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A cobertura especial d’A Feira do Livro, que acontece de 14 a 22 de junho, é apresentada pelo Ministério da Cultura e pela Petrobras

MINISTÉRIO DA CULTURA E PETROBRAS APRESENTAM

A nutricionista e escritora Neide Rigo (Divulgação)

A FEIRA DO LIVRO 2025, Alimentação,

Comida ao rés do chão

Com simplicidade e olhar apurado, Neide Rigo convoca o leitor a romper com a lógica dos ultraprocessados e alargar seu léxico gastronômico

30maio2025 | Edição #94

A forma como Neide Rigo se relaciona com a comida é análoga à que os cronistas lidam com as palavras, no entender de Antonio Candido: não do alto da montanha, mas ao rés do chão. Em seu Comida comum, sobre o qual fala na quarta edição d’A Feira do Livro, a autora traduz a simplicidade de seu vínculo com a alimentação e com os ingredientes à margem de qualquer esnobismo, numa linguagem literária e descomplicada.

Rigo é formada em nutrição, mas o que a arremessou para essa compreensão multidimensional da comida foi uma experiência anterior. Ela cresceu na periferia de São Paulo, rodeada de vizinhos migrantes, dos quais absorveu hábitos e um amplo repertório alimentar. Também conviveu com os avós, que moravam na roça, onde teve contato com plantações e práticas campesinas.

A autora mistura esses universos distintos em Comida comum e, na prática, cria uma confluência entre campo e cidade. Sua atividade de identificar plantas comestíveis e pratos populares, adubar hortas urbanas e compartilhar mudas e sementes, a fez compreender que os vínculos sociais com quem vive ao seu redor são essenciais como ponto de partida para demandar do poder público o acesso à comida.

Rigo vê as panc como um chamado à autonomia alimentar e ampliação dos hábitos à mesa

Uma provocação constante nas páginas do livro é uma espécie de convocação que faz aos cidadãos para participar da cidade. Há que saber as árvores que crescem no seu quarteirão, onde vivem as abelhas nativas sem ferrão que polinizam as flores, quais são as ervas de inverno e de verão. Comer plantas alimentícias não convencionais, as panc, que brotam espontaneamente em praças e canteiros, compõe essa atitude de conhecer a natureza da nossa aldeia.

Seus relatos de como conheceu ingredientes não convencionais, escanteados da nossa gramática alimentar, estão sempre associados às relações sociais e dão ao leitor a possibilidade de alargar seu léxico gastronômico. Aprende-se, por exemplo, que o mangarito, nativo do Brasil, assemelha-se a pequenas batatas e pode enriquecer um frango caipira ou ser simplesmente assado na brasa. 

Rigo avança ao empregar sua veia literária para torná-lo mais tangível ao leitor. Traça seu aspecto rústico, seu formato indomável e sua superfície rugosa, que não impedem, porém, de retirarmos sua casca sem sacrifício. Basta ferver que a casca escorrega como a pele de um tremoço. Nesta passagem e em outras, adota habilmente a metáfora para se aproximar do leitor, com imagens familiares.

Comida comum tem preciosa serventia ao atiçar a curiosidade diante do desconhecido. Conduz à direção oposta do que se vive em massa hoje — um processo de empobrecimento do gosto e de espécies comestíveis. Plantas negligenciadas, excluídas da mesa brasileira, correm o risco de desaparecer. Sem elas, perdem-se o saber ancestral e a tradição cultural. 

Conhecimento empírico

O livro traz um conhecimento empírico valioso e revela a importância do acervo dos indígenas, sertanejos, ribeirinhos e quilombolas. Do jaracatiá, planta da Mata Atlântica da família do mamoeiro, sua mãe usava o caule para fazer doce. Com ela, não aprendeu somente a receita. Aprendeu que, se o tronco dessa árvore for cortado a um palmo do chão, rebrota; rente ao chão, morre; e se for cortado muito alto, apodrece. Com dona Jerônima, da ilha do Marajó, aprendeu a coletar tucumã — há que escolher os coquinhos com um furo bem pequeno, um sinal de que tem bicho e de que está bom. Se o buraco for maior, significa que a larva já comeu toda a amêndoa. 

Ao passear por beldroegas, serralhas e capuchinhas, Rigo trata da importância do treino do olhar para identificar essas plantas alimentícias não convencionais. Compreende-as como um chamado para a autonomia alimentar, para a ampliação dos hábitos à mesa e para um resgate de conhecimentos esquecidos. Entusiasta dessas “ervas daninhas”, ela protesta diante de cardápios que fazem referência às panc, que não representam um grupo coeso e uniforme, sem nomeá-las. Não é muito mais atrativo pedir uma salada com folhas de beldroega e flores de capuchinha? 

A nutricionista replica Brasil afora esse olhar curioso, com respeito às comunidades e à paisagem local. Já deu oficinas de cozinha para merendeiras em lugares como Acrelândia, no Acre, e Canudos, no sertão da Bahia, e sua postura é sempre a mesma. Estabelece relações com a população, observa o entorno e cascavilha as possibilidades de insumos disponíveis.

A partir desse reconhecimento, constrói seus encontros e os desenvolve em conjunto com as merendeiras, como quem tem sempre a aprender. Sua missão é ampliar as possibilidades de cardápios nas escolas e nas comunidades, a partir de um trabalho que rompe com a lógica ilusória de que os ultraprocessados, que colocam em risco nossa soberania alimentar, são mais práticos e acessíveis.

Isolada na pandemia e impedida de viajar, Rigo fez uma série on-line em que ensinou a preparar fermento do zero até chegar ao pão. Foi no mesmo período que enxergou um reforço da cozinha circunstancial, definida por ela como aquela que é feita sem muita programação, de maneira espontânea, com o que se tem à mão, associada a certo jogo de cintura. 

O trecho remete à obra de uma das maiores escritoras de comida da modernidade, a norte-americana M. F. K. Fisher (1908-1992). Em Como cozinhar um lobo (Companhia de Mesa, 2023), Fisher escreve sobre matar a fome durante a Segunda Guerra, em tempos de escassez, com graça e prazer. Rigo compartilha dicas práticas para realizar essa cozinha de circunstância, como usar o restinho de geleia para incrementar um molho ou o excedente da gordura do frango para fritar omeletes e refogar o arroz. 

A cultura alimentar, afirma, é tão dinâmica como qualquer língua, em que novos vocábulos vão sendo incorporados, sem, no entanto, apagar a língua materna. Em contraponto a títulos mais eruditos, Comida comum se converte em um eficiente veículo de crítica do sistema alimentar e de inspiração para práticas em harmonia com a natureza e com a sociedade.

A Feira do Livro 2025 · 14 — 22 jun. Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização do Ministério da Cultura, por meio da Lei Rouanet – Incentivo a Projetos Culturais, Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos dedicada à difusão do livro e da leitura no Brasil, Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais, e em parceria com a Prefeitura de São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Luiza Fecarotta

É crítica e curadora gastronômica.

Matéria publicada na edição impressa #94 em junho de 2025.