múltiplos talentos literários, tirando Camila da caixa do realismo fantástico em que tentam colocá-la desde que saiu O parque das irmãs magníficas — influência que ela sempre negou. Sua estreia, A namorada de Sandro é um livro de poemas escrito ao fim de um relacionamento, mas que não trata apenas de um amor. São muitos os “ex” a inspirar o trabalho, que passou por uma revisão da própria Camila em 2020, para eliminar o excesso de “sentimentalismo e autopiedade”.

A pequena Camila fez da literatura um refúgio ao caos familiar. ‘Para o que mais isso serviria se não para ser escrito?’

A partir da lembrança de La Grace a ensinando a ler e de Don Sosa, a escrever, se constrói A viagem inútil — Trans/escrita, no qual Camila reflete sobre como a literatura alcançou a vida de uma pessoa que não estava destinada a ela. Concebido como parte de uma coleção da Ediciones Documenta Escénicas, o ensaio é seu único volume verdadeiramente autobiográfico. Nele, ela resgata as dolorosas lembranças da infância em Los Sauces, cidadezinha no interior da Argentina, onde convivia com o vício em álcool do pai, testemunhava o abandono de sua jovem mãe e se emaranhava na devastadora paixão que um sentia pelo outro.

Os rituais de leitura e escrita, com a mãe apontando as palavras enquanto lia em voz alta e o pai ensinando a desenhar as letras, compõem algumas das recordações felizes da pequena Camila, que fez da literatura um refúgio para o caos familiar. Quando fala dessa época, a autora vacila. Ao mesmo tempo em que enaltece a magia do processo que a fez chegar alfabetizada à escola, revela a luta contra a pobreza, a relação com o pai que “beirava o insuportável” e a discriminação e a violência por ser a única travesti do pequeno povoado.“Para o que mais isso serviria se não para ser escrito?”, questiona Camila com a voz embargada.

Além de esboçar suas influências — em especial das escritoras Marguerite Duras, Carson McCullers e Wislawa Szymborska —, em A viagem inútil, Camila compara a escrita a se travestir — “meu primeiro ato de travestismo foi pela escrita” —; atesta como a psicanálise ajudou a deixar de acreditar que só era possível criar “a partir do horror” — “isso mudou a escrita quase como uma morte. A morte do protagonismo do sofrimento” — e lista os temas sobre os quais gostaria de tratar.

Entre eles, está o desejo de contemplar todas as “travestis jovens” — “queria escrever todas, por inteiro, sua beleza, sua feiura, sua violência, suas roupas e as noites que nos amparam nesse bosque em que nos conhecemos” —, o que ela realiza em O parque das irmãs magníficas. Vencedor do prêmio Sor Juana Inés de La Cruz, o romance consagrou Camila também no meio literário, depois de uma festejada aparição no teatro dez anos antes.

Para compreender essa trajetória, é preciso voltar à sua versão jovem adulta. Quando deixou a casa dos pais para estudar comunicação social numa universidade em Córdoba, Camila se prostituiu para sobreviver. Num encontro, foi vítima de violência. Para não alarmar a mãe, disse que tinha sido assaltada. Esta, por sua vez, prometeu à Defunta Correa, figura religiosa argentina que atrai centenas de pessoas ao seu santuário, que visitaria o local com a filha e o marido se Camila arranjasse outro emprego.

Pouco tempo depois, em 2009, Camila foi convidada a protagonizar o espetáculo Carnes tolendas, retrato scénico de un travesti, que teve enorme êxito na Argentina, tornando-a conhecida em todo o país. Desde então, ela atuou no teatro, em séries na televisão e filmes. O mais recente é a adaptação de Tese sobre uma domesticação, que estreia no segundo semestre e traz a autora como protagonista.

Escrito depois do triunfo de O parque das irmãs magníficas, e sob a pressão de uma legião de fãs — que podem ser “bastante filhos da puta”, diz Camila —, o romance envereda por caminho oposto. A protagonista, chamada apenas de atriz, é uma travesti, mas vive num contexto díspar das personagens da obra anterior. Rica, famosa e invejada, ela se submete às convenções sociais, atendendo aos desejos do marido, um advogado gay, do filho e da família. Para Camila, que considera Tese sobre uma domesticação seu melhor livro, se trata de uma ficção científica. “Ainda não existe uma figura com a liberdade da atriz”, acredita.

Foi também graças a esse romance que a crítica literária deixou de apontar semelhanças entre ela e autores do realismo fantástico, o que se confirmou em sua obra mais recente, Sou uma tola por te querer, que começa com o conto no qual Camila narra a viagem com os pais para pagar a promessa à Defunta Correa. “Meu pai ficou bravo, porque minha mãe e eu tivemos um ataque de riso no santuário da Defunta”, lembra.

Já que começamos nossa conversa falando sobre a negligência do governo com a epidemia de dengue, me conta: como é viver na Argentina de Javier Milei?
Uma sensação de paciência infinita. A paciência da escravidão, dos que estão privados da liberdade. Estávamos à beira de uma guerra civil. É impressionante como nos odiávamos. E isso vem dos dois lados, não só dos militantes de Milei. Ao mesmo tempo, tem muita gente feliz por terem cortado o orçamento das universidades, pela forma como o presidente se expressa. Mas vocês passaram por tudo isso. Acredito que Milei seja um Bolsonaro ao quadrado. Um pouco mais perigoso.

A namorada de Sandro é o primeiro livro que você publicou, certo?
Sim. Na época, postava poemas no Facebook, e editoras de Córdoba e de outros lugares do país queriam editá-los. Mas eu tinha vergonha de que fossem registrados para sempre, especialmente por ser poesia, um sentimento tão delicado, tão exposto, sem a possibilidade de estar subordinado a uma narrativa. Era algo cru, que escrevi durante a separação do meu primeiro namorado, único que apresentei aos meus pais. Estava sofrendo e vivendo um momento de fragilidade. Quando foi reeditado, em 2020, eu o retomei — assim como fiz com Tese sobre uma domesticação — e limpei o que poderia causar pena. O parque das irmãs magníficas provocou comiseração e uma espécie de piedade. Nessa arena de gladiadores em que estamos, brigando por vender livros, por ser publicados, quero ser considerada uma igual. Voltei a esses livros para tirar o sentimentalismo e a autopiedade.

Você tinha um blog de sucesso. Há textos dele em A noiva de Sandro?
Os textos do blog não existem mais. Estavam num computador que não funcionava e joguei no lixo. Ao contrário do que imaginam, esses textos não foram publicados em O parque das irmãs magníficas. Para ser honesta, os homens sem cabeça, que estão em O parque, apareceram uma vez no blog.

Você disse que as pessoas superestimam os textos desse blog. Por quê?
Porque não existem mais. A curiosidade tem a ver com isso, mas também com o vislumbre de uma escritora que é capaz de renunciar a essas coisas. Gosto de me apagar. De jogar fora o que escrevo, queimar, fazer desaparecer. Não tenho pena disso. Há escritoras e escritores que guardam os textos, pois sabem que em algum momento podem se converter num livro.

Eu dependo somente da minha vontade. Então, suponho que as pessoas sentem curiosidade por uma escritora capaz de dizer que, se não precisa mais ser publicada, não será. Se nenhum editor me quiser, que não me tenham. Não vou morrer por não escrever.

Em A viagem inútil você afirma que escreve desde sempre…
Você gostou do livro?

Sim, gostei muito.
Ah, que bom. Esse livro nasceu de uma proposta da Ediciones Documenta Escénicas, uma editora cordobense chique e respeitada, que faz livros artesanais. Eles fizeram um convite para eu contar como me aproximei da literatura para a coleção Escrever, junto de autores como Leonardo Sanhueza, Juan Forn, Eugenia Almeida. Aceitei. Depois achei que era algo muito grandioso para mim. Mas num determinado momento, retomei.

E como foi escrever A viagem inútil?
Uma luta, pois trata de como alguém que não estava destinada à literatura chegou a ela. Livros, autores, palavras e tudo o que facilitou minha infância, minha adolescência e agora, meus quarenta e tantos anos. A literatura entrou na minha vida com minha mãe apontando as palavras com a unha, enquanto lia em voz alta, e eu associava as letras ao som. A quantas pessoas ocorre ensinar uma criatura a ler assim? Depois, também como uma revanche, com uma recordação boa do meu pai, que nesse momento era [uma pessoa] muito difícil. O fato de ele se sentar para me ensinar a escrever, comparando as letras a uma barriga, um chapeuzinho, me abriu a tudo o que tem a ver com o mundo intelectual. Mas acredito que se escrevesse esse livro de novo, ele seria totalmente diferente. Sem anulá-lo, mas a literatura se transformou em outra coisa que não é mais a que descrevi.

‘Escrevia no feminino e escondia onde não podiam encontrar. Da mesma maneira, me travestia’

Nesse livro, você afirma sentir falta da Camila dos tempos do blog, do frescor de colocar no papel tudo o que sentia…
Sim, mas a Camila para quem era tão vital escrever não existe mais. A experiência de A viagem inútil foi transformadora. A partir desse livro, minha carreira teve uma mudança profunda e radical. E eu também mudei.

Voltando a seus pais, como foi o convívio com eles?
As imagens do relacionamento deles foram muito potentes para mim. Eu era obrigada a fazer parte da paixão que um sentia pelo outro e que lhes trazia muito dano. Uma paixão que tocava em tudo da vida de uma criança: as brincadeiras, os segredos, os medos. Para o que mais isso serviria se não para ser escrito? Caso contrário, essa lembrança não me machucaria. Não me faria essa sangria. Era tão insuportável que, se eu não escrevesse, estaria perdendo dinheiro. Para o que mais vou me lembrar disso? Para transformar em dinheiro.

Você fala de uma tradição literária em sua família, com histórias contadas por sua bisavó, sua tia, as cartas que seus pais trocavam…
Tive a sorte de nascer na época em que as pessoas escreviam cartas, tornando possível receber a literatura em casa e responder com literatura. Mas há também uma tradição oral da família de minha mãe, que eu convivi por alguns anos. Nas reuniões, não importava se todas as crianças estivessem por perto, éramos testemunhas do que se dizia. Uma de minhas primas e eu ouvimos coisas terríveis: acusações, fofocas, rancores de trinta, quarenta anos atrás. Tínhamos de processar como podíamos. E depois, houve o alento de conhecer essa amiga, uma senhora do povoado [que emprestava livros a Camila] que me disse para começar a escrever. Tudo o que precisava fazer era escrever.

Por que você compara o ato de escrever ao de se travestir?
Porque fazia em segredo. Escrevia no feminino e escondia os textos em lugares onde meu pai e minha mãe não podiam encontrar. Da mesma maneira, me travestia. Escondida no banheiro, trancada no meu quarto. Saindo pelo povoado à noite, fugindo pela janela. Antes de sair pela primeira vez à rua vestida de mulher, esse batismo, eu escrevi. Isso já estava presente. Tinha acontecido na escrita.

Em A vida inútil, você reflete sobre temas que gostaria de escrever, entre eles as travestis, que foi o que fez em O parque das irmãs magníficas. Você continua a querer tratar desses mesmos temas?
Não sei o que quero escrever. Desde agosto do ano passado, quando diagnosticaram meu pai com leucemia crônica, minha vida está em pausa. Não tenho relação com a literatura. Estou como uma autômata, funcionando para resolver questões médicas. Não sei o que quero escrever nem qual é minha ideia de literatura agora. Acabei de ler A Book of Common Prayer [Um livro das orações comuns, em tradução livre, não publicado no Brasil], de Joan Didion, e entendi que há algo sobre a cabeça de um personagem que estou interessada em escrever. Mas não tenho uma resposta certa para essa pergunta.

Seus pais são jovens?
Sim, meu pai tem setenta anos e minha mãe, 64. Eles estavam bem de saúde, até que meu pai se sentiu mal no ano passado, e foi um processo longo até encontrar um médico. Quando ele finalmente começou a tomar sua medicação, no final de novembro, descobriram que tem uma artéria que está 95% entupida, e ele iria fazer a cirurgia nesta semana, mas agora está com dengue… Antes disso, eu estava nas filmagens de Tese sobre uma domesticação, o que me deixou extenuada. Voltei a ter ataques de pânico. Não tenho espírito para fazer nada. Claro que escrevo algumas coisas, faço uma espécie de catarse. Às vezes, tenho vontade de fazer teatro, de atuar, mas não há com quem ou no que. Assim, decidi me ocupar de meus pais. Veremos para onde a vida me leva depois que as coisas entrarem em ordem.

Por que disse que teve medo de publicar Tese sobre uma domesticação?
Depois de O parque das irmãs magníficas, parecia que as pessoas esperavam mais miséria e tristeza travesti. Queriam que eu continuasse a escrever sobre isso para satisfazer um grupo de leitores cativos, que estava me mantendo nesse momento. Mas Tese sobre uma domesticação caga para tudo isso. Na minha opinião, é um dos melhores livros que escrevi. Ou o melhor, se preferir. Não escrevi sobre a dor das travestis no sentido político latino-americano, e sim sobre a dor de uma única travesti, capaz de compreender que sua vida é uma merda e é melhor cortar os pulsos num canal de TV.

Esse tipo de expectativa e cobrança também ocorre com os escritores homens, mas acredito que é ainda mais forte com as mulheres, as travestis, mulheres trans… Concorda?
Sim, mas aprendi que o livro acontece a despeito do que deseja o leitor e o escritor. Leitores são bastante filhos da puta também. São malvados, cruéis. Te amam em um livro e te detestam no seguinte. Te respeitam como escritora, mas como pessoa, lhes parece uma merda. Usam o que você escreve da maneira que querem. Felizmente os livros existem independentemente dos leitores. Graças a Deus por isso!

E como foi a recepção de Tese sobre uma domesticação?
O lançamento foi bonito, com Humberto Tortonese, que é uma lenda argentina do humor. Um grande ator. Ele veio a Córdoba. Saímos para comer. O teatro estava cheio. As pessoas, felizes. Eu estava usando um quimono de algodão espetacular que uma amiga havia desenhado. E minha editora disse: “Acho que esse é o melhor romance que você escreveu”. Isso foi o suficiente para mim. Se vendesse ou não, pouco me importaria. Ademais, é um livro do qual não me arrependo de nenhuma frase, de nenhum adjetivo. Acho que é bem escrito e parecido com a escritora que eu gostaria de ser em algum momento.

Você está na adaptação de Tese sobre a domesticação para o cinema. Foi a responsável pelo roteiro?
Sim, adaptei a história com Javier [van de Couter] e Laura Uberman. É importante estar próximo, pois há um espírito que não se pode perder. Lembro de Joan Didion falando da adaptação de um de seus livros, que estava tudo diferente: o personagem principal, a história, o roteiro. No filme, faço o papel da atriz e Poncho Herrera [ex-integrante do grupo RBD Alfonso Herrera] é o marido advogado. Parece que no Brasil Poncho é tratado como um deus pelo que fazia na juventude, com os Rebeldes. É Rebeldes? Enfim, não sabia que o amavam tanto aí. O filme está pronto. No segundo semestre, começam a mandá-lo aos festivais.

Quando nos encontramos no Brasil, você disse estar cansada de ser questionada sobre a influência do realismo fantástico. Que acreditava estar mais próxima da ficção científica…
Tese sobre uma domesticação acabou com essa história de tentarem me colocar dentro da tradição do realismo fantástico. Não é um livro sobre o presente. Quando o escrevi, pensei em dez, quinze anos à frente. Apesar de não ser uma ficção científica, parece um pouco, porque ainda não existe uma figura como ela [a protagonista].

É uma mulher do teatro, com uma liberdade que não é atual — mas, oxalá, espero que exista no futuro.

Como atriz, você já mencionou o desejo de interpretar uma traficante de drogas, uma bandida. Tem feito os papéis que gostaria?
Sim, porque eu os escrevo. Se não, seria impossível. Me dei conta disso rápido: ninguém iria escrever algo que resultaria num desafio para mim. Então, inventei mecanismos que me permitem brincar ou complicar um pouco as coisas em cena. Em Frida Kahlo, aprendi a fazer trapézio para um vídeo de trinta segundos. Agora, estou ansiosa para fazer um novo trabalho com Poncho [Herrera], pois percebi que gosto de algo que quase não se vê mais, que é o relacionamento de um homem e uma mulher como nas obras de Tennessee Williams. A descrição dessas paixões. Achei incrível poder atuar dessa forma especialmente com ele, que é um ator muito bom. Mas não estou inspirada.

Em Sou uma tola por te querer, há um conto sobre a viagem que fez com seus pais ao santuário da Defunta Correa para pagar a promessa de sua mãe. Como foi essa viagem?
Aceitei ir à Defunta Correa, mas os fiz jurar que não iam se maltratar. Foi a primeira vez que saímos os três, de carro, numa viagem tão longa, nos suportando como família num espaço tão pequeno. O caminho era só deserto, deserto, deserto… Quando chegamos, foi impactante ver as pessoas de joelhos, rastejando para pagar a promessa. Mas, como em todo momento solene com minha mãe,
começamos a rir e meu pai ficou bravo. Isso continua me parecendo uma história para se contar.

‘O ativismo não existe. No auge desse apocalipse, estamos discutindo coisas sem sentido’

Como são as trocas com mulheres trans e travestis? Como se sente sendo uma referência para ativistas?
Tenho um pouco de medo de despertar afetos e sentimentos em meninas trans, pois não sei como os recebem e lidam com eles. Tenho pudor, pois receio não dizer o correto, não ser útil. Sobre o ativismo, em algum momento perdi a ilusão de que o mundo possa mudar, o que demonstra minha estupidez por ter me iludido. Hoje, acredito que nada vai mudar. Ao contrário, só vai piorar. O ativismo não existe. No auge desse apocalipse, estamos discutindo coisas sem sentido.

Com esses três livros, teremos sua obra completa lançada no Brasil, o que é bem significativo. Como foi sua experiência por aqui?
Na Flip, peguei Covid. Fiquei seis dias isolada no Rio de Janeiro durante toda a Copa do Mundo. Senti muitíssimo calor — e o calor e a umidade me deixam de mau humor — e recebi uma avalanche de afeto. Creio que foi um dos países em que mais vivi isso. Além do carinho, eram presentes, biscoitos, coisinhas que cozinhavam, caderninhos, livros de poema… Era como se eu fosse uma Virgem, uma santa. Me chamou a atenção porque nem aqui [na Argentina] isso acontece.

Você disse que a Camila de hoje não é a mesma de A viagem inútil. Se você tivesse de escrever sobre literatura hoje, o que seria?
Falaria da gramática, da beleza estética das palavras. Com certeza, de Joan Didion. Talvez, aprofundasse a ideia de travestismo relacionado à literatura. E também escreveria sobre a recepção dos meus livros na imprensa.

Opa, estou curiosa: o que pensa sobre a relação com jornalistas?
Um pouco básica, banal e previsível. Exceto por aqueles que veem alguma coisa mais em mim, a maioria quer me fazer chorar na entrevista.

Quem escreveu esse texto

Adriana Ferreira Silva

Jornalista, escritora e palestrante, trata de temas como desigualdade de gênero e liderança feminina.

Matéria publicada na edição impressa #81 em maio de 2024.

Peraí. Esquecemos de perguntar o seu nome.

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