A escritora britânica Virginia Woolf (LOC/Reprodução)

Teatro, Trechos,

Uma alfinetada na aristocracia 

Em Freshwater, sua única peça teatral, Virginia Woolf se inspira no próprio círculo social para satirizar os comportamentos da elite intelectual e artística da época

31mar2025 • Atualizado em: 01abr2025

Escrita no início dos anos 1920 e recém publicada pelo selo Inglesa, da editora A Degustadora de Histórias, Freshwater foi a única peça teatral de autoria de Virginia Woolf. Com senso de humor irônico e sarcástico, a autora retrata os conflitos artísticos e as intrigas pessoais em uma casa de campo na ilha de Wight (Reino Unido), durante a Era Vitoriana (1837-1901).

Dividida em três atos, a história se baseia na figura da fotógrafa e escultora Julia Margaret Cameron, tia-avó de Woolf. A protagonista fotografou algumas das mais famosas figuras públicas da época, como Charles Darwin, Lord Tennyson, Ellen Terry e Julia Stephen, a mãe de Virginia Woolf.

Inspirada pela sua própria realidade, a escritora britânica mostra o seu senso de humor e ironiza a arrogância da classe artística e intelectual do auge do Império Britânico. A peça, montada pela primeira vez em 1935 no ateliê da sua irmã Vanessa Bell, revela a perspectiva de Woolf sobre privilégios sociais e as relações nas quais a autora estava inserida. 

Leia trecho do texto, em tradução de Nara Vidal:

Trecho de ‘Freshwater’

SRA. C.
Fique quieto, Charles! Quieto! Sabão nos seus olhos? Que bobagem. Água caindo nas suas costas? Tolice. Tenho certeza de que você consegue aturar um pouco de desconforto em nome da arte!

SR. C.
Sexta vez em oito meses! Sexta vez em oito meses! Sempre que nos preparamos para ir para a Índia, Julia lava meus cabelos. Mesmo assim nós nunca vamos. Às vezes, acho que nunca iremos à Índia.

SRA. C.
Que bobagem, Charles. Controle-se. Lembre-se do que Alfred Tennyson te disse: um filósofo com a barba mergulhada na luz do luar. Um limpador de chaminé com a barba mergulhada em fuligem.

SR. C.
Ah, se pudéssemos apenas ir para a Índia. Não há banho na Índia. As barbas são brancas porque a lua sempre brilha sobre a jovialidade e a verdade na Índia. E aqui nós nos arrastamos desperdiçando nossas vidas miseráveis agarrados na secura de –. (Sra. C. lava com força)

WATTS
(Olhando ao redor)

Coragem, meu velho amigo. Coragem. O máximo para o bem maior, Cameron. Lembre-se sempre disso (olha para Ellen). Não se mexa, Ellen. Fique perfeitamente imóvel. Estou tendo dificuldades com o dedão do pé de Mamom. Estou com dificuldades há seis meses. Ainda está fora de forma. Mas eu digo a mim mesmo: o máximo para o bem maior. Fique completamente imóvel.

(Entra Tennyson)

TENN
O filho de Deus não tem onde descansar sua cabeça.

SR. C.
Dia de lavar o cabelo em Farringford também, Alfred?

TENN
Um grupo de vinte bons rapazes de Clerkenwell está no pátio; seis professores americanos estão no anexo do jardim; o banheiro está ocupado pelo Círculo de Poesia das Damas de Ohio. O filho de Deus não tem onde descansar sua cabeça.

SR. C.
Deixe de preocupações com essas coisas do agora. Procure a verdade onde a verdade está escondida. Siga o eterno fogo fátuo. Ai, não puxe a minha barba! (Sra. Cameron o solta) Pelo amor de Deus! Às duas e meia partimos para a Índia. (Sr. C. caminha em direção à janela)

TENN
Não acredito! Vocês realmente vão?

SRA. C.
(Espremendo sua esponja)

Sim, Alfred. Às duas e meia partimos para a Índia – isso se os caixões chegarem. (Sra. C. dá a

esponja a Mary) Toma a minha esponja, menina. Agora vá lá ver se os caixões chegaram.

MARY
Que caixões! Quem chegou foi o Duque de Dudley. Ele está à minha espera na cozinha. Não que seja bonito, mas muito melhor de olhar que os caixões.

SRA. C.
Não podemos partir para a Índia sem os caixões. Pela oitava vez eu encomendei os caixões e pela oitava vez os caixões não foram entregues. E sem seus caixões Julia Cameron não parte para a Índia. Pense nisso, Alfred. Quando estivermos mortos debaixo do Cruzeiro do Sul, minha cabeça estará apoiada num exemplar de In Memoriam. Maud estará em cima do meu peito. Na minha mão direita, seguro a pena que escreveu – sob Providência divina – A morte de Arthur. Na mão esquerda, a pantufa que você jogou na minha cabeça quando eu te pedi para posar para o meu ducentésimo estudo sobre Arthur dizendo adeus ao cavaleiro Bedivere. (Ela levanta os olhos e fala numa voz muito eufórica) Tudo está feito, Alfred. Tudo está pronto. É noite funda no sul. Orion brilha no céu. O perfume das tulipas atravessa a janela aberta. O silêncio é rompido apenas pelo choro do meu marido e o infrequente uivo de um tigre solitário. E, então, o que é isso, que infâmia eu noto? Cupins, Alfred, cupins. Eles avançam em hordas vindas da selva. Alfred, eles estão devorando Maud!

TENN
Deus me guarde! Devorando Maud? Cupins! Minha ovelhinha! Tem razão. Você não pode partir para a Índia sem os seus caixões. E como eu vou ler Maud para você quando você estiver na Índia? Se bem que – quantas horas? Meio-dia e quinze? Já li em menos tempo que isso. Vamos dar início.

eu odeio a terrível mudez oca da floresta

Cujos lábios em campos longínquos são tingidos de campado vermelho-sangue. Diante do paredão

que jorra um horror silencioso de sangue, e a Eco, o que quer que seja a ela perguntado, responde

“Morte.” Lá no horrendo buraco há muito tempo um corpo foi encontrado. De quem me deu a vida, Ó Pai, Ó Deus.

SRA. C.
É essa a atitude que eu aprecio. Aprume-se, Alfred. Não pisque os olhos. Charles, você está sentado nas minhas lentes. Levante-se.

(Sra. C. arruma seu tripé. Tennyson continua lendo Maud)

ELLEN
(Esticando os braços)

Ai, Signor, posso descer, estou toda dura.

WATTS
Dura, Ellen? Como assim se você ficou nessa posição só por quatro horas pela manhã?

ELLEN
Só por quatro horas! Parecem séculos. De todo modo estou toda dura. E eu gostaria de ir me banhar. Está uma manhã adorável. As abelhas na espinhosa. (Ellen desce da cadeira e se alonga)

WATTS
Você dedicou quatro horas a serviço da arte, Ellen, e já está cansada. Eu já dediquei setenta e sete anos de serviço à arte e ainda não me cansei.

ELLEN
Ó Lor

WATTS
Se você tiver que usar tal expressão tão vulgar, Ellen, por favor, pronuncie o “d” final.

ELLEN
(Levantando-se ao lado de Tennyson)

Ó Lord, Lord, Lord.

TENN
Eu ainda não sou um Lord, donzela; mas quem sabe? Talvez essa ideia esteja adormecida no colo da Rainha. Enquanto isso, sente-se você no meu colo.

(Ellen senta-se no joelho de Tennyson)

SRA. C.
Outra fotografia! Uma fotografia melhor! Poesia na forma de Alfred Tennyson adorando sua musa.

ELLEN
Mas eu sou a Modéstia, Sra. Cameron. Foi Signor que disse. Sou a Modéstia agachada aos pés do deus Mamom, pelo menos eu era há dez minutos.

SRA. C.
Sim. Mas agora você é a musa. E musas devem ter asas. (Sra. C. vasculha freneticamente um baú. Ela joga várias peças de roupa no chão) Toalhas, lençóis, pijamas, roupões, suspensórios – suspensórios, mas nada de asas. Calças, mas nada de asas. Isso é uma sátira à modernidade. Suspensórios, mas nada de asas!
(Sra. C. vai até a porta e grita) Asas! Asas! Asas! O que me diz, Mary. Não temos asas? Nesse caso, mate um peru. (Sra. C. pisa nas roupas e sai)