Sexo no feminino,

Precisamos escrever sobre sexo

Lançamentos de escritoras brasileiras, com direito a zoofilia e sacanagem, ampliam o debate sobre prazer

01ago2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #84
A poeta Safo em afresco de Pompeia, Itália (Museo Archeologico Nazionale di Napoli/Reprodução)

Elas só podem estar de sacanagem. Há uma boa leva de escritoras brasileiras despudoradas para falar sobre sexo, e melhor retirar a tradicional família brasileira da sala antes de continuarmos por aqui.

Conceição Evaristo recentemente revelou planos de lançar um livro de contos eróticos. Pensa em batizá-lo O gozo e seus movimentos. Ao contrário de sua geração, disse a autora de 77 anos, as novas vozes têm menos amarras para ir direto ao ponto, gê ou não. É o que fazem a mineira Bruna Kalil Othero em O presidente pornô (Companhia das Letras, 2023), a maranhense Gal Freire com Barbie, Brasil, tesão (Macondo, 2023) e a paulista Carmen Faustino em Estado de libido: ou poesias de prazer e cura (Oralituras, 2020).

Em Moqueca de maridos: mitos eróticos indígenas (Paz & Terra, 2014), organizado pela antropóloga Betty Mindlin a partir de relatos indígenas diversos, o que emerge é uma sexualidade insubmissa ao decoro cristão. Dali pululam mulheres sem vagina, homens que menstruam, coito com espíritos e mães que devoram seus filhos.

A protagonista de Pandora (Fósforo, 2023), da paulista Ana Paula Pacheco, transa com pangolins e morcegos, descobre o desejo homossexual e monta um business de prostituição virtual, além de ter de lidar com abusos. “Com uma linguagem que fica entre o metafórico e o fantástico, o romance tem de tudo”, diz Ligia Gonçalves Diniz, crítica literária e autora de O homem não existe (Zahar). “Mas tem, mais importante que tudo, talvez, uma personagem de quarenta anos subindo pelas paredes de tesão. Na minha opinião, é o que a literatura feminista tem de fazer. E foi um romance pouquíssimo comentado para o tamanho do acontecimento que é.”

Quando a questão sexual aparece na literatura contemporânea, não é Hilda Hilst quem faz escola

Diniz está certa: Pandora teve um reconhecimento aqui e acolá, idem para os outros títulos supracitados. Mas a verdade é que, quando a questão sexual aparece na literatura contemporânea produzida por mulheres, não é Hilda Hilst, a devassa confessa, quem faz escola. É sob a chave do trauma que o tema ganha destaque, em narrativas potentes sobre abuso, como no recente Melhor não contar (Todavia), de Tatiana Salem Levy, mas não só. “Tanto em Copo vazio (Todavia, 2021), da Natalia Timerman, quanto no excelente A pediatra (Companhia das Letras, 2021), da Andréa Del Fuego, as protagonistas se realizam sexualmente até certo ponto, mas ambas acabam de certa forma punidas ou reprimidas por isso, seja pelo abandono, seja por algo mais complexo, no caso de A pediatra”, afirma Diniz.

Não vamos dar spoiler aqui, mas ela tem um ponto. Há urgência em trazer à tona comportamentos esdrúxulos ou abusivos normalizados no passado, e que bom que é assim. Mas há também pressa, entre muitas escritoras, para não se deixar resumir por uma premissa erótica decantada pela perspectiva masculina. “Vivemos numa sociedade muito machista e falocêntrica, em que o sexo ainda é muito associado ao prazer do homem e à reprodução. Então, a menos que um escritor cis-hétero esteja realmente interessado em retratar o prazer de alguém diferente dele em seu trabalho, ainda é provável que ele tome a própria experiência como parâmetro”, diz a poeta e tradutora Stephanie Borges.

O gozo ainda era possível

Mostrar mais mulheres falando de seus desejos, em vez de serem apenas o objeto de desejo deles, é algo que Conceição Evaristo faz com maestria, analisa a escritora e curadora Maria Carolina Casati. “Se a gente for ver Olhos d’água (Pallas, 2014), tem contos com personagens mulheres negras que vão lidar com o sexo de uma forma muito própria e muito avançada para o que as pessoas esperam nessas narrativas. Mulheres que vão falar de sexo e fazer sexo sem preocupações com o que a sociedade espera delas, o que acho bem importante.”

É só pensar em “Luamanda”, um dos contos ali, sobre uma mulher com quase meio século de vida que, nas palavras de Evaristo, “estava inteirinha, apesar de tantos trambolhões e acidentes de percurso em sua vida-estrada”. Não se ignora a violência ainda mais implacável contra mulheres negras, mas a personagem não se limita a ela — como o “fino espeto, arma covarde de um desesperado homem,” que a violou.

Era preciso, Luamanda compreende a certa altura, convencer-se de que “o prazer era uma via retornável, de que o gozo ainda era possível”. E “mulheres que ousam gozar”, afirma Casati, são um excelente combustível literário. Ela lembra de Mãe ou Eu também não gozei (Claraboia, 2022), em que Letícia Bassit narra sua experiência de engravidar durante o Carnaval, não saber quem é o pai e enfrentar um catatau de julgamentos por conta disso.

Julgar uma mulher por exercer sua sexualidade como bem entende não é exatamente uma novidade. Também não é de hoje que vemos escritoras narrarem com domínio o próprio desejo. Podemos voltar lá atrás e rememorar Safo, a poeta da ilha grega de Lesbos — essa mesma que deu origem à palavra lésbica. Safo viveu no século 6 a.C., numa época em que relações homossexuais não eram o tabu todo que viraram para tempos mais modernos e decerto bem mais pudicos. Em seu fragmento mais famoso, ela descreve a língua que “ali se lacera” e um “leve fogo” que “surge súbito sob a pele”. Ou seja, morre de tesão.

No Brasil, a sexualidade feminina transbordará na obra de Júlia Lopes de Almeida. Nesse salto entre os séculos 19 e 20, ela vai escrever livros como A viúva Simões, sobre uma recém-enviuvada que “almejava qualquer coisa que ela mesma não sabia definir”, numa “revolta surda contra a pacatez da sua vida sem emoções, contra aquele propósito de enterrar a sua mocidade e a sua formosura longe dos gozos e dos triunfos mundanos”. É quando reencontra um crush da juventude e acaba o disputando com a filha adolescente.

Almeida divide espaço com Machado de Assis, Olavo Bilac, João do Rio e grande elenco masculino em antologias de contos eróticos organizadas pela crítica literária e professora da usp (Universidade São Paulo) Eliane Robert Moraes. Ainda vão demorar algumas boas décadas até outras vozes femininas se destacarem nesse filão libidinoso, como Renata Pallottini e seu conto “A mulher sentada na areia”, Vilma Arêas e “As Bocetinhas de Picasso” ou “A Chuva”, de Veronica Stigger, todas lembradas por Moraes em seu compilado lascivo.

Ah, Hilda

Fora Hilda, claro. Ah, Hilda. “Este movimento do erotismo [feminino] vai ser muito forte a partir da segunda metade do século 20. Longe de tudo e todos temos Hilda”, afirma Moraes. Pois bem, já está mais do que na hora de falarmos de Hilda Hilst aqui. A paulista virou sexagenária e decidiu publicar “grossas bandalheiras” para ver se alcançava um público maior do que seus leitores, a quem comparava
a “uma organização secreta, como uma kgb”. Sucesso de crítica ela já era, mas isso não lhe bastava. A já consagrada escritora inicia então, em 1990, sua trilogia obscena.

O caderno rosa de Lori Lamby, o primeiro livro, adota o ponto de vista de uma garota de oito anos que tem aval dos pais para se prostituir. Ela conta tudo o que lhe acontece em seu diário, dos homens que pedem para “ficar bem quietinha” para ganhar um “beijo na coisinha” à vontade de usar os pagamentos que recebe em “bolsinhas, blusinhas, aqueles tênis e a boneca da Xoxa”.

Hilda está “absolutamente madura quando vai meter a mão na porcaria, para usar um termo que Mário de Andrade gostava”, diz Moraes. “Faz obras-primas da erótica internacional, no mesmo nível dos grandes pornógrafos ocidentais.”

A veterana passeia por um campo delicado, o que requer alguma cautela para analisar a obra hoje — quando ela foi lançada, vale lembrar, o Brasil não via problemas em pôr apresentadoras infantis, algumas menores de idade, rebolando com microshorts em rede nacional. Afinal, a ficcional Lori Lamby tem oito anos quando nos conta do cliente que lhe promete “umas meias furadinhas pretas”, embora ela as prefira cor-de-rosa “porque eu gosto muito de cor-de-rosa, e se ele trazer eu disse que vou lamber o piupiu dele bastante tempo”.

Uma edição do livro estampou na contracapa uma foto de Hilda quando menina. “Comecei a pensar na garota que eu poderia ter sido, essa coisa de perguntar muito, pois sempre fui perguntadeira”, disse a escritora à Folha de S.Paulo em 1999. Essa mesma reportagem diz que “as recentes discussões sobre pedofilia têm deixado a autora apreensiva, já que muitos classificam O caderno rosa de pedófilo”.

De novo Hilda: “Não acreditava quando falavam que meu livro era pornográfico. Disseram-me que iria perder meu prestígio, isso é uma besteira. Escrevi e ri muito. Mas ninguém se divertiu nem quis saber”. O que ela faz é literatura, e das boas, argumenta Moraes. A “liberdade de imaginação” não deve ser interpretada como “um programa para pedófilos”.

Bruna Kalil Othero, que além de autora de O presidente pornô é biógrafa de Hilda num livro para a Companhia das Letras, gosta de como, “variando entre o sério e o jocoso”, seu objeto de investigação “usava o sexo para falar de assuntos tão diversos quanto Deus, gênero, colonialismo, violência, mercado editorial e a própria forma do texto literário”.

Se o lance é político, por exemplo, Hilda recorria a alegorias como esta de Lori Lamby: “Pau d’Alho era um rei muito feliz porque tinha duas cabeças. Dava tempo pra pensar duas vezes mais em seu povo”. Othero ama essa.

“Sobre o panorama geral da literatura brasileira hoje”, diz, “me parece que o erotismo perdeu um pouco o seu lugar, e o foco principal tem apontado para outros lugares temáticos, o que muito me espanta, pois pra existir família é preciso sexo”.

Mapa do tesouro

Quando questões de gênero impactam em algo na escrita, não é nem estética nem literariamente, segundo Othero. “É socialmente. Mulheres são julgadas quando escrevem sobre sexo, enquanto homens são celebrados. Há muito assédio quando nos apresentamos como ‘pornógrafas’. Mas sonho com um mundo em que as mulheres, pessoas trans/travestis e outros grupos minoritários se sintam cada vez mais confortáveis e seguros para experimentarem artisticamente com o erotismo.”

Para Stephanie Borges, esta aí um mapa do tesouro literário. “Acredito que obras de mulheres que gostam de sexo, escritoras lésbicas e trans, autorias bissexuais e dissidentes de gênero trazem outras formas narrar o sexo porque são experiências fora da norma reprodutiva. Isso é ótimo, porque o sexo também envolve a imaginação, a fantasia e a capacidade de comunicar o que se deseja. Ler a partir de perspectivas distintas pode ampliar os referenciais do que se entende como prazer.”

Ligia Gonçalves Diniz está de acordo. “Acho que o mais interessante no tratamento do sexo e do desejo na literatura nos últimos tempos tem aparecido nos romances e na poesia com temáticas queer. Me parece que, no terreno heterossexual, tem havido uma certa hesitação por parte dos homens — medo de cancelamento? — e uma insistência nos temas da violência, do abuso, do silenciamento por parte das mulheres.” O que tem ganhado mais projeção são depoimentos de trauma sexual, do abuso à repressão, “que produz certa noção da mulher como sobrevivente”, afirma Diniz. E a representação disso muitas vezes se dá numa “chave realista ou autobiográfica pouco inventiva”.

“É como se precisássemos saber o que realmente aconteceu para confirmar aquilo que já sabemos que acontece. Há uma importância política em rejeitar o silenciamento dos relatos, mas isso em si mesmo não produz experiências literárias tão interessantes. O desconforto afetivo que essas obras provocam produz, por outro lado, um conforto moral: os malvados, as vítimas são muito bem delimitados, saímos nos sentindo do lado certo da história.”

O efeito literário mais fecundo não eclipsa “a perturbação, a confusão, a perplexidade diante das contradições”, afirma a crítica literária, que aqui faz uma observação: prefere diferenciar sexo e abuso, porque no segundo caso “não estamos falando de sexo, mas de atos de violência que afetam a sexualidade”.

‘Ler a partir de perspectivas distintas pode ampliar os referenciais do que se entende como prazer’

Há ainda os casos em que as fronteiras são porosas demais para delimitar o que é uma coisa ou outra. E se eu fosse puta (Hoo, 2016), de Amara Moira, é um exemplo que Eliane Robert Moraes evoca para lembrar que “sexo não é só uma coisa lindinha, boazinha, passa por algo que é da ordem da violência, uma criminalidade constitutiva do ato sexual, o que não quer dizer que a gente não milite contra os estupradores, violadores etc. e tal”.

Travesti e doutora em teoria e crítica literária pela Unicamp, Moira também lançou Neca + 20 poemetos travessos (O Sexo da Palavra, 2021). Imaginou para um dos poemetos, que ela própria chama de controverso, “uma travesti que, cansada da transfobia que a flagelava diariamente, ameaçava transmitir hiv a um cliente que quis transar sem camisinha”.

Stephanie Borges acha complicado generalizar como a trupe de escritoras aborda a sexualidade em suas obras, e com qual dose de lascívia, problematização ou ambos, mas uma coisa é certa para ela. “O que me parece interessante é termos esses diferentes pontos de vista publicados para que a literatura provoque os mais variados debates, de temas como prazer e fetiches até questões como
violência e abuso.”

Um campo vasto, de onde vão brotar o escracho de Kalil Othero em O presidente pornô, uma tríplice fronteira entre sátira, história e pornochanchada. O livro conta a história de Bráulio Garrazazuis Bestianelli, eleito para presidir o Plazil, e adverte o leitor sensível já no começo: os efeitos colaterais da leitura podem ser múltiplos, da “vontade incomum de dar o cu” à “predominância de [enxergar] verde e amarelo na percepção visual”. Qualquer semelhança com eleições reais de machos alfas, do varguismo ao bolsonarismo, é mera coincidência, talkey?

“É um romance contemporâneo que se destaca porque o sexo vai da diversão ao escatológico, e há uma clara relação entre as neuroses que pautam a vida política na República do Plazil e o fato de que, ao mesmo tempo em que os personagens querem vivenciar o prazer, é preciso sustentar imagens de masculinidade padrão, da mulher submissa e da família tradicional”, afirma Borges.

E tem solo fértil também para obras como Nada vai acontecer com você (Companhia das Letras, 2021), em que Simone Campos trata o sexo como questão de poder e sobrevivência, com uma protagonista perseguida por um sujeito obcecado. “Ela tenta criar uma ilusão de desejo e consentimento na tentativa de se proteger de agressões”, diz a poeta.

Para Ligia Gonçalves Diniz, precisamos falar sobre sexo, claro que precisamos. E não custa nada dar uma atenção extra ao desejo. “Digo isso, acima de tudo, para falar de como a poesia resiste, em boa parte, à imposição dessas agendas e interesses mais diretamente políticos. E na lírica, sendo menos narrativa, se trata muito mais de desejo do que de sexo em si. E o desejo é mais interessante, eu acho. Penso nuns versos da Adélia Prado: “Não quero faca, nem queijo/Quero a fome”. Elas só podem estar de sacanagem.

Quem escreveu esse texto

Anna Virginia Balloussier

É jornalista e autora de O púlpito: fé, poder e o Brasil dos evangélicos (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #84 em agosto de 2024.

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