Listão da Semana,

500 mil mortos e 4,86 milhões de escravizados

O segundo volume de ‘Escravidão’, de Laurentino Gomes; ‘A premonição’, do jornalista norte-americano Michael Lewis, e mais sete lançamentos

25jun2021 | Edição #46

Ao menos 4,86 milhões. Eis o número de seres humanos escravizados que desembarcaram nos portos do Brasil entre os séculos 16 e 19. A construção dessa África brasileira é o tema do segundo volume de Escravidão, de Laurentino Gomes, que chega nesta semana às livrarias e é essencial para entender o que já deveríamos ter entendido há tempos sobre racismo estrutural, consciência de classe e políticas afirmativas de reparação.

Indecente também é o número de mortes pelo novo coronavírus em território brasileiro: já são 500 mil (não por acaso, a população negra é a mais atingida). Em A premonição, o jornalista norte-americano Michael Lewis explora um assunto bem conhecido por nós, brasileiros: a incompetência de seu governo no combate à pandemia.

Completam a seleção da semana um manifesto pelo livre uso de drogas, ensaios sobre a China contemporânea, uma crítica à exploração destrutiva do oceano, poemas de Ana Martins Marques, uma análise feminista sobre o socialismo e os novos romances de Yaa Gyasi e Fernando Bonassi.


Festa de Santa Rosália, patrona dos negros, do pintor alemão Johann Moritz Rugendas em Viagem pitoresca através do Brasil. [Acervo da Fundação Biblioteca Nacional.]
 

Viva o livro brasileiro!

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Escravidão: da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de dom João ao Brasil. Laurentino Gomes.
Globo Livros• 512 pp. • R$ 59,90

Cerca de 2 milhões de homens e mulheres foram arrancados da África entre 1700 e 1800 e trazidos em navios negreiros para o Brasil para trabalhar não só nas minas, mas também no cultivo da cana-de-açúcar, do tabaco, do algodão e do arroz. É o que conta Laurentino Gomes no segundo volume de sua trilogia sobre a escravidão no Brasil — o primeiro, lançado em 2019, abarca “Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares” e foi ganhador do prêmio Jabuti.


Laurentino Gomes  Vilma Slomp/ Divulgação
 

O novo livro está centrado no século 18, que marcou o auge do tráfico negreiro no Atlântico e também da mineração do ouro e do diamante. Segundo o jornalista, autor dos bestsellers 18081822 1889, no final do século 18, a América Portuguesa tinha a maior concentração de pessoas de origem africana em todo o continente americano.  O volume final, que vai abordar sobretudo o século 19, com o movimento abolicionista no Brasil e a Lei Áurea, está previsto para o ano que vem. Para 2023, o autor planeja uma versão voltada ao público infantojuvenil.

Leia também: A escravidão brasileira sob a ótica de uma educadora alemã na década de 1880; a angolana no Brasil que lutou pela autonomia nas frestas da escravidão; como a escravidão moldou as estruturas que promovem a desigualdade e a tortura.

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A premonição: uma história da pandemia. Michael Lewis.
Trad. Maria de Fátima Oliva do Coutto e Livia de Almeida • Intrínseca • 352 pp. • R$ 69,90

Michael Lewis mostra quão desastrosa foi a resposta de seu governo à Covid-19, que já deixou mais de 600 mil mortos nos Estados Unidos. A reportagem acompanha as dificuldades de três personagens que tentam combater a pandemia e se dão conta da incompetência do governo: “No dia seguinte, numa entrevista coletiva na Casa Branca, o presidente Trump proferiu uma mensagem aos governadores do país. ‘Tentem conseguir sozinhos respiradores, ventiladores e todos os equipamentos’, declarou, antes de recriminar no Twitter os governadores que reclamavam da falta de liderança federal”. Michael  Lewis é autor de diversos livros de não ficção, entre eles O quinto risco (2019), que apontou os perigos que a estranha equipe de assessores escolhida por Donald Trump trazia para a administração federal dos Estados Unidos, e Moneyball: o homem que mudou o jogo (2003), sobre o mundo do beisebol, adaptado em 2011 para um filme indicado a seis Oscars.

Leia também: Como a utilização de mapas no combate à Covid-19 abre brechas para práticas de controle; decisões judiciais ignoram os efeitos da Covid-19 na população prisional; a vacinação é fundamental para enfrentar a desinformação propagada pelo negacionismo bolsonarista.

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Drogas para adultos. Carl Hart.
Trad. Pedro Maia Soares • Zahar/Companhia das Letras • 408 pp. • R$ 79,90

Especialista no vício em drogas, o neurocientista da Universidade Columbia expõe os benefícios advindos do uso responsável de drogas por adultos e argumenta que o maior dano causado por elas provém de sua demonização e criminalização. Segundo ele, hoje mais de 30 milhões de norte-americanos relatam o uso habitual de drogas ilegais, e o usuário típico é um profissional responsável que ocasionalmente usa drogas para aumentar sua felicidade. Ele defende que as drogas tenham o mesmo tratamento dado ao álcool. Seu livro Um preço muito alto: a jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas (2014) recebeu o PEN/E.O. Wilson Literary Science Writing Award.

Trecho do livro: “Descobri que os efeitos predominantes produzidos pelas drogas discutidas neste livro são positivos. Não importava se a droga em questão fosse maconha, cocaína, heroína, metanfetamina ou psilocibina. Em sua imensa maioria, os consumidores afirmavam se sentir mais altruístas, empáticos, eufóricos, concentrados, gratos e tranquilos. Eles também sentiam uma melhoria nas interações sociais, um maior senso de propósito e significado e melhor intimidade e desempenho sexual. Essa constelação de descobertas pôs em xeque minhas crenças originais sobre as drogas e seus efeitos. Eu fora doutrinado para sempre ver os efeitos negativos do uso de drogas. Mas, nas últimas duas décadas, adquiri uma compreensão mais profunda e elaborada. Com certeza, efeitos negativos também eram possíveis. Mas eles representavam uma minoria, e eram previsíveis e prontamente mitigados”.

Leia também: Drogas proibidas há décadas, como LSD e MDMA, podem revolucionar o tratamento de diversas doenças; livro narra a turbulenta, intrigante e desconhecida história do LSD no Brasil; Michael Pollan descobre como certas drogas podem ajudar a manter a lucidez.

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China contemporânea: seis interpretações. Ricardo Musse (org.).
Autêntica • 202 pp. • R$ 49,80

Seis ensaios versam sobre a gênese, o desenvolvimento e as perspectivas futuras do país-continente que é uma das grandes potências mundiais. Elias Jabbour e Alexis Dantas examinam o papel do Estado na gestão, na coordenação e na planificação da economia, o que deu origem a uma formação social-econômica específica: o socialismo de mercado. Alexandre de Freitas Barbosa confronta, na longa duração, as particularidades históricas do Ocidente e da China e a reorganização da economia-mundo capitalista. Wladimir Pomar analisa o ponto de vista de economistas marxistas chineses sobre a questão capitalismo versus socialismo, e Bruno Hendler discute o acirramento da rivalidade entre a China e os Estados Unidos. Francisco Foot Hardman descortina as afinidades culturais entre o Brasil e a China, e Luiz Enrique Vieira de Souza faz um balanço do andamento contraditório da questão do meio ambiente.

Leia também: Arqueóloga narra os 7 mil anos de história da China a partir de seus artefatos, veja galeria.

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Reino transcendente. Yaa Gyasi.
Trad. Waldéa Barcellos • Rocco • 320 pp. • R$ 64,90

Nascida em Gana e radicada nos Estados Unidos, Gyasi ganhou em 2017 o prêmio Hemingway por seu romance de estreia, O caminho de casa, que também foi considerado pela Time um dos dez melhores de 2016 e lhe rendeu a nomeação de uma das cinco melhores escritoras abaixo dos 35 anos pela National Book Foundation. No novo romance, ela narra a vida de uma família de imigrantes ganeses que procura refazer a vida no Sul dos Estados Unidos. Mas o pai abandona a mulher com um casal de filhos, a mãe entra em depressão e o menino, que tinha tudo para se tornar uma estrela do basquete, afunda nas drogas. A garota, no entanto, se torna uma cientista bem-sucedida, e é ela quem conta a história da família.

Leia também: Autora franco-senegalesa se debruça sobre narrativas de imigrantes que buscam uma vida melhor na Europa.

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Oceano sem lei. Ian Urbina.
Trad. Livia de Almeida • Intrínseca • 592 pp. • R$ 79,90

Extensos demais para serem policiados e sem uma jurisdição internacional consensual, os oceanos estão sujeitos à exploração destrutiva promovida pelas indústrias da pesca e do petróleo e cheios de criminosos — traficantes, contrabandistas, piratas, mercenários. Urbina reúne em livro uma série de reportagens originalmente publicadas no The New York Times sobre essa situação crítica. Segundo o autor, a impunidade é a regra no mar: as raras inspeções em barcos suspeitos de infrações trabalhistas e ambientais são conduzidas por burocratas, e não investigadores. Dada a ausência de policiais, os criminosos são perseguidos por justiceiros e mercenários contratados. A própria legislação internacional sobre o mar foi criada para atender a indústria pesqueira e as empresas de navegação, sem maiores preocupações com direitos trabalhistas. Os direitos audiovisuais do livro foram comprados pela Netflix e por Leonardo DiCaprio, que devem adaptá-lo para um documentário em sete episódios.

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Degeneração. Fernando Bonassi.
Record • 288 pp. • R$ 49,90 

O novo romance do escritor, roteirista e dramaturgo paulistano conta o drama de um homem que, às vésperas da eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência, vai ao necrotério de um hospital público de São Paulo para liberar o cadáver de seu pai, um estelionatário profissional. A situação o obriga a fazer uma retrospectiva da história de sua família, que inclui a descoberta de que o pai agiu como delator e assistente de torturadores durante a ditadura militar.

Trecho do livro:É que morreu um desgraçado, eu vou dizer logo. Morreu aqui, neste hospital, um ser humano desprezível, um espírito de porco miserável. Foi criado e desenvolveu-se neste mesmo bairro em que estamos, entre o fedor de parmesão e de cachaça, de vermute e de oficinas mecânicas, de molho de tomate e de sucata, antes que esses pombais ocupassem os últimos terrenos do Estado, amontoando os nordestinos esfolados por cima de tudo, todos eles, nacionais e estrangeiros nesses apartamentos a longo prazo que de tão pequenos se janta na varanda, contemplando a terra de ninguém de onde vieram e à qual poucos desejam voltar, em qualquer tempo”.

Ouça também: No aniversário do golpe de 1964, o podcast 451 MHz dedicou um episódio às vítimas da ditadura brasileira.

Leia também: Historiador que participou da Comissão da Verdade do Rio indica 5 sites para entender a ditadura no Brasil.

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Por que as mulheres têm melhor sexo sob o socialismo — e outros argumentos a favor da independência econômica. Kristen Ghodsee.
Trad. Caroline Freire • Autonomia Literária • 246 pp. • R$ 55

Ao estudar os impactos da transição do socialismo para o capitalismo nos países do Leste Europeu, a etnógrafa americana observou que, neles, as mulheres voltaram à antiga condição de subordinação e dependência econômica em relação aos homens. Ela argumenta que o socialismo permite que as pessoas tenham independência econômica, o que favorece uma vida pessoal mais equilibrada e melhor. O capitalismo, ao contrário, produz agudas disparidades salariais, o que prejudica as mulheres.

Trecho do livro: “Observei que as mulheres – mais do que os homens – manifestavam um certo saudosismo em relação ao passado socialista por conta dos benefícios concretos que haviam perdido com a chegada da democracia e o capitalismo. As privatizações e a liberalização da economia afetaram muito mais as mulheres que, sem a ajuda das redes de segurança social que vigoraram até 1989, não conseguiam mais conciliar com tanta facilidade as responsabilidades do trabalho e da família”.

Leia também: Silvia Federici e Patricia Hill Collins e Sirma Bilge mostram a importância de discutir gênero para a luta política; coletânea organizada por Heloisa Buarque de Hollanda e livro de Françoise Vergès apontam novos caminhos para o feminismo, ampliando suas teorias e práticas políticas.

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Risque essa palavra. Ana Martins Marques.
Companhia das Letras • 120 pp. • R$ 44,90

Premiada pela Biblioteca Nacional e pela Associação Paulista dos Críticos de Arte, a escritora mineira de Da arte das armadilhas (2011) e O livro dos jardins (2019) reflete sobre os acontecimentos cotidianos para desvendar a natureza da linguagem e o sentido da existência em seu novo livro de poesia.

Leia também: Matéria e metáfora em O livro dos jardins; Ana Martins Marques ensina que poesia deve ser regada com falta d'água.

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Quem escreveu esse texto

Marília Kodic

Jornalista e tradutora, é co-autora de Moda ilustrada (Luste).

Mauricio Puls

É autor de Arquitetura e filosofia (Annablume) e O significado da pintura abstrata (Perspectiva), e editor-assistente da Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #46 em junho de 2021.