Literatura, Teatro,

Suspiros finais

Cláudia Abreu estreia na dramaturgia com um monólogo e um livro que narram a trajetória da escritora Virginia Woolf

12ago2022 | Edição #60

A fascinante ideia de que a vida passa diante dos olhos como um filme nos instantes que precedem a morte inspirou tantas teorias e criações que é impossível escolher uma única emblemática — a escritora turca Elif Shafak, por exemplo, situa todo um romance no tempo de consciência que resta à personagem Leila Tequila em 10 Minutos e 38 Segundos neste mundo estranho (Harper Collins). Mas, mesmo dando como certa essa experiência, foi só neste ano que ela ganhou respaldo científico, num estudo publicado pela revista Frontiers in Aging Neuroscience no qual pesquisadores relatam o caso de um paciente cujas ondas cerebrais seguiram ativas, num padrão semelhante ao de sonhar e rememorar, mesmo trinta segundos após um ataque cardíaco fatal.

Foi nesse átimo final de lucidez que a atriz, filósofa, escritora e roteirista Cláudia Abreu escolheu representar a existência de Virginia Woolf em Virginia [um inventário íntimo], texto dramático cujo desafio não está só em contar a história de personagem tão complexa, mas também em lidar com o fato de que o cérebro da autora era polifônico. Virginia ouvia vozes. Tantas que, em 1941, na carta de despedida que deixou ao marido, Leonard Woolf, afirmou que as falas a atormentavam ao ponto da paralisia: ela não conseguia ler nem escrever. “Ela se matou porque não aguentava mais ouvir vozes”, diz Cláudia, que também encarna a britânica no teatro em Virginia, monólogo com direção de Amir Haddad que estreou em julho, em São Paulo, e segue em turnê  por outros estados, como Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

A contemporaneidade de seus ensaios, contos romances e de suas memórias faz de Virginia uma ‘imortal’

No palco, Cláudia é Virginia em seu mergulho final. Com os bolsos cheios de pedra, ela entra no rio Ouse, em Sussex, no sudoeste da Inglaterra, onde seu corpo seria encontrado três semanas depois. Enquanto se afoga, faz um inventário de seus 59 anos, ao mesmo tempo que conversa com os muitos personagens que se manifestam dentro dela. “Eu tinha que fazer todas essas vozes. Não poderia não ser um monólogo por causa disso”, explica Cláudia, que costura as falas de Virginia às de sua família (mãe, pai, irmãs e irmãos), da amante, a escritora Vita Sackville-West, e do marido, Leonard Woolf. “Isso tinha de fluir como em sua literatura, cuja característica estrutural é o fluxo de consciência, que foi a base da minha dramaturgia. Virginia muda o narrador sem aviso, e eu tinha de fazer o mesmo. Foi uma dificuldade como atriz alterar personagens sem que isso ficasse desenhado, a ponto de já não ser fluxo. A partir do momento em que as vozes se presentificam, não estou só narrando: estou vivendo. Ela contracena com essas pessoas. Se não fosse assim, seria uma palestra de Virginia falando sobre si mesma.”

Este não é o primeiro encontro entre Cláudia e Virginia. Em 1988, aos dezoito anos, ela estreou no teatro adulto em uma montagem do romance Orlando, dirigida por Bia Lessa, com as atrizes Fernanda Torres e Júlia Lemmertz. Na época, ficou fascinada pela britânica, mas foi só após os “quarenta e poucos anos”, ao voltar à obra de Virginia por sugestão de sua professora de literatura, Carmem Hanning, que sentiu o grande impacto. “Eu queria escrever sobre fluxo de consciência no tempo e a Carmem sugeriu Mrs. Dalloway como referência de um texto brilhante. Por ter mais instrumentos para ler Virginia, parecia que era a primeira vez. Aquilo me arrebatou. Foi uma coisa sem volta”, diz ela.

A atração, segundo Cláudia, não ocorreu somente pela técnica narrativa que alterna o pensamento lógico com impressões pessoais momentâneas e associações de ideias. De repente, ela encontrou alguém que transformava em texto sentimentos que a própria atriz nunca teve a habilidade de expressar. “Virginia tem essa sofisticação de sentir uma coisa profunda, fazer uma reflexão e, ao mesmo tempo, traduzir numa frase simples, sem que isso seja reduzido ou se perca em palavras”, acredita. “Eu me conectei porque ela fala sobre mim, o que foi muito emocionante. É quase como se ela me conhecesse. Fui querendo saber mais sobre Virginia, não só porque fiquei alimentada por sua hipersensibilidade e sofisticação, mas porque precisava saber quem ela é.”

Revival

Nesse fascínio, Cláudia está acompanhada de uma legião. Não é à toa que Virginia Woolf está entre os maiores nomes do século 20: a contemporaneidade de seus ensaios, contos, romances e de suas memórias faz dela uma “imortal”. Não bastasse, sua vida em si é um drama, marcada por tragédias pessoais (a morte da mãe a levou a primeira crise de depressão, aos treze anos), opressões (o pai não permitiu que as filhas frequentassem a escola), abuso sexual (dos irmãos mais velhos) e tentativas de suicídio (ao menos três).

A demanda de uma nova geração feminista tem levado muita gente a (re)descobrir a autora britânica

A isso soma-se o investimento do mercado editorial na última década em livros escritos por mulheres, em especial obras feministas (atendendo à demanda de uma nova geração ativista), que tem levado muita gente a (re)descobrir a britânica. Impossível não ter curiosidade sobre seu clássico (e atualíssimo) manifesto feminista Um teto todo seu após ler, por exemplo, O riso da Medusa, de Hélène Cixous (Bazar do Tempo), ou Feminismos: uma história global, de Lucy Delap (Companhia das Letras). Em ambos, a ideia de que é preciso que “a mulher se escreva”, como exalta Cixous, é central, e quem primeiro defendeu isso foi Virginia. Um teto todo seu, ensaio no qual ela argumenta que as mulheres necessitam de dinheiro e um espaço próprio para escrever, ganhou reedição recente pelo selo Antofágica, com tradução de Vanessa Barbara, apresentação de Aline Bei e fotografias de Luisa Callegari.    

Da editora Nós, que publicou Virginia [um inventário íntimo], de Cláudia Abreu, saem também Virginia, de Emmanuelle Favier, biografia da autora narrada em fluxo de consciência (nem sempre com sucesso), e Mrs. Dalloway em Bond Street, primeiro dos sete contos escritos em torno do romance Mrs. Dalloway. Este último foi lançado no Dalloway Day (data mencionada no clássico romance), em 17 de junho passado, com festa e um kit hipster composto de tote bag, caneca e bloco de anotações, todos com estampa do rosto de Virginia, desenhado pela filósofa Marcia Tiburi. Tudo de bom gosto e instagramável.

Woolf é pop

Atenta a uma “demanda reprimida”, a escritora Simone Paulino, fundadora da Nós, investe ainda em um projeto de publicação de toda a obra de não ficção da autora (diários, ensaios, correspondências), seus contos e uma edição comemorativa do centenário de Mrs. Dalloway, em 2025, com tradução de Ana Carolina Mesquita.

No teatro do Sesc 24 de Maio, em São Paulo, onde Cláudia Abreu estreou o monólogo Virginia, com ingressos esgotados durante toda a temporada, em quinze dias foram vendidos quatrocentos dos mil exemplares de seu primeiro livro — o que, segundo Simone Paulino, é um número “excelente”. “Eu parti da obra para a pessoa e espero que, a partir da peça, da própria Virginia, as pessoas se interessem por sua criação extraordinária”, diz Cláudia.

Construindo Virginia

Deprimida. Feminista. Suicida. Esse foi o lugar-comum que Cláudia Abreu encontrou quando iniciou sua imersão em Virginia Woolf, em 2016. Para entendê-la além de “rótulos e definições reducionistas”, a atriz leu, primeiro, toda a sua obra. “As ondas é o meu preferido, porque é todo poético, só de monólogos internos. Um deslumbre”, diz. Dos textos sobre a autora, ela destaca Virginia Woolf:  uma biografia (fora de catálogo), de Quentin Bell, sobrinho da escritora; e Virginia Woolf, de Hermione Lee (sem edição brasileira). Nessas páginas, Cláudia encontrou coincidências entre criadora e criatura. “A família dela inteira está em Ao farol, assim como o personagem Septimus, de Mrs. Dalloway, que tem uma neurose de guerra, se conecta a sua irmã Laura [que sofria de distúrbios mentais] e à própria Virginia”, afirma.

Faltava a Cláudia escrever, processo que a confrontou com a expectativa de dar conta de uma figura tão complexa e grandiosa. Foi então que ela recorreu ao teatro. “Na época, eu estava gravando [a série] Desalma e [a atriz] Isabel Teixeira sugeriu que eu filmasse improvisações do texto”, lembra Cláudia. “Eu sempre fiz improvisações criativas nos grupos em que trabalhei. Nos ensaios de Orlando, da Bia Lessa, a gente improvisava o livro e o [escritor] Sérgio Sant’Anna o transformava em dramaturgia.”

Claudia Abreu fez uma imersão em Woolf e leu toda a sua obra para poder entendê-la além de rótulos e definições reducionistas

Cláudia passou, então, a recitar o conhecimento acumulado diante da câmera do smartphone. “O ator é da oralidade. Talvez eu nem soubesse quanto de conteúdo tinha dentro de mim se não ficasse livre para falar. Fui costurando vida e obra”, explica Cláudia. “Se eu ficasse naquela solenidade de sentar para escrever e blá-blá-blá, decerto não desse passagem ao fluxo de consciência e às vozes que me atravessavam.”

Findo esse processo, faltava a Cláudia, agora sim, transferir ao papel sua própria voz, o que ocorreu num trabalho “pesado” no texto com a intenção de falar do “ser humano Virginia”. “Usei todos os instrumentos que eu tinha para criar minha própria dramaturgia”, diz a atriz, que passou os dois anos de pandemia dedicada ao tema. “Como pano de fundo, estão a dor e o prazer da existência dessa grande escritora, e no que ela os transforma por meio da escrita, para tratar de assuntos que me são caros, como a condição da mulher ou a discussão sobre lucidez e loucura.”

A única coisa de que Cláudia se ressente é não ter tido tempo de mostrar o livro ao sogro, o escritor José Rubem Fonseca, que morreu em abril de 2020, em decorrência de um infarto. “Zé Rubem sempre me incentivou a escrever”, diz a atriz. “Ele chegou a participar um pouco do processo e aí, faleceu. Não pude ter sua opinião na versão final, mas o livro é dedicado a ele pelo exemplo e pelo incentivo. Zé Rubem dizia que escrever é labuta. Que faz bem a quem escreve.”

Quem escreveu esse texto

Adriana Ferreira Silva

Jornalista, escritora e palestrante, trata de temas como desigualdade de gênero e liderança feminina.

Matéria publicada na edição impressa #60 em julho de 2022.