Literatura,
Entre quatro paredes
Trancada em um museu, Leïla Slimani resgata memórias e escreve sobre reclusão e ânsia de viver
24jan2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #78É dezembro de 2018. Desde a manhã, Leïla Slimani permanece trancada em um escritório, no segundo andar de seu apartamento parisiense, de onde pretende sair só à noite — numa rotina que se repete diariamente. O espaço de doze metros quadrados tem uma parede coberta por post-its coloridos. Neles estão grafados nomes como Mathilde e Aïcha, protagonistas de uma trilogia que acompanha três gerações de uma mesma família no Marrocos.
O perfume das flores à noite é a primeira não ficção de Leïla Slimani publicada no Brasil
Leïla está inquieta. Aquele não tinha sido um dia agradável. Passou horas sentada em frente ao computador, mas os personagens não falaram com ela. Eles a abandonaram. A escritora espera que voltem. Quando estão por perto, os dias passam sem que ela perceba.
Murmuro, escrevo tão rápido quanto posso, porque tenho medo de que minhas mãos sejam mais lentas do que o fio do meu pensamento. Nessas ocasiões, me aterroriza a ideia de que algo possa me desconcentrar, como um equilibrista que quase comete o erro de olhar para baixo. Quando eles estão aqui, minha vida gira em torno dessa obsessão, o restante do mundo não existe.
São cinco da tarde quando Leïla se dá conta de estar atrasada para um compromisso. Ela tem um encontro com a editora Alina Gurdiel. Reluta em ir. Pensa em inventar uma desculpa, dizer que o filho está doente, mas vai. No metrô a caminho do café, culpa-se pela indisciplina. Está decidida a não aceitar nenhuma proposta que a amiga tenha a lhe fazer — e ela tem.
Alina está trabalhando em uma coleção intitulada Minha Noite no Museu, e convida Leïla a passar doze horas trancada em Punta della Dogana, instituição em Veneza. É pela possibilidade de ficar sozinha, em completo isolamento, que Leïla aceita.
Nem por um único instante pensei que eu poderia achar interessante escrever sobre arte contemporânea.
Leïla quer estar em um lugar de onde não poderá sair e onde ninguém poderá entrar. O contraponto entre sua ânsia por reclusão e um desejo de viver intensamente dá origem a O perfume das flores à noite, que acaba de ser lançado no Brasil pela HarperCollins. As horas em claro, perambulando entre instalações, conduzem a um fluxo de consciência no qual Leïla esmiúça a ideia de que, para escrever, é preciso renunciar às alegrias cotidianas e “dizer não” (às festas, ao cinema, aos passeios, aos amigos). “Eu vivo apartada. A reclusão me parece a condição necessária para que a vida aconteça.”
Memórias e reflexões
Em meio a reflexões que oscilam entre “sua atração pelo fora e a segurança pelo dentro”, Leïla resgata memórias da infância, em que a liberdade em casa se opõe às restrições impostas às mulheres marroquinas; as escapulidas noturnas na adolescência; a independência nas ruas parisienses; a prisão e morte do pai; além de questões de gênero, classe, a obsessão da sociedade por se exibir e temas mundanos como a deselegância dos turistas e a inabilidade da autora em se emocionar com a arte contemporânea.
Atualmente morando em Portugal, Leïla vem de uma família burguesa. A avó materna, Anne Ruetsch, nasceu na Alemanha, mas, durante a Segunda Guerra, migrou para a França, onde conheceu o avô da escritora, o marroquino Lakhdar Dhobb, que lutava no exército francês. A mãe de Leïla, Béatrice, formou-se em medicina, enquanto o pai, Othman Slimani, foi ministro da Economia do Marrocos entre 1977 e 1979, além de presidente de um banco.
Segunda de três filhas, Leïla cresceu num ambiente cosmopolita, estudando em uma escola francesa, assistindo a filmes europeus e imersa nos clássicos da literatura ocidental. Ao fim do ensino médio, como muitos de sua classe social, Leïla trocou o Marrocos pela Europa, onde fez jornalismo e ciência política, em Paris.
No livro, a autora reveza entre a faceta solar, tiradas sarcásticas e ponderações profundas
Nesse mesmo período, o pai da autora se envolveu em um escândalo político-financeiro e foi detido. Othman Slimani nunca se recuperou da experiência e morreu pouco tempo depois de deixar a prisão. Anos mais tarde, um novo julgamento o absolveu, e o governo marroquino se desculpou com a família.
Foi para vingar o que aconteceu com o pai que Leïla diz ter começado a escrever. “Também queria vingar minha mãe e a mim, pois diziam que uma menina como eu, do Magreb, não poderia se tornar escritora”, diz Leïla em entrevista por vídeo à Quatro Cinco Um.
Mas se a injustiça contra o pai a levou à escrita, foi a morte dele que lhe deu a liberdade de criar Adèle, a jornalista viciada em sexo que protagoniza seu primeiro romance, No jardim do ogro (2014). Dois anos depois, Leïla entraria no panteão da literatura francesa ao ganhar o prêmio Goncourt por Canção de ninar, drama que começa com o assassinato de duas crianças por uma babá. Estes dois livros foram lançados pela editora Planeta.
O perfume das flores à noite é a primeira não ficção de Leïla publicada no Brasil — ela tem outras, como Sexe et mensonges (“Sexo e mentiras”), que reúne entrevistas de mulheres marroquinas falando da própria vida sexual. O ensaio foi feito ao mesmo tempo que Leïla escrevia a trilogia que a crítica internacional descreve como seu “projeto mais ambicioso” — ainda sem previsão de lançamento no Brasil. Inspirada na própria história da escritora, a saga começa ao fim do período colonial, na década de 50, e segue até os anos 2000.
O primeiro volume, Le Pays des autres (“O país dos outros”), de 2020, narra a história de uma francesa que se apaixona por um marroquino e migra para a África. A sequência, Regardez-nous Danser (“Veja-nos dançar”), de 2022, centra-se nos filhos do casal. O terceiro trata da geração de Leïla, nascida em 1981, e sai no ano que vem. “Parto com frequência de coisas reais, situações que testemunhei, vivi ou me contaram, e começo a criar”, diz ela. “É como se estivesse inventando minha própria família.”
Em O perfume das flores à noite, Leïla reveza a faceta solar que exibiu em Paraty, em 2018, quando participou da Flip, com tiradas sarcásticas e ponderações profundas. Contradições de quem afirma muitas vezes ter pensado em “quebrar a tíbia” com um martelo, para ficar presa em casa escrevendo, ao mesmo tempo que se despede da entrevista sugerindo tomarmos uma caipirinha em sua próxima visita ao Brasil.
Como passar uma noite no museu Punta della Dogana, em Veneza, te inspirou a refletir sobre escrita, literatura, feminismo e suas origens, temas de O perfume das flores à noite?
Tudo começa por uma reflexão sobre a literatura: por que decidi consagrar minha vida à escrita? Por que resolvi passar grande parte da existência trancada em um escritório, inventando personagens, me recusando de alguma forma a viver, a sair, me divertir e me impondo essa disciplina? Todos esses temas fazem parte da minha relação com a literatura e o isolamento. Como foi estar presa [no museu] e qual minha ligação com o exterior? Isso levou à minha infância.
‘A literatura representa uma prisão para mim ou me ajuda a conquistar minha liberdade?’
Na maneira como fui educada, havia uma fronteira clara entre a casa da família — com meu pai, minhas irmãs, minha mãe —, onde éramos livres, líamos muito, podíamos dizer tudo o que pensávamos; e o mundo lá fora, em que uma mulher podia ser vítima de violência, não tinha liberdade de falar, pensar. Evidentemente, isso me levou ainda à história de meu pai. Como é possível, sendo eu filha de um homem que foi preso, construir uma vida de isolamento? A literatura representa uma prisão para mim ou, ao contrário, ajuda-me a conquistar minha liberdade como mulher, como pessoa? Meu espírito começou a divagar e todas essas ligações aconteceram naturalmente. Depois, estabeleci uma lógica.
Você chegou a alguma conclusão?
Não, mas penso que seja sempre assim quando começamos a escrever um livro. Raramente chegamos a uma conclusão, e sim a muitas outras questões. Continuo a me perguntar sobre essa fronteira entre dentro e fora. Preciso ficar sozinha, ao mesmo tempo que sou muito atraída pela vida. Amo me divertir, estar com as pessoas, viajar, me aventurar, mas também sou um pouco medrosa. Concluo sermos profundamente contraditórios. Isso é algo que sempre senti escrevendo minhas personagens, que são cheias de contradições. No fundo, sou como elas.
Você dedicou este livro a Salman Rushdie. Como se tornaram amigos?
Eu o conheci sem o conhecer. Em 1989, eu era uma criança no Marrocos quando foi lançada a fatwa contra o livro dele [Os versos satânicos]. Tinha oito anos e me lembro de seu rosto na televisão. Acredito que foi a primeira vez que vi um escritor famoso sendo notícia. Isso me fascinou porque, para mim, escritores eram gente morta como Baudelaire, [Émile] Zola. Era a imagem romântica da figura do escritor. Anos depois, numa viagem aos Estados Unidos, eu lhe escrevi e almoçamos juntos. Passamos então a trocar cartas e, sempre que vou a Nova York, eu o visito. Ele é um homem engraçado, apaixonado pela literatura e ama contar histórias. A pessoa de Salman Rushdie me interessa mais do que a do escritor da fatwa.
Do que tratam essas cartas?
De tudo. Falamos sobre o cotidiano, a literatura e a dificuldade de escrever sobre certas coisas. Também sugerimos livros que lemos e amamos. São conversas como as de qualquer pessoa: tratam de trabalho, da vida.
Pedro Almodóvar escreveu um texto no jornal El País repercutindo O perfume das flores à noite?
Sim. Almodóvar publicou uma longa carta contando que leu o livro numa viagem a Los Angeles, onde ia participar da cerimônia do Oscar. O que mais gostei é que ele diz questionar ou discordar de muitas coisas. Isso me agradou porque é enriquecedor o fato de outro artista nos ler e essa leitura ser feita ao ponto de a pessoa dizer que não está de acordo ou não vê as coisas da mesma maneira.
Você é fã de Almodóvar? Foi emocionante?
Muito! Pedro Almodóvar faz parte da minha vida. O primeiro filme dele a que assisti, Mulheres à beira de um ataque de nervos, foi com minhas irmãs, minha mãe, minhas tias. Éramos muitas, e me lembro de acharmos incrível como ele compreendia as mulheres, sua liberdade. Depois, a cada ano, esperava sair um novo Almodóvar. Sempre tive a impressão de que estávamos somente ele e eu na sala de cinema, de que ele falava comigo. São obras que mudaram minha vida.
Annie Ernaux diz escrever para vingar sua classe. Você afirma que começou a escrever para vingar a prisão injusta de seu pai. Alcançou essa vingança?
Acredito que sim. Foi uma vingança global. Queria vingar meu pai, e também minha mãe e a mim mesma. Como uma jovem do Magreb, uma mulher africana, quando dizia que meu sonho era ser escritora, viajar pelo mundo, as pessoas me olhavam com um ar de “isso é impossível para uma menina como você”. Então também queria me vingar contra os que acreditam que você não pode ter sucesso se não vier de um pequeno meio francês. Acho que me sinto vingada.
Ao mesmo tempo, você também afirma que não teria coragem de escrever seu primeiro livro, No jardim do ogro, se seu pai estivesse vivo. O que teria escrito então?
Talvez nada. Não sei. A morte de pessoas muito próximas é estranha porque, ao mesmo tempo que causa um imenso sofrimento e representa um drama, uma tragédia, quando se trata de seus pais — e pode parecer cruel dizer isso —, há quase um alívio. Há alguma coisa que te liberta. Você deixa de ser a filha do seu pai. Tornar-se órfã é terrível, mas é também quando você está por conta própria e pode se reinventar. Então, não sei o que escreveria a filha do meu pai. Talvez tivesse escolhido outra profissão para lhe agradar.
No livro, você fala de seu apego às personagens. De como elas ganham uma vida própria. Como é conviver com pessoas como a babá de Canção de ninar, uma mulher tão difícil, e simultaneamente vivenciar o luto quando acaba de escrever o livro?
Na verdade, não as deixo jamais. Elas continuam a existir. A babá, por exemplo, penso nela de vez em quando. Às vezes, eu a vejo. Sinto ainda as coisas que ela sente. A Adèle, de No jardim do ogro, é muito presente em minha vida. Tenho a impressão de a encontrar na rua, sentada no terraço de um café… As personagens não partem nunca. É como se eu vivesse em um cômodo onde há cada vez mais fantasmas. É um pouco esquisito, porque nos tornamos obcecadas por elas, mas também compensa a solidão.
Em Perfume das flores à noite você menciona estar escrevendo um livro. Era Le Pays des autres, certo? Pode falar sobre a trilogia?
Os livros contam a história de três gerações de uma mesma família. A primeira, a de Mathilde, que é francesa, e Amine, um marroquino, mostra como o casal assume uma fazenda no Marrocos, durante o período colonial, e luta para garantir que o lugar se torne o sustento de todos, num contexto de colonização marcado por racismo e violência. A segunda parte, Regardez-nous Danser, trata dos filhos deles numa época de neocolonialismo, no fim dos anos 60. Eles são hippies, sonhadores e acreditam que vão transformar o Marrocos e o mundo. É um pouco sexo, drogas e rock’n’roll. Esse é um livro que termina bem pessimista, no início da ditadura, que chamamos de “os anos de chumbo”.
‘Queria me vingar dos que acham que você não pode ter sucesso se não vier de um pequeno meio francês’
O último, que estou escrevendo, se passa na globalização dos anos 90 e expõe a imigração de uma elite das nações africanas, que vai estudar nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra. Minha geração era obcecada pelo Ocidente. Pensávamos que só lá poderíamos ter sucesso. O trauma do 11 de Setembro nos fez perceber que havia uma espécie de muro entre nossas civilizações contra o qual todos os personagens continuam se chocando.
Como a sua própria biografia se mescla a essa trilogia?
Parto com frequência de coisas reais, situações que testemunhei, vivi ou me contaram, lembranças que podem ser de meus parentes ou outras pessoas, e começo a criar. Entro na cabeça dos personagens, então, tudo é verdadeiro e tudo é falso. É como se estivesse inventando minha própria família.
Qual dos livros dessa trilogia você teve mais dificuldade em escrever?
O terceiro, porque trata de coisas que vivi e, quanto mais próximo, mais difícil de escrever. A história deve ser universal, portanto é preciso se distanciar um pouco de si mesma. Além disso, há uma aceleração a partir dos anos 90 e 2000. Estamos tão bem-informados que o mundo parece mais fragmentado do que nunca. Eu vivia na França; meus amigos, na Inglaterra; e eu tinha familiares na Espanha, nos Estados Unidos, no Marrocos. É difícil escolher sobre o que escrever. Na década de 50, numa fazenda, o tempo passava mais devagar, as pessoas não acessavam tantos dados.
O que você descobriu sobre sua família escrevendo esses livros?
Que era uma família melancólica e dividida. Que sempre viveu entre dois mundos, com dificuldade de encontrar a própria identidade no país dos outros. Para eles, podemos ser muitas coisas ao mesmo tempo: uma monarquia e uma república; árabes e acreditar em Deus; progressistas e ligados às tradições. Infelizmente, o mundo de hoje nos dá a impressão de que isso é impossível, de que temos sempre de escolher fazer parte de um grupo. Tudo é preto ou branco, não há nuances nem complexidade. Minha família ainda encarna a utopia de que é possível fazer parte de vários mundos.
Você afirma em O perfume das flores à noite que jornalistas costumam lhe perguntar sempre de quais assuntos gostaria de tratar, mas que é o contrário: são os temas que te elegem. Quais te escolheram nessa trilogia?
Acredito que os mesmos temas sempre aparecem de maneira diferente. A decepção, por exemplo, em No jardim do ogro, revela-se na frustração de Adèle com a sexualidade. Em Canção de ninar, é a desilusão de Myriam com a maternidade. Na trilogia, é o desencanto com o exílio e o que é ser estrangeiro. A decepção também pode estar no fato de criarmos uma família e nossos filhos não serem exatamente aquilo que pensamos. Ou estar ligada ao nosso casamento ou aos nossos pais. Diria que é isso: o fato de crescer, envelhecer, o que fazemos das ilusões, de nossas convicções e como continuar a viver apesar das decepções.
Você também afirma no livro que “a literatura não se presta a restituir o real, mas a preencher o vazio”. Quais lacunas desejava completar nessa saga de três gerações?
Precisava mostrar que um país como o Marrocos pode ser tema de uma história universal, assim como a Itália, a França ou os Estados Unidos. Não é porque viemos de um país do Sul Global que nossos romances devem ser exóticos ou tratar de uma pequena parcela da população. Durante toda a minha vida, eu me identifiquei com personagens ocidentais ou norte-americanos. Acho que hoje, franceses ou ingleses deveriam ser capazes de se reconhecer em alguém chamado Mohamed ou Aïcha. Isso parece normal para mim.
Você costuma mencionar essa identificação com personagens. Chegou a dizer que, quando criança, era tão obcecada por autores russos que pediu à sua mãe para lhe comprar um casaco (no Marrocos, onde faz muito calor!), passou a comer pepino e afirmava ser russa. Como é sua relação com a literatura hoje?
Entrei no comitê de leitura da [editora] Gallimard e estou começando a atuar na publicação. Eles me dão manuscritos e eu trabalho neles, o que é apaixonante. Acredito que minha relação com a literatura caminha cada vez mais para a transmissão. Tenho necessidade de compartilhar, ajudar, apresentar novidades. Para mim, a literatura deve ser generosa, permitir aos outros que expressem aquilo que fui capaz de expressar.
Quais são as suas prioridades como editora?
A liberdade. A liberdade de dizer tudo o que está em sua mente, no seu âmago. Quero difundir também a diversidade. Precisamos de várias vozes, de diferentes países e classes sociais. Necessitamos de autores com identidade, distintos do que nos habituamos a ler na Europa.
‘Entre nós, nos defendemos e nos compreendemos, porque não queremos estar encerrados em clichês’
Em O perfume das flores à noite, você escreve que, apesar de serem ambos marroquinos, o escritor Abdellah Taïa e você talvez não se conhecessem se não tivessem saído do Marrocos…
É verdade que mesmo vivendo no mesmo país talvez não conhecesse Abdellah em razão de diferenças sociais e outros elementos que nos separavam.
Como se relaciona com os escritores da diáspora?
Na Europa, desenvolvemos uma solidariedade. Talvez porque tenhamos nostalgia do Marrocos, e também da África, pois tratamos dos mesmos assuntos, que são as dificuldades do cotidiano, os regimes autoritários. Também nos sentimos um pouco incompreendidos pelos ocidentais, que nos colocam em caixas ou têm uma visão caricatural dos africanos. Entre nós, nos compreendemos e defendemos, porque não queremos estar encerrados em clichês. Seja Abdellah Taïa, Alain Mabanckou ou o egípcio Alaa Al Aswany, quando nos encontramos, há algo forte que nos aproxima.
O feminismo segue presente em seus livros, incluindo no que acaba de sair no Brasil. Como tem sido sua atuação como ativista?
Em especial no Marrocos, faço muitas coisas para tentar transformar a sexualidade. Lá, relações sexuais fora do casamento são proibidas, assim como a homossexualidade. Meus livros defendem a descriminalização da sexualidade. Além disso, trabalho com detentas marroquinas, para lhes dar acesso à literatura e emancipá-las pelo conhecimento. Mas o principal é mesmo a escrita. A trilogia que estou finalizando, sobre meio século de gerações de mulheres marroquinas, que mostra como o direito feminino evoluiu ao mesmo tempo que continuamos sendo vítimas de violência e injustiça, é meu maior ativismo.
Você costuma passar temporadas no Marrocos?
Sim, vou sempre. Estou morando em Portugal, portanto ainda mais próximo do Marrocos. Meus amigos e minha família estão lá. Não posso ficar muito tempo sem visitar o país. Preciso dos odores, do ar, da luz, do contato com as pessoas, de ouvir o árabe.
Seus livros fazem sucesso entre as marroquinas?
Muito! No Marrocos, todo mundo é muito doce e gentil comigo. Na rua, as pessoas me abraçam, param para conversar. Jovens mulheres e a comunidade LGBTQIA+ me agradecem.
Como lida com o fato de ser uma referência como os russos foram para você no passado?
Outro dia fui fazer uma conferência em Frankfurt, na Alemanha, e havia oitocentas pessoas na sala. Até hoje me surpreendo e continuo me perguntando: por que vieram me ouvir? Por que preferem ir a uma palestra do que ficar em casa assistindo a um filme? Tudo isso é estranho. Sinto que continuo sendo a mesma Leïla Slimani de sempre, mas vejo que leitoras e leitores são tocados pelo que escrevo, então, tento corresponder ao que esperam de mim.
Matéria publicada na edição impressa #78 em dezembro de 2023.
Porque você leu Literatura
O escritor sem limites
Nas margens do realismo fantástico, obra de José Donoso é redescoberta com publicação de diários que revelam sua personalidade complexa
OUTUBRO, 2024