Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Oito resenhas enguiçadas

Livro póstumo encerra a obra de Janet Malcolm em uma virada autobiográfica desconcertante e perspicaz

06abr2023 | Edição #69

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Numa tarde gelada do inverno de 2018, Janet Malcom subia a suntuosa escadaria da Neue Galerie. O autodenominado Museu para Arte Alemã e Austríaca, plantado na Quinta Avenida, em Manhattan, encerrava naquele 29 de janeiro a mostra “Wiener Werkstätte 1903-1932: The Luxury of Beauty”. A reunião de móveis, objetos, louças, design e de toda uma traquitana classificada como “artes decorativas” celebrava o coletivo de artistas que traduziram o esplendor da modernidade vienense.

Ao lado de uma senhora tão discreta quanto ela, a jornalista temida por seus julgamentos peremptórios percorria lentamente a exposição, anônima. Detinha-se nas legendas, apontava para os objetos e parecia comentar tudo. Sua história pode explicar entusiasmo tão específico. Nos seus primeiros anos de New Yorker, na década de 60, dedicou-se à rubrica “About the House”, sobre arquitetura e decoração. Ainda naquele dia, na livraria da Neue Galerie, Malcolm pediu que a funcionária abrisse a embalagem do catálogo da mostra. Numa das mesas, examinou detidamente o cartapácio — que, agora sei, tem 577 páginas — e devolveu-o.

Essa versão highbrow de “Caetano estaciona no Leblon” pode ser, e com alguma razão, atribuída a um incontido provincianismo. Não foi difícil, no entanto, deixar de lado meu genuíno desinteresse pela exposição diante da possibilidade de observar, a distância segura, uma das mais perspicazes retratistas de pessoas e lugares. “Minha mãe gostava de se referir a seu início de carreira como um maravilhoso aprendizado na descrição de coisas”, escreve Anne Malcolm no posfácio a Still Pictures: On Photography and Memory, livro póstumo lançado cinco anos depois daquela tarde de segunda-feira (e que chegará ao Brasil em 2024 pela Companhia das Letras).

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Janet Malcolm ainda não era Janet Malcolm, a inquiridora, quando publicou, em 1980, Diana & Nikon, reunião de onze ensaios que pavimentaram seu caminho de setorista de decoração (e livros infantis) a crítica de fotografia da New Yorker. Irving Penn, Alfred Stieglitz e William Eggleston estão entre os nomes canônicos examinados pela ensaísta que, no prefácio, dizia perseguir por diferentes caminhos “a conexão entre fotografia e modernismo”. O subtítulo “ensaios sobre a estética da fotografia” não deixa dúvida das intenções da autora, então com 46 anos, da mesma forma que Still Pictures, publicado postumamente, também pode ser bem definido pelo complemento “sobre fotografia e memória”. Até ser vencida por um câncer no pulmão a menos de um mês de completar 87 anos, em junho de 2021, Malcolm trabalhou na edição dos 26 ensaios em que a fotografia é um atalho para sua própria história.

Entre os dois livros, o primeiro e o último, publicou outros doze, incluindo os clássicos O jornalista e o assassino e A mulher calada. Dentre eles, um terceiro, menos conhecido, também é dedicado à fotografia. Burdock, de 2008, reúne melancólicas imagens de folhas de bardana fotografadas por Malcolm, que as via como pessoas lhe “encarando”. “Os retratos de Richard Avedon de pessoas célebres foram um modelo para meus retratos de folhas nada célebres”, escreveu ela no prefácio. “Assim como Avedon procurava rostos nos quais a vida havia deixado sua marca, eu preferi folhas mais velhas e defeituosas a espécimes jovens e imaculadas — folhas às quais algo aconteceu”. 

Naquele mesmo texto, lembrado pela filha, Anne Malcolm, no posfácio a Still Pictures, estão outras conexões e metáforas possíveis entre fotografia e escrita, escrita e jornalismo. Malcolm, que não conseguiu botar o ponto final num ensaio que encerraria a edição póstuma, escreveu:

Acredita-se ingenuamente que a fotografia reproduz a realidade visual, mas na verdade as imagens que nossos olhos contemplam e as imagens que saem da câmera não são as mesmas. Fazer uma fotografia é um ato de transformação.

Nele, diz a filha, declararia “o interesse de toda uma vida em fotografar”.

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Na capa de Still Pictures: On Photography and Memory, publicado postumamente em janeiro de 2023, Janet Malcolm está mais jovem do que jamais aparecera nas típicas fotos de divulgação de escritores ou em orelhas de livro. Diante do espelho, empunha uma Leica, provavelmente a mesma que comprou nos anos 50 e chegou a usar em trabalhos semiprofissionais. No posfácio ao livro, Anne Malcolm conta que a mãe deixou de lado câmera e laboratório caseiro em 1963, quando ela, sua filha única, nasceu — e só voltaria à fotografia nos quinze últimos anos de vida, quando chegou a expor na galeria Bookstein Projects, em Nova York, e a lançar, pela Yale University Press, o fotolivro Burdock.

Me dou ao trabalho de olhar as edições originais para confirmar que, com poucas variações, sua imagem tornou-se quase uma marca registrada, pouco afetada pela passagem do tempo: cabelo repartido ao meio, corte reto na altura do pescoço, óculos, olhar sereno e, às vezes, um sorriso amável. São raros os instantâneos de uma jornalista que detestava entrevistas e qualquer fala de improviso. Com exceção de flagrantes na saída de tribunais ao longo dos quase dez anos em que se enfrentou com o psicanalista Jeffrey M. Masson, personagem de Nos arquivos de Freud, Malcolm sempre controlou a própria imagem, talvez emulando a persona que tanto lhe foi útil, como ela mesma declarou ao Guardian em 2011: “É muito fácil ser inofensiva e gentil. Mas quando você tem que tomar uma atitude é quando a agressividade e a frieza ganham a cena: na escrita”.

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O lançamento de Still Pictures: On Photography and Memory, livro póstumo de Janet Malcolm, é, pelo menos a princípio, um contrassenso para os leitores mais assíduos da jornalista e ensaísta. Pelo menos para quem se deteve em “Reflexões sobre autobiografia de uma autobiografia abandonada”, texto curto e lapidar que encerra 41 inícios falsos: ensaios sobre artistas e escritores. No livro de 2013, Malcolm declara a incapacidade de ficar “sozinha na sala”, ou seja, escrutinar a si mesma, uma vez que, para ela, a primeira pessoa no jornalismo deve ser racional e desinteressada como “um juiz que pronuncia a sentença de um réu culpado”.

A autobiografia é um exercício de perdoar a si mesmo. […] O ‘eu’ observador da autobiografia não narra a história do ‘eu’ observado, como o jornalista conta a história de seu entrevistado, mas como uma mãe poderia contá-la. O narrador mais velho olha para seu eu mais jovem com ternura e compaixão, sente empatia por suas tristezas e aceita seus pecados.

Malcolm se dizia impossibilitada de frequentar o gênero por ter seu amor-próprio “inibido” pela prática da reportagem. Vivian Gornick, que figura em qualquer antologia de ensaio pessoal por conta de pelo menos um livro lapidar, Afetos ferozes, diz ter ficado “chocada” quando, há mais de dez anos, leu as restrições ao gênero em que ela se notabilizou nas últimas décadas. Ao comentar Still Pictures para a Nation, observa que os ensaios de Malcolm são “longos em descrições, curtos em análise e mais do que vagos em intenção”. Para ela, Malcolm vê as memórias “menos como uma oportunidade de explorar o passado do que como uma ameaça da qual devesse se defender”.

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Em Still Pictures, que é publicado menos de dois anos depois da morte de Janet Malcolm, a reservada autora de Anatomia de um julgamento explora o terreno que reputava inóspito e inadequado para uma jornalista, o da autobiografia. Nascida Jana Klara Wienerová na Tchecoslováquia, ela chegou aos Estados Unidos em 1939, onde desembarcou com os pais e uma irmã de “um dos últimos navios civis a deixar a Europa antes do início da guerra”. Um tênue fio cronológico conduz os textos por sua juventude, anos de formação, casamentos e vida profissional.

O subtítulo “sobre fotografia e memória” dá as pistas do estratagema que Malcolm usa para, neste capítulo final de sua obra, não “ficar sozinha na sala” — metáfora que usa para distinguir o memorialismo — e do apelo à introspecção — da concretude que molda a vida de jornalista, sempre povoada por personagens. A grande maioria dos textos, sempre curtos, parte de uma fotografia familiar, ou seja, de uma evidência concreta que é por ela descrita e examinada.

Still Pictures não é, portanto, um ensaio orgânico, coeso. Malcolm escreveu-o aos poucos, como quem revira um baú: o primeiro texto foi publicado na New Yorker, quatro na New York Review of Books e os outros 21, inéditos, escritos especialmente para a publicação que, ao que Ian Frazier dá a entender no prefácio, ela mesma desconfiava ser póstuma. Num texto pessoal, publicado como posfácio, sua filha, Anne Malcolm, dá conta que a mãe pretendia encerrar o livro com um ensaio, que não teria chegado a terminar, dedicado “ao interesse de toda uma vida em fotografar”.

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Falando à Paris Review, Janet Malcolm observou que um jornalista nada tem a perder quando, numa entrevista, refreia qualquer manifestação de simpatia ou intimidade em relação ao seu entrevistado. Quando Katie Roiphe, sua interlocutora, provoca uma reflexão sobre maternidade e a profissão, a autora de Nobody’s Looking at You reage:

Mas isso pode ser uma questão profunda demais para uma troca de e-mails sobre a arte da não ficção. O lugar para discutir nossas batalhas com a arte de ser mãe é provavelmente um bar escuro.

Não por acaso, a própria Katie Roiphe define como “intrigante” a opção de Malcolm pela autobiografia em seu último livro, Still Pictures: On Photography and Memory, lançado postumamente em janeiro último. Revisitando sobretudo a infância e a juventude, com breves incursões na vida profissional e nos casamentos, Malcolm parte quase sempre de imagens para costurar comentários curtos e elípticos no que, como descreve Roiphe na The Atlantic, “talvez seja o álbum de fotografias anotado mais elegante do mundo”.

“Estou olhando para duas fotografias”, escreve Malcolm, comparando uma foto de sua infância com um portrait pintado por Ingres. “Uma fotografia preto-e-branco mostra um homem, uma mulher e uma menininha olhando pela janela de um trem”, descreve ela em outro momento, diante da recordação da família deixando Praga. “Ainda que seja uma fotografia preto-e-branco, sei a cor das roupas que Marie e eu estamos usando”, lembra, ao comentar o registro de uma Páscoa ao lado da irmã. “Este retrato sempre se destaca em caixas de velhas fotografias, ficando à parte do resto por sua viva estranheza”, observa ela sobre um postal de Hugo Haas, ator tcheco que foi “a menor das celebridades”.

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O caminho mais fácil para criticar Still Pictures: On Photography and Memory é usar Janet Malcolm contra Janet Malcolm. Lançado um ano e meio depois de sua morte, o livro pode se enquadrar na autobiografia, gênero que ela abjurou num breve e célebre texto e, na prática, a cada vez que reiterava a severidade e o tom judicioso com que examinava os limites éticos da escrita, do jornalismo e da memória em livros como Nos arquivos de Freud, O jornalista e o assassino e A mulher calada. Menos espalhafatosa e mais intrigante é, no entanto, a hipótese de que a mudança de ponto de vista seja mais uma significativa ruptura do que simples contradição.

Edward Said, autor que Malcolm admirava sobretudo por Orientalismo, morreu em 2003 sem concluir aquele que seria o primeiro de dois livros póstumos, Sobre o estilo tardio. Mesmo antes de ser diagnosticado com a leucemia que o acompanhou por mais de uma década, Said interessava-se pelas reviravoltas que um criador eventualmente impunha à sua criação no fim da vida. O ponto de partida era a música, mais especificamente o último Beethoven, tal qual lido por Theodor Adorno.

A hipótese, fundamentada em exemplos dos mais variados, interroga artistas que “criaram um novo idioma para sua obra ou pensamento” em seus momentos finais. O que Said chama de “estilo tardio” se caracterizaria por “uma tensão despida de harmonia ou serenidade, com uma produtividade conscientemente improdutiva, do contra”. As obras tardias representariam, portanto, uma “espécie de exílio autoimposto diante de tudo o que costuma ser aceito, um exílio posterior e sobrevivente a isso”.

Katie Roiphe, que entrevistou Janet Malcolm para a série “A arte da não ficção”, da Paris Review, destacou, na The Atlantic, as hesitações de Still Pictures entre revelar e esconder como uma espécie de “comentário” crítico ao memorialismo. Para ela, o livro é “o último argumento no projeto de toda uma vida de revelar e iluminar as milhares de vaidades, exageros e falhas de caráter que alimentam as histórias oficiais e seu resultado: o erro humano”.

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O lançamento de Still Pictures: On Photography and Memory reuniu no Drawing Center, em Nova York, três escritores e jornalistas — a romancista Zoë Heller, a ensaísta Katie Roiphe e o editor da New Yorker, David Remnick — e um de seus personagens mais célebres, David Salle. O pintor foi retratado em termos ambíguos em “41 inícios falsos”, um dos textos antológicos de Malcolm, que dá título à coletânea de “ensaios sobre artistas e escritores” lançada em 2013. Publicado na New Yorker em julho de 1994, o perfil foi apurado por mais de dois anos e consiste em 41 inícios possíveis de um texto sobre um artista que foi sinônimo de “pós-modernismo” — seja lá o que isso quer dizer.

“Para alguns seria duro, ou assim imaginavam, enfrentar o desconforto de tanta autoexposição, sofrer com os desencontros inerentes à relação entre um jornalista e seu tema”, escreveu Salle na Artforum em setembro de 2021, numa homenagem à repórter de quem tinha ficado amigo.

Um dos temas de Janet como escritora era o autoengano em todas as suas formas — a propensão que todos temos de nos contar histórias que, no mínimo, reconfiguram momentos para que nos favoreçam. Me senti atingido por uma linha no perfil, que cito de memória: que em todo o tempo que passamos juntos nada que eu disse sobre minha obra tinha o menor interesse para ela. Depois que minha vaidade se recuperou da rejeição de meu ‘pensamento’, ficou clara a veracidade do veredito de Janet. (Mais adiante, o texto insistia em que nada que nenhum artista já disse sobre sua obra tem interesse).

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #69 em abril de 2023.