Literatura,

De pai para filho

Com sua caracterísitica liberdade e fluidez na escrita, Alejandro Zambra narra o mundo que uma criança esquecerá

06maio2024 • 13maio2024
(Rodrigo Jardón/Divulgação)

Alejandro Zambra gosta de escrever em fragmentos, às vezes visíveis na conformação da página, às vezes subterrâneos. Sua literatura se constrói assim, aos suaves trancos, em passagens breves que vão acumulando imagens e sentidos. Da parte, Zambra acredita que se constituirá um todo, coerente, expressivo, valioso. Na soma de olhares que pairam sobre os acontecimentos, o autor confia que pode alcançar algo mais profundo. Passo também a confiar, sem muita convicção, e por isso decido escrever esta resenha em fragmentos, ao seu estilo.

É possível que boa parte da literatura contemporânea venha se construindo dessa maneira, exemplos não faltariam. Por isso às vezes nos vemos indecisos quanto ao seu valor. Os autores podem ser bons, divertidos, inteligentes. Mas nunca temos certeza se de fato alcançam o efeito pretendido. Se é efetiva ou apenas ilusória a profundidade que criam diante de nossos olhos.

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Literatura infantil é um livro desconexo. Muitos dos livros anteriores de Zambra trazem essa marca voluntária, alguns de maneira explícita, como Múltipla escolha. Poeta chileno é seu romance de maior fôlego, e ainda assim traz algo dessa desconexão, súbitas trocas de tema ou de perspectiva no exato instante em que pareceria inevitável chegar à profundidade das coisas. Mas ali não deixa de haver um compromisso maior com uma história e uma proposta estética, ambas bastante envolventes.

Em Literatura infantil prevalece o descompromisso. Cartas ao filho é o que o autor se propõe a escrever, segundo o subtítulo, mas essa proposta só se sustenta por algumas dezenas de páginas. Depois elas são deixadas de lado para a aparição de uma viagem sutilmente lisérgica, um conto sobre a amizade adolescente, um ensaio sobre a tristeza no futebol, alguns relatos de amores e algumas cartas ao pai. Essa última inflexão, embora seja a mais coerente, é também a mais incômoda. Talvez o filho pudesse se sentir traído com esse seu abandono como destinatário principal do livro. Talvez, como ele, também nós possamos nos sentir um pouco traídos.

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Há, porém, muita beleza no que o livro se propõe a ser, e no que de fato é em suas melhores páginas. “Narrar o mundo de que uma criança se esquecerá — tornarmo-nos correspondentes de nossos filhos — é um desafio enorme”, e é esse o desafio que o prosador chileno encara com afinco, antes de traí-lo. Escreve para o filho direto dos primeiros anos de sua vida, desses anos que sofrerão uma amnésia inelutável, lançando para ele despachos dos futuros anos perdidos. “Minha escrita nunca teve tanta razão de ser”, diz Zambra, e nós acreditamos, porque dá para sentir a generosidade desse pai com seu filho, dá para sentir sua devoção e seu apego.

Zambra tem uma coragem que às vezes falta aos escritores contemporâneos: a coragem de narrar acontecimentos leves e alegres, sem temer por isso a futilidade, ou temendo e encarando o risco. Um dos prazeres de ler seu livro é reconhecer uma paternidade real, que foge ao retrato costumeiro das agruras parentais. Lemos sobre dias “cansativos porém felizes, entremeados por dias felizes porém cansativos e por dias felizes porém felizes”. 

Quase no fim, chegamos a uma nova declaração de intenções do autor a respeito do livro: “eu o escrevi, sobretudo, para dividir com meus amigos os mistérios da felicidade”. Que Zambra não tenha medo de lançar, na penúltima página, uma expressão como “mistérios da felicidade”, e que nós a leiamos ainda dispostos a relevar sua pieguice, é forte indício da audácia bem-sucedida desse sujeito.    

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Algo disso tem a ver com a literatura infantil que o livro fugazmente tematiza. De maneira cômica e impiedoso consigo mesmo, Zambra conta de uma editora que o acusou de ter se enganado de gênero, de errar ao escrever para adultos quando seriam muito melhores os seus livros infantis. O autor então assimila essa ideia de maneira sagaz: assume que pratica “algo como um estilo infantil”, e em seguida passa à afirmação justa de que não deveria haver hierarquia entre os gêneros, que não há uma literatura maior, mais séria e respeitável do que outras literaturas. É isso o que agora lhe interessa: escrever com a novidade e o frescor que encontra nos livros infantis.

Enquanto estou imerso nessas páginas, minha filha passa ao meu lado e quer saber o que estou lendo. Leio para ela, então, como se fosse literatura infantil, duas ou três páginas do livro de Zambra. Ela gosta do estilo, diz que acompanha a história, mas que há umas quantas palavras que ela nunca ouviu. E que, não sabe, não tem certeza, mas talvez o sentido geral ainda lhe escape.

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O que espanta em Zambra, e o que produz admiração no escritor um tanto mais travado que sou, é a sua liberdade. Seu pensamento é despojado, sua mão é solta, e isso resulta numa fluidez que transparece nas páginas e se torna o próprio movimento de seus livros. Sua escrita pode suscitar reservas em leitores rigorosos, mas é sobretudo livre.

Na obra em questão, a fluidez se manifesta também numa indefinição de gênero, que o vincula ao hibridismo tão próprio do nosso tempo. Não se sabe bem o que lemos aqui, se são cartas, reflexões, relatos, narrativas. Na liberdade do ensaio, encontramos uma descrição quase justa. Mas o caso é que o ensaio de Zambra é tão livre que às vezes não é mais ensaio, torna-se conto e nada mais. E é claro que aqui também não cabe distinção ou hierarquia, os textos são o que são sem que importe como os chamamos.

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Em seu ensaio sobre o futebol, o autor descreve bastante bem o que faço eu em seus livros, o que talvez façamos tantos de nós leitores presos ali. Zambra fala da “cativante lentidão futebolística”. Observa como comentaristas podem fazer todo tipo de crítica a uma partida, sem nunca temer pela audiência, sem perder a atenção de um público fiel e hipnotizado por movimentos. “Há certa beleza nessas cenas de tédio honesto, sóbrio.”

Me sinto assim diante da literatura de Zambra. Leio cada livro que ele lança, nunca de todo convencido, mas sempre absorto, pensativo. Gosto de sua honestidade sóbria, gosto da agilidade com que ele apresenta um mundo lento. Se o futebol já não fosse o meu futebol, essa literatura dele poderia ser o meu futebol, talvez algo assim o descreva.

Quem escreveu esse texto

Julián Fuks

É autor de A ocupação (Companhia das Letras).