Literatura brasileira,

Terra pervertida

Em novo romance, Mariana Salomão Carrara retrata a realidade devastadora e lentamente mortal das plantações de tabaco do sul do país

05ago2024 • Atualizado em: 31ago2024 | Edição #85
A escritora Mariana Salomão Carrara (Renato Parada/Divulgaçâo)

A morte tem seus caprichos. Pode chegar chutando portas, sem a cortesia de um aviso prévio, como Mariana Salomão Carrara retrata com maestria em Não fossem as sílabas do sábado (Todavia, 2022). Ou pode ir se insinuando pelas beiradas, como uma praga que de folha em folha devora a plantação. É com essa falência gradual que a escritora paulistana tira satisfações no seu novo romance, A árvore mais sozinha do mundo. O enredo tomou forma depois da leitura de uma reportagem sobre suicídios em série no sul do Brasil.

Há algumas hipóteses para essa epidemia tétrica, e a combinação delas talvez dê conta de explicar por que tantos agricultores ligados às plantações de tabaco se matam em taxas bem mais altas do que a média nacional. A exposição prolongada aos agrotóxicos agressivos da fumicultura vem sendo associada ao boom de distúrbios psiquiátricos. Não bastasse o mal químico, atribulações sociais — como a tomada de terras devido a um superendividamento com empresas tabagistas — também contribuem para uma saúde mental em frangalhos.

Anos atrás, a autora, que é também defensora pública, atendeu pessoas que estava “perdendo tudo” no Rio Grande do Sul. Não se deteve muito no caso, não era da sua alçada. Mas voltou a pensar nele depois de descobrir a sanha suicida naquele canto do país. Ali, a lavoura não vai nada bem e não é de hoje. Já em 1996 a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul mostrou que quatro em cada cinco suicídios em Venâncio Aires eram cometidos por agricultores. O município, de onde sai boa parte da matéria-prima para a indústria do cigarro, foi ainda um dos mais devastados pelas enchentes que assolaram o estado em maio deste ano.

Gente real

À escritora interessam menos as estatísticas do que as pessoas por trás delas. A família que forja para seu romance é um caleidoscópio ficcional de histórias que ouviu ao visitar pequenas roças gaúchas. Como pano de fundo, a angústia de estar à mercê não só de intempéries da natureza, mas também da falta de escrúpulos dos grandes compradores de tabaco. E a vida que acontece enquanto isso.

No núcleo familiar, Carlos, o pai, “contraiu uma tristeza profunda que não se cura”, e que “só piora porque há sempre um veneno novo para pôr nas plantas”. Guerlinda, a mãe, consegue amar de verdade as mesmas galinhas que abate — não dá para saber se ela é a que fica de pé ou a que tomba.

E tem os três filhos. Pedrinho, ainda criança de colo, mal fala. As irmãs Alice e Maria não se bicam. Uma só quer saber de ganhar o Musa do Sol, um concurso de beleza para o qual treina enrolada num cobertor como se vestido de luxo fosse. A outra sonha em ser minivereadora, cargo para alunos craniozinhos que nem ela. Isso se levar a melhor sobre a “doença da folha verde”, que ameaça quem passa o dia em roças empesteadas de química.

Plantio e colheita

Vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura 2023, Salomão é cria da classe média paulistana e tem o desafio de contar uma história que a expulsa de sua zona de conforto literária. Supera-o com destreza. Duas escolhas contribuem para o sucesso: fugir de didatismos excessivos para explicar o flagelo agrícola e não ter personagens de carne e osso dando voz à narrativa.

Os contadores dessa história são uma árvore que, intoxicada pelo solo que a prende, conhece a “dor de ser venenosa”; uma caminhonete rústica; uma roupa de proteção contra defensivos químicos que faz quem a veste passar calor e raiva; um espelho lusitano que reflete o que é dado à vista e o que não é, como as lágrimas que Carlos esguicha sem entender bem por quê.

A certa altura ouvimos Elvira, a mãe de Guerlinda, que chega para cuidar da filha que não tem mais tempo de ser filha. A personagem não está a passeio na prosa de Salomão, cabendo-lhe esbugalhar ressentimentos passados e também entregar boas frases de efeito. “Papai Noel é o único Deus que não me deu medo”, ela diz e desdiz na sequência. Ou ainda: “A pior mulher vai fazer mais que o melhor homem”. Maria, a aspirante a minivereadora, fica impressionadíssima com essa.

“Nossa geração avó”, já atestou Antônio Bispo dos Santos, “dizia que a gente planta o que a gente quer, o que a gente precisa e o que a gente gosta, e a terra dá o que ela pode e o que a gente merece”. O que merecem, contudo, os donos de uma terra que não detêm livre arbítrio sobre ela, que ali só conseguem cultivar o que o capital se presta a pagar?

Há na trama uma árvore que vê tudo de cima, soberana num reino de misérias

O romance de Salomão se afiança em dois tempos, o que planta e o que colhe. A primeira metade, em marcha mais lenta, semeia o caminho para um final de contornos apocalípticos.

Lá pelo miolo do livro, Alice fustiga a irmã por cultivar a esperança de romper o ciclo dos roceiros, sem perspectiva real de vê-la gerar frutos um dia. Colonos como eles, diz a garota, são como formigas que trabalham sem parar. “Vai me dizer que ia ser bom pras formigas descobrir que existem, sei lá, outras trezentas ou quatrocentas maneiras de um inseto viver. Que alguns voam, outros comem o que querem e não devem nada a ninguém.” Se porventura descobrissem que há como serem mais felizes, “nada ia mudar, iam continuar fazendo tudo do mesmo jeito, né, só que agora muito mais tristes”, vaticina.

Salomão investiga “essa coisa obscura” do humano “de saber o que é o certo, o melhor, e fazer o contrário”, como se restasse a nós escolher entre a praga que devora ou o veneno que mata junto com ela. A autora, no entanto, não nega espaço para falar de amor. Há na trama uma árvore que vê tudo de cima, soberana num reino de misérias, e ela consegue enxergar curas possíveis para uma terra pervertida por toxinas.

São por vezes atos singelos, como a boniteza dos humanos em falar com tanto afeto sobre a comida que comem, aqueles “ruídos guturais de contentamento” que emitem com um reles sanduíche, hmmm. Ou gestos grandiosos quando nada parece ter jeito.

“Eles sabem tanto do amor”, diz a árvore-narradora. Sim, sabemos tanto de amor; mas também somos bons em esquecer que a diferença entre o remédio e o veneno está na dose.

Quem escreveu esse texto

Anna Virginia Balloussier

É jornalista e autora de O púlpito: fé, poder e o Brasil dos evangélicos (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #85 em setembro de 2024.

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