História,

Artes e manhas da esquerda festiva

Heloisa Teixeira analisa o impacto da ditadura na produção cultural dos anos 60 e 70 sob a perspectiva de rebeldes e marginais, protagonistas da criação efervescente da época

01mar2024

Não dá para falar tudo o que ela fez na vida. A dor de cabeça da universidade. Um dos maiores nomes dos estudos de cultura, produção marginal e relação de gênero do país. Simpaticíssima, lendária! Professora, pesquisadora, crítica e… 

“E biscateira”, completa a própria Heloisa Teixeira, dando seu sempre descontraído tom à torrente de frases que tentam defini-la na abertura do documentário Helô

Dirigido por seu primogênito, Lula Buarque de Hollanda, o filme que estreia este ano narra a trajetória de Heloisa desde a juventude até a posse na Academia Brasileira de Letras (ABL), em 2023, é um tesouro que tenta acompanhar a intelectual, sempre alguns passos à frente e disposta a seguir produzindo mais do que nunca. Um sintoma da velhice, defende a imortal, etapa que ela está decidida a recriar. “Nos anos 60, não existia o jovem, que foi inventado pela mesma geração que está inventando o velho.”

É sobre essa turma (a turma dela), artífice de uma das décadas mais efervescentes do século 20, que trata Rebeldes e marginais: cultura nos anos de chumbo (1960-1970), livro em que Helô descreve a gênese e transição de movimentos artísticos de vanguarda sob o impacto do golpe militar, há exatos sessenta anos, e o boom criativo que ocorreu até o recrudescimento da violência de estado com o Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 1968.


Em Rebeldes e marginais: cultura nos anos de chumbo (1960-1970), Heloisa Teixeira reúne teses, livros e textos publicados ao longo de décadas sobre os anos 60 e 70

Numa narrativa vertiginosa, que parte das areias de Ipanema, onde foram concebidos clássicos do Cinema Novo e da Tropicália, a obra explicita alguns dos principais talentos de Helô: ouvir, refletir e apresentar tendências muito antes que outras pessoas se deem conta de seu caráter revolucionário e transformador. Essas características marcam iniciativas como a antologia 26 poetas hoje, de 1976 (reeditada, em 2021, pela Companhia das Letras), que revelou a poesia de Ana Cristina Cesar, Cacaso e Chacal; a Universidade das Quebradas, projeto de extensão lançado, em 2009, para destacar o conhecimento periférico; e a coleção Pensamento feminista (Bazar do Tempo, 2019-20), síntese da teoria de gênero dos últimos cinquenta anos.

Para Rebeldes e marginais, Helô revirou as gavetas e reuniu sua extensa manufatura sobre os anos 60 e 70, tema de teses, livros e textos publicados por ela ao longo de décadas. Ao fim, QR codes dão acesso a documentos audiovisuais e entrevistas exclusivas com artistas como o cantor e compositor Gilberto Gil, o poeta Ferreira Gullar, o cineasta Cacá Diegues e o dramaturgo Zé Celso Martinez Corrêa. “Isso é uma história da pesada”, diz ela. “É uma experiência editorial de botar no papel o som e a imagem, além de divulgar fontes, uma coisa que devemos começar a estimular.”

Protagonismo

O que Rebeldes e marginais não esmiúça é o protagonismo da autora, uma das únicas teóricas a tratar dessa época sob a perspectiva de gênero — no livro Feminista, eu? Literatura, cinema novo, MPB (Bazar do Tempo, 2022). É aí que entra em cena o documentário Helô, que em saborosos relatos mostra sua participação no filme Macunaíma, do amigo Joaquim Pedro de Andrade (“Não tenho nenhuma fala: sou péssima atriz”, diz ela); traz depoimentos sobre a anárquica festa de Réveillon na casa dela, em 1968, reunindo a nata do Cinema Novo; e apresenta os bastidores da eleição para a ABL. Na cena, cercada pela família, Helô recebe uma emocionada mensagem de Fernanda Montenegro anunciando sua vitória, em 2023.

Ao lado de outros quatro livros, é a ABL que concentra as atenções de Helô nos próximos anos. “É uma instituição em que as pessoas acreditam e respeitam, e desse poder simbólico podem sair coisas para iluminar a sociedade”, acredita. Entre seus planos para a Academia Brasileira de Letras estão um evento reunindo feministas para tratar dos sessenta anos do golpe militar; uma formação de escritores periféricos em parceria com a Universidade das Quebradas; e encontros que irão discutir a negritude na obra de Machado de Assis. Ou seja, estamos longe de listar tudo o que Helô fez e ainda está por fazer. 

Helô descreve a transição dos grupos artísticos de vanguarda sob o impacto do golpe militar

Em entrevista à Quatro Cinco Um (também disponível, em versão mais extensa, no podcast 451 MHz), ela analisa o impacto da ditadura na produção cultural dos anos 60, 70 e 80 e fala sobre seus projetos.

Em Rebeldes e marginais, você descreve a gênese de movimentos culturais como o Cinema Novo e a poesia marginal, mas menciona pouco sua participação como personagem e protagonista desse cenário.
Minha profissão é dar voz aos outros. Faço a mediação. É assim que trabalho, crio e penso. Tenho dificuldade em me definir como protagonista. Eu estava ali. Era amiga. Na geração de 60, tinha festa, passeata e praia. Eram as três arenas políticas da esquerda festiva, que era chamada assim porque, em vez de fazer guerrilha, de ir à luta de fato, ficava na praia, dizendo que estava revolucionando.

Não era povão nem se articulava com o povo. Tratava-se de um segmento de classe média, mas que descobriu que o comportamento e a cultura eram áreas políticas também, e ali ficou sitiada. Por isso, quando você fala de eu ser protagonista, fico de cabelo em pé, porque é a protagonista da praia, entendeu?

Como ocorriam as articulações?
A praia era onde se pautava a passeata, o show, a festa. Você tem que lembrar que não tínhamos imprensa naquele momento. O único instrumento era uma rede oral. Havia até uma frase, que hoje poderia ser um meme, que era “espalha, espalha”. Se alguém era preso, você contava para o vizinho, que contava no trabalho, na escola. Era um meio de comunicação único, porque usar o telefone era perigoso: todos estavam grampeados. E o principal canal do “espalha, espalha” era entre Ipanema e o Arpoador. 

Quem era essa esquerda festiva?
Tinha a turma do Cinema Novo, a gente acompanhava os filmes sendo inventados. O pessoal do Teatro de Arena e do Oficina, que às vezes vinha de São Paulo para o Rio. Toda a MPB estava ali fazendo projetos, discutindo e tal. Um pouquinho depois, chegou a poesia marginal. Era o quartel-general de uma cultura que não aquela do PC [Partido Comunista].

O “festiva” vinha do fato de usar o comportamento como forma de fazer política. Caetano e Gil, por exemplo, foram presos por suas condutas, por drogas. Eles foram exilados políticos porque a maneira como eles se comportavam não era aceita. Caetano passava um batom, pronto: fechou o tempo. Era essa a cultura dos anos 60 e 70.

Ler a descrição dos acontecimentos dessa época em seu livro dá uma sensação de vertigem…
Isso ocorre porque uma das características dessa geração é uma total falta de autocrítica. Eram voluntaristas: o que você quer, acontece. Então, quando os militares deram o golpe, todo mundo foi pego de surpresa. Ninguém imaginava. Não existia um analista para focar, tematizar, pautar essa coisa que estava sendo gestada. Éramos todos “unidos venceremos e já vencemos”. Quando chegou 1964, deu uma zonzeira. Perdemos.

O que você fazia nessa época?
Estava no CPC [Centro Popular de Cultura, ligado à União Nacional dos Estudantes], que era uma maravilha. A gente lotava uma Kombi e ia para uma favela. Lembro do Arnaldo Jabor, no esplendor de sua beleza, aos vinte anos, vestido de Tio Sam, e todos nós jogando ovos nele e gritando: “Fora imperialismo!”. Era de uma audácia! O CPC levava às favelas certa consciência política, que hoje seria impensável, porque a favela sempre teve consciência política, mas não sabíamos. Na verdade, não é que a gente não soubesse. A gente não respeitava, não ouvia. 

Qual era sua função no CPC?
Fazia cultura. O CPC do Rio foi pura cultura. O de Pernambuco se voltou à alfabetização, com Paulo Freire. Apesar desse gesto de evangelizar, de colonizar, os centros populares de cultura tiveram momentos lindíssimos. Havia uma ligação forte entre as bases organizadas e os agentes. O ativismo era articulado às ligas camponesas, aos sindicatos operários. Em 1964, isso acabou. Prenderam todo mundo. Ninguém mais falava com ninguém. Então, essa energia cultural ficou zanzando no ar. 

‘Na geração de 60, festa, passeata e praia eram as três arenas políticas da esquerda festiva’

Como essa potência se rearticula após o golpe?
Em dezembro de 1964, essa energia revolucionária que estava flutuando e se viu desarticulada de repente entrou em cena com o [musical] Opinião. Nesse momento, em vez de falar com as bases, como no período do CPC, passou-se a falar com outro público. Assim surgiu essa cultura de classe média para a classe média, mas trazendo novas saídas comportamentais, políticas etc. O Opinião foi um show muito feliz, pois lançou e tematizou esse problema, com Nara Leão, uma menina rica da zona sul carioca, dialogando com Zé Keti, um favelado. Esse encontro foi explicitado ali: Era possível essa conversa? O que a gente está fazendo no mesmo palco? É uma época de conscientização bonita, em que se perde o tom evangélico para inventar novas formas de comunicação. E isso mobiliza. O Opinião, por exemplo, era um espetáculo a que você ia na segunda, na quarta, no sábado… Ali começa a se desenvolver uma massa crítica e política que tem força e extensão.

Como assim?
Em qualquer vídeo do Festival da Canção, você vê quanta gente estava nesse barco aos gritos, emocionada, achando que está fazendo revolução. Aí volta o sonho de mudar tudo. A sensação era: “Ganhamos”. Ninguém foi preso, os intelectuais estavam ali, o Chico [Buarque] tocando. Era como se o golpe não tivesse prejudicado porque, de 1964 a 1968, houve um boom de criatividade, com coisas que são o cânone até hoje.

Foi um momento de maturidade?
Não teve tempo de maturar. Passou para outro nível na porrada. Até 1968, ninguém achava que ia ter AI-5. A Passeata dos Cem Mil [junho de 1968] foi uma vitória. No dia seguinte, estava todo mundo preso, mesmo assim ela foi experimentada como uma conquista. A falta de senso crítico, análise política e contexto continuou. E aí a barra pesa de vez [com o AI-5, em dezembro de 1968].

E o que acontece com a cultura? 
Depois de 1964, há uma nova cartilha do governo que não é só política e inclui a família, Deus e a pátria. É uma direita mais completa, que integra o conservadorismo moral. Aconteciam coisas como [a polícia] invadir o palco em que estava sendo encenada a peça Antígona [de Sófocles] para prender o autor subversivo. Se você ler o Febeapá [Festival de besteira que assola o país, livro de Sérgio Porto, vulgo Stanislaw Ponte Preta] fica espantada com a extensão da ignorância [dos militares]. Enquanto isso, lá fora, havia uma contracultura internacional, mais violenta do que a nossa, em que a juventude realmente sai do sistema e decide que não vai mais trabalhar nem estudar, tentando reinventar uma sociedade em que isso não seja um pilar. 

Mas é preciso lembrar que os anos 60 só puderem acontecer porque a gente estava “numa nice”, no sentido de que a economia era estável. Aqueles meninos, eu, podíamos olhar para o papai e dizer: “Tô fora, não estudo mais”. Logo depois, a economia foi para o brejo com a crise do petróleo [1973]. Lembra do John Lennon cantando “The Dream Is Over”? O sonho acabou em consequência do petróleo. Não tem mais dinheiro, todos têm de voltar para seu emprego. Aqui, além de a economia se ressentir, acontece o AI-5, o golpe militar diz a que veio e começa a prender, matar, torturar… Nesse momento, você vê que tem que pular fora mesmo ou vão pular fora com você. É uma fase bem diferente, em que é preciso se reinventar. Dito isso, havia uns menininhos que estavam de bobeira, maconhados, que começam a ganhar espaço. Isso é que acho sensacional na cultura: você corta aqui, aparece lá. 

Essa é a turma dos movimentos marginais?
Sim. A cultura dos anos 70 é deslumbrante, mas sem a visibilidade da década anterior em razão da censura. Nada aparece muito, mas há uma nova linguagem, que é a do “não”. A poesia marginal sai do sistema editorial. Ela diz: “Não vou ser vendida”. Cada um faz os próprios livrinhos e inventa uma nova distribuição, de mão em mão, num contato direto com o leitor. Olha, era uma merda. Você não sabe o que era ir ao cinema naquela época: tinha uns dez poetas marginais querendo vender livros para você. Você não tinha direito a comprar uma pipoca. E eles também liam o poema. Era uma performance eterna. E isso leva o poeta a ser sabe o quê? Herói de novela. Ou seja, a poesia marginal existia, porque a Globo só colocaria um poeta marginal como protagonista se ele fosse uma figura muito conhecida.

A Heloisa dos anos 60 estava na praia e no CPC. E na década de 70?
Nos anos 70, eu era a garota da poesia marginal, que foi meu campo maior de trabalho. Os poetas se reuniam na minha casa, que tinha uma sala e dois quartos: um era meu, o outro, das crianças [Heloisa tem três filhos]. Com o Charles [Peixoto, poeta e roteirista], eu tinha um programa de rádio semanal, o Café com letra, em que a gente conversava com todo mundo na minha cama. Era igual aos poemas: totalmente artesanal. Uma vez, fizemos uma entrevista importantíssima, não me lembro mais com quem, mas o som ficou péssimo. Aí o Charles pegou o microfone e disse que estávamos falando diretamente da ponte Rio-Niterói. Era um sarro. 

‘Nos anos 70, eu era a garota da poesia marginal, que foi meu campo maior de trabalho’

Além desse, eu tinha outro projeto de rádio na faculdade, o Culturama, o programa estudantil sem drama, em que a estrela era Regina Casé — que ainda não era “a” Regina Casé. Quando a abertura [política] foi declarada, entrevistamos Zuenir Ventura e vários jornalistas da pesada em uma boate gay. A abertura significava sacanagem e liberdade política. Uma zorra total. 

Sua produção de documentários também é desse período?
Sim. Um deles foi sobre o doutor Alceu Amoroso Lima, que é o único registro que se tem dele. Doutor Alceu assinava uma coluna que não passava por censura. Ele escrevia sobre liberdade, ditadura, e nada acontecia, porque ele falava com o papa. Se mexessem com ele, poderia se tornar um escândalo internacional. Também fiz um documentário sobre Raul Bopp, um poeta modernista e maconheiro genial. Ele fez um poema só, a vida inteira, Cobra Norato. São não sei quantas edições, e em cada uma ele mexia um pouquinho. Fiz um estudo desse poema, e ele sempre falando da diamba, que era a maconha. Raul ficava escrevendo com a diamba no Amazonas. Também filmei o Joaquim Cardozo, engenheiro de Brasília, e o Asdrúbal [Trouxe o Trombone, grupo teatral], pelo qual era apaixonada. 

Quem mais se destacava na cena marginal?
Além dos poetas, tinha os cineastas, que pegam a rabeira do Hélio Oiticica com a coisa do “Seja marginal, seja herói”, porque a prisão agora era política. O bandido não era aquela pessoa presa por ter batido carteira, e sim por falar algo indevido. Então, há uma cinematografia tratando de bandidos, violência, sangue, prisão, que é a do Júlio Bressane, Rogério [Sganzerla], Ivan Cardoso. Eles eram talvez até mais talentosos do que os poetas marginais. Nas artes plásticas, acontecem os happenings na rua mesmo, acordando a burguesia. Num deles, no Dia de Tiradentes, Cildo Meireles pendurou em um totem galinhas vivas, que significavam a violência da ditadura, e pôs fogo nelas. Ele podia ter sido morto na hora, mas a performance era muito sofisticada. Ninguém dizia “abaixo a ditadura”. O [Artur] Barrio também fez coisas geniais, com sangue rolando pelos rios. Essa arte alternativa dos marginais tem uma força inacreditável. Em 1979, quando cai a lei da censura, ninguém sabe o que fazer. Foi um vazio total. 

Dá para dizer que os anos 80 foram uma Quarta-feira de Cinzas?
Do ponto de vista erótico, sim. O Eros foi para o brejo. Mas é nos anos 80 que começa a se configurar a pluralidade da nossa cultura. Os anos 60 e 70 são maravilhosos, lisérgicos, mas de um autoritarismo cabal. Assim era o mundo, assim deveria ser. Não existiam outras vozes fora a do estudante ou do jovem branco de classe média, que era o agente por excelência dos anos 60 e 70. Claro que você tinha um cinema negro, uma poesia negra. Mas não comandavam. E ninguém podia ser velho também. Nos anos 80, isso começa a se diluir, o que não tem preço. Perdeu-se a festa, mas se começa a metabolizar a digestão de outros sujeitos. É o momento em que os movimentos sociais, de mães, negros, entre outros, começam a vir a campo.

De tudo isso que você me contou, quais foram os momentos decisivos para você ser a intelectual de hoje?
O Cinema Novo e o Festival da Canção, porque foi pelos quais me alfabetizei. Participei do grupo do cinema novo intensamente. Tanto que larguei o marido e casei com um deles. Eu era uma aluna da puc, de esquerda light, e a convivência diária com os cineastas me levou a deixar tudo para trás. Saí de uma casa linda com três filhos, deixando talheres, pratos, guardanapos…

A prataria toda?
A prataria ficou, e eu fui atrás do trio elétrico. Fui atrás do cinema novo, dessa vida e visão de mundo que queria interferir, mudar as coisas, e que não me largou mais. 

Você diz que após passarmos a ver o mundo pela lente feminista, não tem como voltar atrás. Esse era um ambiente muito machista?
Eu não percebia. A época era de um autoritarismo absurdo. Eles eram a turma dos cafajestes. Por isso te digo que, apesar do anticlímax, os anos 80 foram importantíssimos. 

No livro, você afirma que o fator decisivo para compreender os anos 60 são as formas de luta e resistências culturais que levaram à “descoberta do outro”. Por quê?
Porque achamos que apareceu uma pílula [anticoncepcional] ali, a saia encurtou aqui, surgiu o rock and roll, e não foi bem isso. Vivíamos um momento político específico de descolonização. Aquele monte de independências que cito no livro [de países africanos como Guiné, Angola e Moçambique] muda a configuração internacional. Pessoas que não tinham voz começam a falar, e isso leva à reelaboração da própria ideia de poder e escuta. Foi nesse momento que joguei todo o meu corpo fora e fiquei só com o ouvido. É uma mudança de paradigma total, e isso raramente é tratado quando se fala dos anos 60.

Essa mudança acaba se refletindo também no comportamento?
Sim, porque começamos a enxergar culturas que não a europeia e a norte-americana. Você vê hippie indo para a Índia botar aquelas roupas locais, experimentar outros tipos de comida. O Oriente chega na onda de pensamentos de abertura da psique. O LSD era um instrumento de autoconhecimento, não de dar barato nas festas.

‘Olha o que eu escrevi lá atrás, e estava tudo perdido. Olha quem eu ouvi e ninguém mais ouviu’

O psicólogo te dava uma pílula e começava a te analisar. Uma coisa impensável. Timothy Leary fazia isso na sala de aula: toma todo mundo e vamos pensar. Havia uma determinação de conhecer outras coisas, que respondia à ordem internacional. Fica fácil perceber que revolução é essa se lembrarmos disso.

A centralidade dos jovens que você menciona é outra característica descrita no livro como uma novidade dos anos 60. Por quê?
O jovem foi inventado. Até então, o que existia era uma divisão por classes: tinha proletário, patrão, burguês, classe média, aristocrata etc. Eventualmente, cor e etnia separavam as pessoas. Mas a invenção do jovem aglutinou tudo. O jovem era padre. O jovem era preto. O jovem era pobre, rico, de classe média. Ele se desfez de todas as outras atribuições e marcas políticas. O jovem era uma categoria política. Essa mesma geração é a que está inventando o velho.

Como é a velhice da geração de 60?
Somos velhos há muito tempo, mas estamos nos dando conta só agora e fazendo o contrário do que inventou o jovem. É um movimento capitalista, de pegar tudo o que você tem e potencializar. O Gilberto Gil, por exemplo, juntou toda a família e fez programa, disco, turnê. O Caetano também. Esse livro, Rebeldes e marginais, é uma maneira de dizer: “Olha o que eu escrevi lá atrás, e estava tudo perdido. Olha quem eu ouvi e ninguém mais ouviu”. É um gesto de doar, de se autoexplicar, de continuar andando e falar muito. Pode ser por meio da música, do balé, mas não dá para parar de contar, como um bom velho faz. 

Tenho mais quatro livros para os próximos dois anos, um sobre a velhice, porque é fascinante. E o bonito é que, ao contrário da geração anterior, esta não quer ser jovem. Quer dizer, querer todo mundo quer, né? Mas ela não quer se disfarçar de jovem. Isso é uma novidade boa, porque aquela coisa de harmonizar, fingir, botar roupa, não sei o quê! Eu sou velhíssima.

Quem escreveu esse texto

Adriana Ferreira Silva

Jornalista, escritora e palestrante, trata de temas como desigualdade de gênero e liderança feminina.