Teatro,

Como chegamos até aqui?

Teatro do Vestido faz ‘Viagem a Portugal’ acompanhada por Sophia de Mello Breyner Andresen e José Saramago no Festival Mirada

09set2022 | Edição #61

Um homem e uma mulher tentam resgatar algo das águas: um corpo ou a memória de outra vida que já tiveram. O casal está em viagem. “A estrada ia entre campos e ao longe, às vezes, viam-se serras. Era o princípio de setembro e a manhã estendia-se através da terra, vasta de luz e plenitude. Todas as coisas pareciam acesas. E, dentro do carro que os levava, a mulher disse ao homem: — É o meio da vida.”

A frase, citada na peça Viagem a Portugal, última paragem ou o que nós andamos para aqui chegar, inicia o conto A viagem, da escritora e poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004). 

O espetáculo teatral marca a abertura do Mirada- Festival ibero-Americano de Artes Cênicas, nesta sexta, 9, em Santos (SP). Obra da companhia Teatro do Vestido, sediada em Lisboa, Viagem a Portugal é construída com muitas referências literárias — mas não só estas. 

A companhia se desloca por diferentes cidades, vilas ou aldeias e pesquisa as memórias de seus habitantes para montar peças com histórias locais

Há o título, retirado do livro de José Saramago. Na peça, a obra do Nobel português é quase uma memória de infância da diretora, Joana Craveiro, que lembra de sua mãe levar e consultar Viagem a Portugal quando viajavam em família pelo país. 

Apenas um trecho do é citado durante o espetáculo. Mas, de certo modo, reflete todo o espírito com o qual os participantes da peça encaram a viagem: “Conhecer um país é apreender, de modo tanto quanto possível exacto, a sua paisagem, a sua cultura, o povo que o habita. Quase sempre, porém, o interesse do viajante atraído, senão suscitado, pelos caminhos habituais e pelas imagens conhecidas, com exclusão, portanto, daqueles factores de aventura e imprevisto que são, afinal, o verdadeiro sabor da viagem… e tê-lo-á conseguido, olhar o seu país como se o estivesse vendo pela primeira vez, sem aquela espécie de neblina que a familiaridade lança sobre a face das pessoas e das coisas…”. Este trecho é lido pelo personagem-narrador da peça. 

Resgate de memórias

A peça, surgiu de um projeto que o Teatro do Vestido tem realizado em seu país. A companhia se desloca por diferentes cidades, vilas ou aldeias e pesquisa as memórias de seus habitantes para montar peças com histórias locais. O espetáculo que trazem para o Brasil é uma espécie de súmula das várias criações realizadas durante o programa. 

Esta montagem, porém, é atípica do Teatro do Vestido, bastante conhecido por seu trabalho documental, com muitos testemunhos diretos. Há alguns, mas este é um espetáculo mais poético, algo em grande parte dado pelo conto de Breyner Andresen, que pontua a narração, na peça, sobre a trajetória do casal protagonistas “Depois de eles terem perdido diversas coisas nessa viagem em que tudo o que estava para trás ia desaparecendo, e que se assemelhava em tanto à viagem destes nossos viajantes aqui presentes e que, no entanto, tinha sido escrito há mais de cinquenta anos por uma poetisa que se fosse viva hoje teria mais de cem anos. Nessa outra história que não é a destes nossos viajantes, mas que poderia ser, eles perdem rapidamente o caminho” diz o narrador (espécie de alter ego da diretora), que acompanha o espetáculo como se estivesse escrevendo um livro — cada parte da peça seria um excerto da obra.

São várias camadas apresentadas no palco. Memórias e perguntas. A pergunta principal, “como chegamos até aqui”, cria o fio de memórias. Entre elas, o passado colonial e o racismo estrutual de Portugal. O grupo vem montando, nos últimos quinze anos, um acervo documental com depoimentos da população de várias localidades do país. “Sempre que vamos para uma aldeia, ou mesmo cidade, encontramos homens de uma certa idade que me agarram pelo braço e querem contar suas experiências nas guerras coloniais”, diz Craveiro. 

Há também referências à ditadura portuguesa, a algumas vítimas da repressão policial que só agora estão sendo descobertas, ao músico José Mario Branco, que foi o produtor do disco em que foi gravada “Grândola: Vila Morena” (senha da Revolução dos Cravos, em 1974). Branco morreu em 2019, quando a companhia estava criando Viagem a Portugal, e entra no espetáculo como uma voz fantasma sussurrando um trecho de uma música sua: “Por detrás das colinas, o verde está à espera”. O que são estas colinas, este verde? “Penso muito nisso. Nós somos o que perguntamos, e perguntar também é ser um agente da história”, diz Craveiro. 

Peças de Lego

Perguntar, desmontar, remontar — como as peças de Lego, encontradas em um saco no lixo por um dos atores, que as trouxe para o primeiro dia de ensaio. A peça começa com os atores levando ao palco esse saco de Lego, que vai sendo montado em novas formas a cada apresentação. 

Outros blocos de um Lego de memórias podem ser encaixado na cena. Um desejo da diretora é incluir novos elementos nas apresentações do Brasil, especificamente sobre um dos temas tratados levemente em Viagem a Portugal: a mitologia da história “supostamente gloriosa” do país. “Quero dar uma ressignificação [à peça] para o festival brasileiro, mas ainda não sei o que vou fazer. Tenho pensado bastante na translação do coração de D. Pedro 1º. Não sei o quanto vou conseguir colocar no espetáculo, acho que só saberei durante os ensaios aí no Brasil”, diz a diretora, que, de Lisboa, conversou por vídeo-chamada com a Quatro Cinco Um.

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, , editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34)

Matéria publicada na edição impressa #61 em julho de 2022.