Literatura,

Escrever e outros demônios

Ensaios de Olga Tokarczuk e Joan Didion voltam o olhar para dentro e para fora compondo investigação sobre a vida

01mar2023 | Edição #67

Escrever é muito perigoso, da ganhadora do Nobel Olga Tokarczuk, e Vou te dizer o que penso, da jornalista e escritora Joan Didion (1934-2021), são dois lançamentos com algumas características comuns: ambos são reuniões de ensaios escritos por mulheres e têm autoras que podem ser consideradas libertárias tanto na forma de escrever como nos temas sobre os quais escrevem.

Mas as semelhanças param por aí.

            
Escrever é muito perigoso, da ganhadora do Nobel Olga Tokarczuk, e Vou te dizer o que penso, da jornalista e escritora Joan Didion

Escrever é muito perigoso mapeia em profundidade o “credo” literário e autoral de Tokarczuk, explicitando o perigo de que fala o título. Desde o primeiro ensaio, “O viajante”, adverte-se sobre a oposição entre a infinitude da imaginação e a mesmice finita a que somos submetidos cotidianamente, seja pelo apelo do consumo, pelas cidades idênticas umas às outras ou pelo algoritmo que nos oferece o que supostamente queremos. Contra a imagem perfeita do Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci, Tokarczuk propõe a figura não monádica e múltipla das imagens de Arcimboldo, sugerindo uma identidade mais semelhante a um “cacho” do que a uma régua, e uma defesa, que se espraia pelo livro todo, da excentricidade (ex-centro ou fora do centro) como perspectiva de mundo.

Seu olhar, como se lê no romance Sobre os ossos dos mortos (em que se baseia o filme Rastros, de 2017) está sempre interessado no dessemelhante ou no outro: animais, imigrantes, excluídos. “É evidente que a razão validará a razão como princípio primeiro do universo”, ela diz, atacando a racionalidade compulsória e tentando defender a “imaginação simpatizante” como seu substituto e aliado.

A excentricidade, a peculiaridade, o inquietante freudiano e o elogio da incompreensão formam caminhos para a escrita e a leitura, fazendo com que a literatura seja uma linguagem em que “o conhecido se torne desconhecido e o domesticado seja selvagem”.

É dessa forma, enfrentando e incorporando o estranho — e é aí que mora o perigo da escrita — que, nos ensaios mais extensos do livro, ela expõe verticalmente os procedimentos de linguagem e de introspecção realizados na escrita dos próprios livros. “A escrita é um inferno, uma tortura incessante, um banho de alcatrão fervente”, afirma sem reclamar a escritora que, para escrever, pensa que é preciso que cada escritor aceite seu daimonion, seu demônio interno e externo.

Em longos textos transcritos a partir de uma série de palestras proferidas em Lodz, Tokarczuk esmiúça a escolha de narradores e a criação de seus personagens, sempre tratando da briga que se estabelece entre o “eu”, “um fluxo de sensações que se acumulam na armação caótica do nosso temperamento e das características psicológicas fundamentais como lixo em um ramo submerso na corrente de um rio”, e o outro, seus personagens, projeções inumeráveis desse eu caótico, de “potencialidade infinita”. Comparando a invenção de personagens ao tzimtzum, fenômeno descrito pela Cabala judaica como uma espécie de retração divina para a criação do mundo, a autora define o gesto da escrita como uma “reunião de coragem e recolhimento, um pouco como um anfitrião que cumprimenta a visita à porta e a conduz para a sala, recuando cada vez mais para os fundos da casa”.

O mesmo ‘inquietante’ freudiano de Tokarczuk, aparece em Didion com outra roupagem: ‘não me interesso pela moderação’

Quanto ao narrador, essa voz misteriosa e anônima que tudo sabe e vê, ela o propõe como um elemento a mais à tríade freudiana ego-id-superego — o narrador, formando um tetraktys, “uma força que transcende os limites do ‘eu’ e comunica as outras três com o mundo”.

É uma autora que corre o risco de penetrar vertiginosamente no “eu” desconhecido para assim encontrar o liame que nos liga, pela imaginação simpatizante, com o outro. Dentro e fora entrelaçados pelo estranhamento.

Refletor irônico

Embora inclua visões bem particulares — e originais — sobre a vida e a sociedade norte-americanas, o texto de Joan Didion, de forma geral, volta o olhar bem mais para fora do que para dentro. Não se trata de um mergulho subjetivo na escuridão do eu, mas de um refletor irônico voltado para a falsa pureza do norte-americano médio.

O próprio título, mais afirmativo e atrevido, é como um chamado para a briga: “Vou te dizer o que penso”. E ela diz mesmo.

O mesmo inquietante abordado por Tokarczuk aparece em Didion com outra roupagem quando ela diz, logo no primeiro ensaio do livro: “Não me interesso pela moderação; a racionalidade e o bom senso me deixam desnorteada”. Se há algo mais em comum entre as duas autoras, é a consideração do senso comum como a causa principal da alienação e da transformação dos indivíduos em mercadoria.

A mania norte-americana, que se tornou mundial, de dividir tudo entre certo e errado, bom ou ruim e a forma como cada um encaminha sua vida exclusivamente na direção do sucesso e da glória (isso tudo escrito no século passado, muito antes das redes sociais) faz com que nos tornemos espécies de autômatos submissos, atrás de máscaras eficazes que disfarcem a individualidade, cada vez mais pasteurizada e precária.

Curiosamente, Didion explica ter sido na revista Vogue que “aprendeu a olhar para as palavras não como espelhos da própria inadequação, mas como ferramentas, brinquedos, armas a serem utilizadas estrategicamente”.

O primeiro ensaio do livro, que reúne textos escritos dos anos 60 aos anos 90, já declara, polemicamente, a convicção ética de Didion: “Admiro a objetividade, e inclusive a admiro muito, mas não consigo ver como se pode alcançá-la se o leitor não entende o viés individual do escritor”. E ela faz essa afirmação não só se referindo à literatura, mas ao jornalismo, explicitando os recursos que ela nunca deixou de usar, mesmo ao apurar fatos: seu posicionamento estético e político.

Com ensaios de cunho pessoal, como “Sobre não ter sido escolhida para a faculdade que você escolheu”, o que a fez pensar até em suicídio, e ensaios de caráter literário, como “Por que escrevo” ou “Últimas palavras”, sobre a escrita de Hemingway, o livro estabelece um panorama dos interesses da autora, o que chega a incluir um elogio inesperado a Martha Stewart. Mesmo quando elogia — o que não é muito comum na obra da autora — ela surpreende pela escolha da personagem.

Elas têm em comum o acolhimento do inquietante e a atenção ao incomum. Essa identidade pode ser a mais importante

“Eu tentava refletir sobre a dialética hegeliana e me pegava concentrada em uma pera florescendo na árvore do lado de fora da minha janela e na maneira peculiar como as pétalas caíam no chão.” Eis aí uma poética que sintetiza o olhar simples, concreto e, talvez o mais importante, ex-cêntrico de Didion, que não olha só para a pera, mas para a “maneira peculiar como as pétalas caem do chão”, detalhes que escapam à maioria.

Talvez Olga Tokarczuk e Joan Didion tenham mais traços em comum do que se poderia imaginar, como o acolhimento do inquietante e a atenção a tudo o que é incomum. E, em meio a tantas diferenças, pode ser que essa identidade seja a mais importante.

Quem escreveu esse texto

Noemi Jaffe

Escritora e crítica literária, é autora de Não está mais aqui quem falou (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #67 em fevereiro de 2023.