Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Vidas que não a dele

Emmanuel Carrère compara escritor a torturador ao apontar uma suposta mudança em sua literatura encharcada de ambiguidade

22mar2023 | Edição #68

Emmanuel Carrère é um virtuoso na evasão de privacidade, principalmente da própria intimidade. Em Ioga (Alfaguarra), seu mais recente, digamos, romance, esboça uma brevíssima teoria do movimento inverso — ou seja, do que está em jogo quando se transforma os outros em personagens. Falar de si, é óbvio, é falar de quem está em volta. No caso de Carrère, daqueles que, em livros como Outras vidas que não a minha ou Um romance russo, protagonizam, quase sempre à revelia e sem disfarces, histórias que talvez não cogitassem compartilhar. A menos, é claro, se fossem próximos ao escritor.

    

Sua referência não vem das cordilheiras de teoria literária francesa, mas de uma página suja da História. Herói na Segunda Guerra Mundial, o general Jacques Massu se celebrizaria pelo uso sistemático da tortura, sobretudo nas batalhas coloniais da Argélia. O mundo deve a ele a tecnologia da gégène — na sucinta definição de Carrère “a aplicação de um gerador elétrico sobre as têmporas, as orelhas e, caso seja homem, nas bolas da pessoa interrogada”.

‘Eu paro quando quero, digo e silencio sobre o que quero, sou eu que decido onde posicionar o cursor’

Quando assumiu seus crimes com a serenidade peculiar dos que se sabem impunes, Massu defendeu a gégène em termos repulsivos: “não faz tão mal assim: a prova é que a testei em mim mesmo”. Na hipérbole de Carrère, o escritor que se serve da própria vida faz, qual o general, uma espécie de experimento: afinal, quando a coisa aperta no papel ou na vida, é só deletar — ou desplugar os eletrodos. Já ao personagem involuntário, restaria pouco mais do que a dor.

“Eu paro quando quero, digo e silencio sobre o que quero, sou eu que decido onde posicionar o cursor”, argumenta. “Enquanto que, escrevendo sobre os outros, você passa ou pode passar para o lado da verdadeira tortura, porque quem escreveu tem plenos poderes e aquele sobre quem se escreveu está à sua mercê”.

A imagem do escritor como torturador não é livre de autocomiseração. Ioga, como se sabe, nasceu à sombra de um portentoso barraco. Foi lançado na França em 2020 depois da ex-mulher de Carrère ter ganho na justiça o direito de não mais ser sua personagem. Jornalista célebre, Hélène Devynck vetou trechos inteiros do livro e, insatisfeita com a versão publicada, chegou a cogitar novo processo.

Pieguice dúbia

“Não sou um homem bom. Eu gostaria de ser, daria minha vida e minha alma para ser um homem bom”, escreve Carrère, à beira do abismo da pieguice tão estranha a seu estilo e, ao mesmo tempo, tão dúbia. Pois não é mero detalhe que, antes de apresentar a teoria do escritor-torturador ao leitor de Ioga, ele a tenha defendido diante de um jornalista, aquele profissional que, já dizia Janet Malcolm, vive da bondade de estranhos e se sabe “moralmente indefensável”.

Em outubro de 2016, Wyatt Mason, da New York Times Magazine, viajou a Paris especialmente para entrevistar o escritor. “Como Emmanuel Carrère reinventou a não ficção”, anuncia o título do longo perfil publicado quase cinco meses depois, quando O reino saiu nos Estados Unidos. Mason, que estudou literatura na França e é escritor residente no Bard College, se lambuza em superlativos: “maior escritor francês vivo de não ficção” (Michel Houellebecq ocuparia o mesmo posto na ficção), Carrère “desafia categorizações” por ter inventado “novas formas de incluir a primeira pessoa”, produzindo “uma obra-prima após a outra”.

Narrados por Carrère numa manobra intricada, os encontros com o entrevistador não sugerem, no entanto, a reverência que poreja no texto publicado na revista. Mason é, pelos olhos de seu personagem, um observador perspicaz e judicioso, que entra em Ioga como testemunha confiável da crise psiquiátrica então vivida por ele. “É raro que um jornalista expresse impressões tão íntimas assim a respeito da pessoa que entrevistou”, observa. “É o tipo de coisa que eu poderia fazer; eu, e que Wyatt Mason fez com delicadeza bondosa e pesarosa”.

A imagem do escritor como torturador não é livre de autocomiseração. ‘Ioga’ nasceu à sombra de um portentoso barraco

O jornalista, esse jornalista, seria, portanto, uma versão moralmente edulcorada do próprio Carrère, em crise pelas supostas maldades cometidas ao teclado. Talvez por isso o generoso Mason incorpore, sem objeções, a cena do entrevistado que fala sobre angústia recostado num divã, “como um analisando”. Ou registre, com boa vontade e sem comentários, o momento em que seu personagem saca um iPad e lê em voz alta a introdução dos Ensaios, de Montaigne, “como se tivesse acabado de descobri-la”.

Não ficamos sabendo o que teria chamado a atenção de Mason para além do gesto estudado de Carrère. Imagino a cena e não posso deixar de lembrar que, ao se apresentar, Montaigne é didático na construção da suposta sinceridade da primeira pessoa: “Quero que me vejam aqui em meu modo simples, natural e corrente, sem pose nem artifício: pois é a mim que retrato. Meus defeitos, minhas imperfeições e minha forma natural de ser hão de se ler ao vivo, tanto quanto a decência pública me permitiu”.

Até as peripécias descritas em Ioga e depois do imbróglio em torno do livro, Carrère se diz convicto de que literatura é “o lugar onde não se mente”. O romance apontaria uma mudança de ponto de vista a partir do momento em que admite ter simplesmente se inspirado em pessoas reais para criar alguns dos personagens decisivos. Quando “a ficção assume o controle”, as pessoas em torno viram “inspiração” e o autor assumiria, pelo menos em tese, a responsabilidade de não atingi-las por cálculo ou descuido.

Tudo resolvido? Estamos conversados? Com a palavra, o autor: “Existe um critério que nos permita adivinhar se uma história que lemos é verídica ou ficcional? Se um retrato, em um museu, é de uma pessoa real ou de um personagem imaginário? Não sei a resposta, mas parece que intuitivamente, sem conseguir explicar, nós sentimos”.

Pois, talvez “intuitivamente”, “sinto” que Emanuel Carrère anuncia essa mudança para daqui em diante ser ainda mais Emmanuel Carrère.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #68 em março de 2023.