Alimentação,

As fake news da cozinha italiana

Do parmesão ao ‘spaghetti di grano duro’, historiador desmonta lendas sobre as origens e a autenticidade de comidas ‘típicas’ da Itália

13set2024 | Edição #88 nov
Publicidade dos anos 50 de spaghetti da marca norte-americana Chef Boy-Ar-Dee (Reprodução)

As mentiras da nonna não é exatamente um livro de comida — é, sim, de história. E quem costuma ler sobre comida para se deliciar com anedotas fabulosas e detalhes hiperespecíficos sobre pratos e ingredientes pode se irritar. Mas outra coisa a ser dita sobre esta leitura é que ela é boa. De maneira bem geral, Alberto Grandi dedica toda sua energia a destruir as anedotas míticas e precisões exageradas que sustentam a cozinha típica italiana. Ele chega a ser chato.

Qualquer pessoa que goste de falar sobre comida, especialmente em torno da mesa, vai gostar de ter lido esse livro. Se você vai além e gosta mesmo é de dominar a conversa do jantar (um hábito um pouco chato, mas bem comum), aí, sério, você tem que ler. As mentiras da nonna dá motes infinitos para chamar a conversa para si, com a vantagem de informar seus ouvintes. Mas cuidado, dependendo da turma, pode render bate-boca.

Cada capítulo é dedicado a desmascarar as lendas de determinado produto típico italiano. Também inclui um glossário de termos sobre tipicidade e uma bibliografia dividida em “para quem confia” — mais curta, para quem concordar com o autor e quiser seguir a leitura — e “para quem não confia” — mais longa, para quem precisar ser convencido de que Grandi não está inventando tudo.

Denominação de origem

Publicado na Itália, em 2018, como Denominazione di Origine Inventata (Denominação de Origem Inventada), o título fazia uma provocação à Denominação de Origem Protegida — aquele selo dop, que conhecemos de rótulo de azeite, presunto cru e tal. Assim, já deixava bem claro que o que estava no alvo da disputa: os produtos típicos.

O título em português é mais vago, o que não chega a ser um problema, mas pode criar outras expectativas. Pode acontecer, como aconteceu comigo, de você achar que o livro vai falar de receitas também. Fala pouco. O carbonara — assunto que projetou Grandi à fama internacional ao defender que o carbonara foi inventado nos Estados Unidos, e não na Itália — ocupa apenas um parágrafo. Mas que isso não desencoraje a leitura (e que sirva de motivação para escrever ao autor pedindo um volume 2).

O longo primeiro capítulo desenha o contexto social na Itália da Idade Média até os anos 70 — década em que, segundo Grandi, a cozinha italiana como conhecemos hoje foi toda inventada, com participação fundamental dos italianos que emigraram para os Estados Unidos. Na sequência, em capítulos bem mais curtos, Grandi olha para cada um dos produtos típicos. É quando o livro ganha ritmo (o primeiro capítulo é mais chatinho, mas é a alma do livro, que ficaria raso sem ele).

O primeiro produto é o lardo de Colonnata, gordura do porco salgada, temperada e curada em caixas de mármore.

A história do produto parece ser uma curiosa colcha de retalhos de tudo que dá um caldo: começa com escravizados que trabalhavam nas cavernas de mármore da época romana, prossegue com Michelangelo Buonarroti e chega aos anarquistas de Carrara do fim do século XIX. Em resumo, tudo aquilo que pode vagamente representar um aspecto típico daquele canto da Toscana é enfiado de algum modo na história do lardo.

Assim lista Grandi, para desbancar um por um os pedaços da história do lardo e concluir que o lardo de Collonata é um produto de qualidade “mesmo tirando de cena os escravizados romanos, Michelangelo e os anarquistas da Lunigiana”. A tônica da obra é essa. O autor não quer avacalhar os produtos em si. Apenas escancarar as pataquadas históricas que foram sendo enfileiradas para fins de marketing e branding.

Presunto cru, panetone, balsâmico, queijos (muitos queijos) são produtos que Grandi aborda

Depois do lardo é a vez do tomate de Pachino, um produto com Indicação Geográfica Protegida (igp) da Sicília. No entanto, essa variedade de tomate “nasceu em Israel, em 1989, em uma das mais importantes empresas do mundo no setor das pesquisas genéticas no campo agrícola”. Todo ano os agricultores precisam comprar novas sementes ou mudas israelenses, conta Grandi. Então vem o capítulo do parmesão, em que ele conta como o queijo evoluiu e que, se alguém quiser provar a versão tradicional, ele existe em Wisconsin, nos Estados Unidos. Marsala, presunto cru, Dolcetto, panetone, espaguete, balsâmico, chocolate, porcos, focaccia, mais queijos (muitos mais queijos) são outros produtos que Grandi aborda em vários capítulos, uns mais legais que outros.

O do panetone, que descreve o nascimento já industrial da receita que depois de anos vira artesanal, numa história inversa, é ótimo. O do vinagre balsâmico também. Já o do espaguete, que olha para o grano duro, é menos vibrante e mais confuso. Grandi conta que o cientista que aperfeiçoou o grano duro encontrou as características que queria em uma variedade da Tunísia. “O grano duro com que se faz a nossa famosa pasta é resultado da manipulação genética de um grão africano.” Beleza. Daí a chamar o capítulo de “Africanos comedores de espaguete” parece uma forçação.

Astecas e templários

Grandi é um acadêmico, que dá aula na Universidade de Parma. Dá pra ver que ele sabe que texto acadêmico é chato, e ele consegue apresentar a complexidade de sua pesquisa sem estragar o livro. No capítulo dedicado ao chocolate de Modica, encontramos um dos trechos em que, inclusive, diverte ao ensinar:

Não há dúvida de que essa história sobre o nascimento do chocolate modicano, ainda que completamente inventada, é sugestiva e fascinante. Tem de tudo: caravelas para atravessar o Atlântico, a conquista das Américas, a Sicília espanhola e, sobretudo, os astecas. [] Quando uma história não se sustenta, enfie nela, mesmo que a marteladas, os astecas ou os templários e pronto. [] Mas, por azar, quando uma história não se sustenta, não se sustenta e pronto.

É um livro de história, escrito por um historiador. Desconfio, inclusive, que Grandi goste mais de história do que de comida. Por quê? Por causa do último capítulo. Nele, Grandi apresenta a tese de que os produtos industrializados, simbolizados pela Nutella, são os verdadeiros produtos típicos italianos. Além da Nutella, tem cereja Fabbri, refri Tassoni, o sorvete Cornetto. É estranho. Ele passa o livro inteiro batendo pesado no marketing que empilha mentiras em torno de produtos artesanais. E no fim bate palma para produtos que são igualmente frutos de marketing. Mas mesmo assim o capítulo tem boas provocações e provocação é sempre bom. E faz barulho. Na esteira do livro, que foi lançado em 2018, Grandi lançou um podcast ouvido por milhões de pessoas.

Não importa se o autor adora Nutella. Ele aponta para o imperador nu com precisão

Não importa se ele adora Nutella (quem não?). Grandi aponta para o imperador nu com precisão, em um momento em que essa loucura toda só ganha importância. Viajar mudou, comer mudou, tudo viral e TikTok. Recentemente, num artigo para o New York Times, a jornalista bolonhesa Ilaria Maria Sala descreve como sua cidade, Bolonha, está se transformando em uma Disney da mortadela, com turistas lotando as ruas do centro para comer em estabelecimentos comerciais que se dizem antigos e abriram três meses atrás. Segundo Sala, inventaram até mesmo uma nova receita tradicional, tortellinis fritos vendidos num cone de papel. Parece um pósfacio do livro.

Aliás, o ótimo prefácio — escrito pelo próprio autor especialmente para a edição brasileira — vai fazer os leitores que (como eu) carregam sobrenomes italianos mergulharem nas páginas como quem entra na cozinha da família guardada na memória. Essa introdução ajuda a explicar por que a comida que cresci ouvindo que era servida na casa da nonna é tão diferente da que vim a conhecer como comida italiana. E serve de boas-vindas, deixando o livro, que é denso e provocador, um pouco mais acolhedor.

Há anos me inquieto com o labirinto da cozinha italiana. É tanta região, tanto produto regional, os vinhos tão específicos, as receitas tão sedimentadas, os conhecedores tão esnobes que me dá: 1. A certeza de que nunca vou saber nada por mais que experimente e leia sobre o assunto. 2. A certeza de que estou fazendo algo errado, como o Carlo Cracco, chef italiano com restaurante em Milão e fama na tv que falou, em rede nacional em 2016, que bota alho no amatriciana e foi espinafrado pela cidade de Amatrice. “Ou não põe alho ou chama de outra coisa.” Eu, que ponho bacon no alla Norma (e chamo de alla Morna, para não dar confusão), terminei a leitura aliviada em saber que é tudo uma zona e que pode inventar à vontade, porque é tudo invenção.

Quem escreveu esse texto

Heloisa Lupinacci

É editora do site Panelinha.

Matéria publicada na edição impressa #88 nov em dezembro de 2024.

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