O tempo irrealizável de Beauvoir e Fernandona

Teatro,

O tempo irrealizável de Beauvoir e Fernandona

Monólogo com Fernanda Montenegro emula a intelectual francesa, ícone feminista de gerações

28jun2024
Fernanda Montenegro encena Vivendo sem tempos mortos (Matheus José Maria/Divulgação)

O acaso tem sempre a última palavra, disse Simone de Beauvoir. Ela mesma não teria acontecido fosse outro o que, entre os milhões de espermatozoides do pai, encontrasse o óvulo materno.

Também a contingência fez nascer a intelectual francesa. A barafunda financeira daquele começo de século 20, numa Europa sob a névoa da guerra, permitiu que Georges e Françoise pudessem dar às filhas apenas “o mais barato dos divertimentos”, a leitura.

Teria sido o acaso que a aproximou de Élisabeth Lacoin, sua querida Zaza, a amiga de juventude que morreu de repente, aos 21 anos, e que se tornou seu “eu fantasma”? A amizade deixou pegadas nos escritos de Beauvoir e inspirou um romance publicado postumamente, As inseparáveis.

Talvez seja obra do acaso o que alguns preferem tomar por destino que Fernanda Montenegro tenha se visto refletida em A cerimônia do adeus. É nesse livro que Beauvoir narra os últimos anos de Jean-Paul Sartre, com quem formaria o casal mais pop do existencialismo francês. Conheceu-o como um “devasso, bêbado, frequentador de prostíbulos”, e terminou por vê-lo definhar com dificuldade para respirar, engolir, falar, segurar o xixi.

Montenegro encenou o monólogo Viver sem tempos mortos um ano após perder o companheiro de seis décadas, o também ator Fernando Torres, morto em 2008.

A atriz, a quem o Brasil se acostumou a chamar pelo superlativo Fernandona, volta agora aos palcos para uma releitura dessas e de outras páginas de Beauvoir. Em temporada de ingressos esgotados no Sesc paulistano, ela repete a fórmula de rever textos da francesa, num apanhado que começa na infância e termina no impactante solilóquio final.

Ali, Fernandona, 94 anos, veste as palavras de Beauvoir sobre um “tempo irrealizável” e a impressão “de não ter envelhecido, embora eu esteja instalada na velhice”. Ainda que não ignore “as ameaças que o futuro encerra”, como também não despreza um passado a que deve seu saber e sua ignorância, a existencialista fala sobre cultuar “o sabor de minha vida”. “Acho que consegui fazê-lo. Vivi num mundo de homens guardando em mim o melhor da minha feminilidade. Não desejei nem desejo nada mais do que viver sem tempos mortos.”

Não há tempos mortos nos 75 minutos que levam para Montenegro arrebatar o público, com recursos cênicos que não vão além de mesa, cadeira e um calhamaço de papéis. Mas aqui convenhamos, se lesse um roteiro de Galinha pintadinha, a atriz também provocaria assombro numa audiência que já se via curvada a ela antes mesmo de dizer um “ai”.

O monólogo todo, se tem como prato principal a alvorada feminista da autora, serve de acompanhamento suculentas fofocas sobre a vida daqueles pensadores que “profanavam a sacralidade em geral”, como Beauvoir a certa altura define sua patota.
Pela voz de Fernandona, ficamos sabendo de seu caso com René Maheu, filósofo com uma “esposa linda da nobreza católica”. Foi ele o responsável por apresentá-la a Sartre. Beauvoir apelidou de “homenzinho” o homem com quem viveria por décadas um relacionamento aberto, e a princípio se chocou com a sujeira de seu quarto, que cheirava a azedo e nicotina. Simone tinha 21 anos, Jean-Paul, 23.

Os novos amigos a julgavam uma “boa católica” e tentaram emplacar o apelido “Valquíria”, que ela descreve como “virgem guerreira”, mas que também tem como raiz etimológica o mito nórdico das deidades que selecionavam os mortos no campo de batalha.

Beauvoir rejeita essa alcunha e fica com outra, Castor. Nessa juventude de roer sensos comuns sobre a tradicional família francesa, ela ouve de Sartre: “De agora em diante a senhora está sob meu controle”. Os dois haviam acabado de ser aprovados para dar aulas no ensino secundarista francês. Maheu foi reprovado.

Amor livre

Sartre a introduziu a romances de capa e espada e filmes de caubói, logo ela que só via “filmes de arte”. Também lhe disse que Deus não existia e que, por óbvio, nada na vida tem sentido pré-existente. Questionaram o casamento burguês e viveram o amor livre, ainda que não liberto de ciúmes e outros sentimentos mundanos.

Tomaram alunos por amantes, vários deles menores de idade, e mais tarde continuaram a girar essa ciranda poligâmica. Apaixonaram-se por terceiros algumas vezes e chegaram a decretar a morte da libido entre eles, que Beauvoir definiu como ausência de “impulso priápico” dele. Também organizaram “fiestas”, outro nome para a boa e velha suruba, das quais participaram celebridades intelectuais como Albert Camus.

Seu primeiro orgasmo decente, conta, foi com o escritor americano Nelson Algren, seu “amor transatlântico”. Chegou a propor, com algum chiste, a servi-lo como “a esposa árabe amorosa”. Amou-o com paz, mas paz não lhe bastava. Eventualmente, diz, Algren lhe dá um pé na bunda ao compreender sua ligação incontornável com o “homenzinho amado”. Sartre, sempre Sartre, um “baixinho” danado que “sabia preparar o corpo da mulher para o jogo erótico de bocas e dedos”.

No meio tempo, O segundo sexo, tratado sobre o feminismo elaborado enquanto lhe vai caindo a ficha de levar a vida “com a liberdade de um homem”, sem saber muito bem como responder o que é ser mulher. Desse ensaio vem sua mais célebre frase: “Não se nasce mulher, torna-se”. Depois, Beauvoir entenderá que tampouco alguém nasce homem, um papo que a gente pode deixar para Ligia Gonçalves Diniz e seu ótimo O homem não existe (Zahar).

A francesa se via como a “jovem bonita” que “usava batom” e “frequentava meios intelectuais” monopolizados por homens. Se soa um tanto falocêntrica para os tempos atuais, é de se questionar se vale aplicar a régua contemporânea para métricas passadas. Já mais madura, vai se tornando ela, a mulher que andou para que as novas ondas feministas pudessem correr, uma “ativista de todas as horas”. 

“Nada rígida no desejo de não desmoronar”, Beauvoir se verá ao lado do túmulo de Sartre, um enterro que mobilizou multidões na Paris de 1980. Seu homenzinho se foi.

Antes que as cortinas do teatro se fechem, já desencarnada da filósofa, Fernandona repara a casa lotada e fala da “necessidade de encontros humanos” como aquele, sem o torpor da existência digital. Fernanda e Simone, por um dia que seja, são elas as inseparáveis, unidas pelo desejo de viver sem tempos mortos. Nada por acaso, “Ne me quitte pas” toca ao fundo.

Quem escreveu esse texto

Anna Virginia Balloussier

É jornalista e autora de O púlpito: fé, poder e o Brasil dos evangélicos (Todavia).

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