Tinta-da-China Brasil,

Autores exaltam possibilidade de ser outros na literatura no lançamento da 10ª Granta

Em conversa com o jornalista Ruan de Sousa Gabriel, Gustavo Pacheco e Natércia Pontes defendem “liberdade total” na ficção

25set2023 | Edição #73

A literatura de verdade deve ter alguma relação com o outro e não pode prescindir de liberdade total, seja no tema ou na forma de o autor se expressar. As duas premissas foram defendidas pelos escritores Gustavo Pacheco e Natércia Pontes em um bate-papo com o jornalista Ruan de Sousa Gabriel durante o lançamento da 10ª edição da Granta em Língua Portuguesa: O Outro, neste sábado, 23, na livraria Megafauna, em São Paulo.

Diretor da revista literária junto com Pedro Mexia, Pacheco falou sobre a alteridade, tema da atual edição da publicação da Tinta-da-China Brasil (selo editorial da Associação Quatro Cinco Um). “É um tema que dá para falar praticamente de qualquer coisa. Se é literatura de verdade, feita com tesão, com vontade de inovar e não só reproduzir o que já foi feito, vai ter alguma relação com o outro, seja do ponto de vida do tema, do sujeito, da forma literária”, disse. “Foi uma das edições que me deu mais prazer em editar, tem textos muito diferentes entre si.”

Autora de Os tais caquinhos (Companhia das Letras), Natércia Pontes contou que o convite para participar da Granta veio no momento em que escreve uma história que tem como tema central a relação com o outro. Em Vida doçura, romance do qual um trecho inédito foi publicado na edição, Jocasta é uma mulher que vive encerrada em seu pequeno apartamento e é obcecada em assistir aos vídeos da youtuber Jovana com sua família.


Natércia Pontes e Gustavo Pacheco em lançamento na livraria Megafauna [Sean Vadaru/Divulgação]

Os dois autores também falaram sobre a relação que têm com o outro em sua obra. “Quando eu tinha por volta de cinco ou seis anos, tive uma angústia quando me dei conta que iria ser eu para sempre. Eu não posso ser uma cadeira ou um cachorro?”, contou Pontes, fazendo o público rir. “Me sentia aprisionada no meu corpo e acho que é por isso que escrevo. Me encho de outros quando escrevo.”

Pacheco também falou da sua relação com o tema, citando sua experiência anterior como antropólogo e atual como diplomata, atividades que dependem da relação com outros. “Tenho uma admiração profunda por autores que fazem uma escrita muito colada na própria realidade, como Annie Ernaux e Emmanuel Carrère, mas nunca foi minha praia. Não acho minha vida particularmente interessante. Já estamos em tudo que escrevemos de alguma maneira. Não teria nenhuma graça para mim escrever um romance sobre um diplomata branco de meia idade. Esse sou eu”, disse.

Liberdade absoluta

Além de diretor editorial, Gustavo Pacheco assina a tradução de um conto do argentino César Aira, Picasso, nessa edição da revista. Ele ressaltou a importância de publicações como a Granta — que traz contos, ensaios, trechos de romances e ensaios fotográficos — em inovar também nos formatos. “Não me interessa uma literatura em que a forma continua a mesma”, disse ele, citando autores como Tiago Ferro e Joca Reiners Terron, que publicaram romances recentes depois de terem sido instigados pelo convite da revista a escrever.

Questionados pelo jornalista Ruan de Sousa Gabriel sobre os limites da ficção, os dois autores defenderam liberdade total na literatura, seja nos temas ou formatos. “Na literatura eu posso fazer o que quiser”, disse Pontes, ao contar sobre as limitações em outras atividades que desenvolve, como a de roteirista. A escritora contou ter alterado o termo “traveco”, usado em seu livro de contos Copacabana dreams (Cosac Naify, 2012) para “uma travesti” porque o mundo mudou desde então. “Mas escrevo sem medo e acredito na voz das personagens”, ressaltou.


Natércia Pontes, Gustavo Pacheco e Ruan de Sousa Gabriel em lançamento na livraria Megafauna [Sean Vadaru/Divulgação]

Pacheco acrescentou que essa liberdade na literatura pressupõe que os autores arquem com suas escolhas políticas e estéticas. “A maneira de fazer isso é honrando a liberdade de escrever. Se for para escrever algo e se sentir de alguma maneira cerceado, seja estética ou politicamente, é melhor fazer outra coisa, não ficção. Não concebo a ficção sem a liberdade absoluta.”

A nova edição da Granta traz um trecho de Still Pictures, livro póstumo de Janet Malcolm, um excerto de Eu sou o outro do outro, misto de ensaio, diário de viagem e relato autobiográfico de Ernesto Mané, a ser publicado em 2024 pela Tinta-da-China Brasil, além de contos e ensaios assinados por Valério Romão, Marta Hugon, Adam Dalva, Olavo Amaral, Isabela Figueiredo, Ali Smith, Teresa Veiga, Aparecida Vilaça, Francesca Wade. O volume tem ainda os ensaios fotográficos de Mag Rodrigues e Eduardo Viveiros de Castro, convidados a integrar a edição por Daniel Blaufuks.

Quem escreveu esse texto

Amauri Arrais

É jornalista e editor da Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #73 em agosto de 2023.