Jornalismo,
Crônica judicial
Emmanuel Carrère traz um relato valioso do julgamento do ataque terrorista que matou mais de cem jovens em Paris em 2015
01set2024 • Atualizado em: 30ago2024 | Edição #85O que teria levado Emmanuel Carrère, um dos mais importantes escritores da França, a querer cobrir o julgamento dos responsáveis pelos atentados de Paris em 2015? O mundo inteiro tinha ficado assombrado naquela terrível noite da sexta-feira, 13 de novembro, quando dezenas de jovens foram dizimados enquanto se divertiam num show no Bataclan, enquanto uma série de outros ataques aconteciam na capital francesa. Agora, o caso ia ser apreciado pela Justiça.
Os próprios editores do Nouvel Obs (antigo L’Obs) achavam que Carrère não teria a abnegação necessária para passar meses inteiros num tribunal de segurança máxima, ouvindo audiências cansativas e intermináveis. Mas foi o que aconteceu e que agora vem narrado com minúcias nesse V13, como ficou conhecido o processo do Vendredi 13. Emmanuel Carrère passou dez meses, de 2 de setembro de 2021 a 7 de julho de 2022, sentado sem nenhum conforto na sala de audiências, tomando notas em um caderno vermelho grosso. Para ter uma ordem de grandeza, o longo processo chegou a ter 542 volumes — uma pilha de mais de 2,5 metros.
O escritor entregava na redação, uma vez por semana, a matéria mais ou menos do tamanho desta resenha. Esses artigos depois serviram de matéria-prima para o livro que é, sem dúvida, o registro mais valioso desse julgamento histórico. Carrère descreve e comenta não só o que ocorreu no Palácio de Justiça de Paris, mas também os antecedentes, os bastidores, os personagens, o ritual, o clima na Corte.
A França proíbe, desde 1954, a captação de imagens ou sons nos tribunais, em especial para não devassar os julgamentos de grandes crimes com participação do júri popular. Hoje são os desenhistas forenses, uma dezena na França, que fazem as ilustrações que saem nos jornais.
O escritor francês passou dez meses sentado sem nenhum conforto na sala de audiências, tomando notas
As colunas policiais e de julgamento estão entre as matérias mais lidas no noticiário francês. Para Roland Barthes, a atração por esse noticiário dito de faits divers tem um lado misterioso e irracional: o acaso, a monstruosidade, a estranheza, cegamente ligados a fantasias sociais. Além disso, a crônica judicial se tornou um elemento importante para o estudo da história política e social, junto a outro material riquíssimo que é a publicação integral de processos.
Quando indagado sobre seu interesse, Emmanuel Carrère deu algumas pistas numa entrevista de 2022 na rádio France Inter: “Fui um pouco apalpando o terreno, dizendo a mim mesmo que já tinha, em diversas ocasiões, escrito sobre a Justiça, e que este julgamento ia ser um exercício gigantesco e inédito da Justiça. Também me interesso pelas religiões. Mesmo que eu não seja muçulmano, nem islamologista, ou especialista em árabe… As mutações patológicas das religiões me interessam”.
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Aí entra a questão da verdade: “Disse a mim mesmo que iríamos ouvir as pessoas que passaram por aquela noite terrível e que haveria palavras de verdade. […] se depois de alguns meses eu quisesse parar, ia parar. Mas o desejo de escrever sobre este julgamento permaneceu, mesmo quando era tedioso. Então, uma comunidade foi formada em torno da história deste julgamento. Uma parte civil, a quem foi perguntado o que esperava deste julgamento, disse: ‘Estou esperando que isso se torne uma história coletiva’, e foi isso que vimos. Foi algo terrível, devastador, mas também lindo.”
Carrère foi entrevistado também no La Grande Librairie, o mais importante programa literário da televisão francesa. Para ele, a diferença entre um cronista forense e outro não é a informação; é a sensibilidade, o olhar, a interpretação. “Foi uma das experiências mais devastadoras em alguns aspectos. Eu ouvi, nós ouvimos coisas de grande intensidade humana; ao voltar para casa eu acordava chorando à noite, eu dizia: ‘Vergonha’, porque estávamos todos no mesmo barco. Mas também houve esse tipo de companheirismo, de uma humanidade muito, muito, muito forte, o que significa que esta provação é, para mim, uma das experiências mais importantes da minha vida”.
Provação
Talvez o mergulho de Carrère no buraco negro do V13, a necessidade dessa “provação” de que fala, seja uma espécie de penitência, uma experiência humana também radical, mais do que assunto para jornal ou livro. Nas páginas iniciais, ao narrar o primeiro dia do julgamento, escreve:
Vamos ouvir experiências extremas de morte e de vida, um dia depois do outro, e acredito que, entre o momento em que entrarmos nesta sala de audiência e o momento em que sairmos dela, alguma coisa em todos nós terá se transformado. Não sabemos o que esperamos, não sabemos o que vai acontecer. Vamos em frente.
Em Ioga, seu livro anterior, publicado na França em 2020 (e eleito um dos melhores lançamentos de 2023 no Brasil pelos colaboradores da Quatro Cinco Um), Carrère começa contando que estava bem. Tinha vivido os dez melhores anos de sua vida, que fora repetidamente perturbada por episódios depressivos. Como queria escrever um livro sobre a ioga, tinha ido para um retiro no Morvan, onde ficaria dez dias em silêncio. Foi lá que recebeu a notícia da morte de um amigo no atentado do Charlie Hebdo de 7 de janeiro de 2015, poucos meses antes do ataque ao Bataclan. “Eu tinha planos coerentes que a vida se encarregou de explodir”, disse à Quatro Cinco Um em 2023.
Emmanuel Carrère fala de jornalismo, depressão, ioga e o narcisismo como ferramenta de escrita
Misto de romance e autoficção, Ioga foi escrito em 2017 e relata o desastre emocional causado, entre outros fatores, pelo fim de seu segundo casamento, a crise dos refugiados e o terrorismo jihadista: “Mergulhei a tal ponto numa depressão melancólica que precisei ser internado por quatro meses no hospital Sainte-Anne”. Lá Emmanuel Carrère foi tratado até com eletrochoques.
Justiça
O processo do atentado ao jornal satírico Charlie Hebdo ocorreu em 2020. Catorze pessoas foram julgadas e condenadas em Paris perante o tribunal especial. O julgamento, dessa vez, foi todo filmado; abriram uma exceção, mas o registro foi guardado para ser visto só no futuro, como documento histórico.
Com V13, Emmanuel Carrère transforma seu relato em outro documento histórico — sobre o mais mortífero atentado na França desde a Segunda Guerra. O estilo de Carrère — o mais instigante escritor vivo, segundo Karl Ove Knausgård — é rotulado “romance de não ficção”. Seu livro O adversário, de 2000, é considerado uma espécie de A sangue frio francês, uma referência àquele que é considerado o primeiro romance de não ficção, um pioneiro do novo jornalismo americano, publicado por Truman Capote em 1966.
Carrère escreve a partir da vida pessoal e de fatos e reportagens, sempre com referências políticas e filosóficas. Suas obras, ele define em entrevista à Paris Review, “são construções novelísticas nas quais utilizo todos os tipos de artifícios romanescos, com os quais me esforço para manter constantemente o interesse do leitor, para criar medo, pena, identificação, suspense, e o desejo de continuar virando as páginas. Então, tudo que você tenta fazer num romance, eu tento também, com a única diferença de que não é ficção. […] Agora, muda alguma coisa o fato de o que estou escrevendo ser verdade? Sim, tenho certeza que sim”.
O relato do julgamento dos atentados de Paris se divide em três partes, colocando em primeiro lugar as vítimas, depois os réus e, por fim, a Corte. As vítimas comparecem como testemunhas e podem ser partes civis, pleiteando uma reparação instituída pelo Estado para as vítimas de terrorismo. Por cinco semanas, foram tomados os trágicos depoimentos dos sobreviventes e das pessoas próximas dos mortos.
Talvez o mergulho de Carrère no buraco negro do ‘V13’, seja uma espécie de penitência
Ao analisar o papel dessas vítimas, a pesquisadora Sandrine Lefranc afirma que a Justiça, nesse caso, faz lembrar o papel das Comissões de Verdade, instituídas após o fim das ditaduras, ao acolherem as vítimas para que possam expor o mal e as dores que sofreram. O tempo destinado a essa escuta foi excepcional para uma Justiça que, até por falta de tempo, em geral é mais fria.
Entre os réus, Salah Abdeslam disse, logo no início do julgamento: “Tudo isso que vocês falam sobre nós, os jihadistas, é como se vocês estivessem lendo a última página de um livro. O que vocês precisavam fazer é ler o livro desde o começo”. Carrère quer entender os motivos dos acusados e o papel de cada um, muito além dos lugares-comuns da acusação. O autor vê na frase de Abdeslam uma alusão às atrocidades cometidas no passado pelos países coloniais e, ainda recentemente, pelos países por eles apoiados.
Depois das alegações finais, vem o julgamento. Tanto a acusação quanto a defesa são de altíssimo nível. Carrère não tem mais dúvidas sobre a culpabilidade dos acusados, mas entende que as penas aplicadas são desproporcionais. Os principais responsáveis morreram todos durante o ataque, não podem mais ser julgados. A eles caberia a pena máxima que foi aplicada a Salah Abdeslam, cujo papel acabou não tendo a mesma predominância.
O islamismo violento é uma realidade; os atentados se sucedem e continuam atingindo pessoas inocentes. A suposta retaliação também atinge inocentes: o racismo, a intolerância e a discriminação só aumentam. A questão da imigração está no centro da discussão política e eleitoral, favorecendo os radicais de direita. Nesse mundo de conflitos, o livro de Emmanuel Carrère acaba sendo, além de uma ótima leitura, uma grande lição sobre a complexa questão da verdade. Mostra, com sensibilidade e empatia, o funcionamento de uma Justiça que se esforça para ouvir todas as partes, acolher as vítimas e, no final, estabelecer os fatos.
Matéria publicada na edição impressa #85 em setembro de 2024. Com o título “Crônica judicial”
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