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Para não esquecer

Fundadora do Archivo Trans de Argentina fala do papel da memória em perpetuar legado da comunidade e garantir que a história não se repita

01jan2024 | Edição #77

Em 2012, a Argentina aprovou uma lei de identidade de gênero que logo se tornou reconhecida mundialmente como instrumento exemplar de proteção para pessoas trans. Três meses antes, a ativista travesti Claudia Pía Baudracco havia morrido em sua casa em Buenos Aires, deixando para sua amiga, a ativista María Belén Correa, uma caixa com documentos, fotografias e recortes da imprensa que vinha colecionando. Juntas, elas planejavam um arquivo que pudesse contar suas histórias.

Em 1993, Belén, Baudracco e outras companheiras fundaram a Asociación de Travestis, Transexuales y Transgéneros de Argentina, coletivo que Belén presidiu de 1995 até 2001, quando se exilou nos Estados Unidos devido às perseguições que vinha sofrendo por sua militância. Vivendo atualmente na Europa, Belén levou adiante o plano da dupla e fundou o Archivo de la Memoria Trans (AMT) da Argentina — um rico acervo construído ao longo dos últimos anos, a partir das contribuições da própria comunidade trans.

O arquivo tem rodado o mundo, denunciando a violência, mas também mostrando a potência dos modos de vida e afetos da comunidade trans. Uma parada recente foi na 35ª Bienal de São Paulo, onde o AMT expôs a obra Destellos. Belén aproveitou a visita elançou no Brasil o livro Nuestros Códigos, publicação independente disponível no site da entidade (archivotrans.empretienda.com.ar), com 344 páginas de fotos privadas, registros policiais e de violência estatais, documentos oficiais, além de uma série de depoimentos que compõe uma sabedoria acumulada e partilhada entre essa comunidade trans. Em conversa com a Quatro Cinco Um, Belén falou sobre essas e outras histórias.

A história da população LGBTQIA+ é feita de apagamentos. Qual a importância de guardar memórias?
Desde a sua criação, nosso arquivo reúne documentos para chegar a uma reparação histórica. Eu tenho asilo político e precisei apresentar ao tribunal dos Estados Unidos provas para o pedido. A partir daí, comecei a ver a importância de uma documentação para comparecer em juízo.

‘Nós, pessoas trans, sempre fomos esquecidas ou retratadas em arquivos policiais ou psiquiátricos’

Em termos mais gerais, a importância de guardar memórias, objetos e fotografias é perpetuar um legado. Poder contar o que nos aconteceu para que a história não se repita. Esse é o sentido de todos os arquivos, sobretudo para nós, pessoas trans, que sempre fomos esquecidas ou retratadas só em arquivos policiais ou psiquiátricos. Hoje temos um arquivo próprio no qual podemos contar nossas experiências, histórias e o que deixamos para o futuro.

Como surgiu a ideia para o Archivo de La Memoria Trans?
A fundação do AMT coincide com a Lei de Identidade de Gênero, de 2012, e com a morte de Claudia Pía Baudracco, que era uma grande amiga e colecionadora — herdamos uma caixa dela com 6 mil documentos.

Quando a Lei de Identidade de Gênero foi sancionada, o Estado deixou de perseguir nossos corpos. Esse foi um ponto de partida para olharmos para onde iríamos. Mas, do lado do arquivo, passamos a pensar para trás, no que aconteceu conosco.

Quem fez e como foi a busca dessa enorme quantidade de materiais?
As pessoas trans sempre viveram em comunidade, em forma de família. Essa comunidade se envolveu ao reconhecer o que estamos montando e ver o esforço como um trabalho futuro. Elas mesmas nos doam ou emprestam o material — hoje temos 25 mil documentos em onze anos de trabalho. 

Há experiência semelhante em outros países?
Após a criação do nosso, foram anunciados dezenove arquivos trans em diferentes partes da América Latina.

Vocês estão publicando um livro com documentos de pessoas trans. Houve algum apoio estatal?
Não recebemos nenhum tipo de apoio estatal nem o queremos, precisamente porque o nosso arquivo sobreviveu contra o Estado. Um Estado que se encarregou de nos punir e perseguir, então seria irônico esse mesmo Estado argentino nos ajudar e a proteger este arquivo. Sobretudo porque reunimos esse material para denunciar o próprio Estado. Todo nosso trabalho é independente. Buscamos bolsas e financiamentos internacionais para sobreviver, fazemos exposições e livros.

Um dos temas que atravessa o livro é a violência, especialmente durante o terrorismo de Estado que governou a Argentina entre 1976 e 83. O que mudou com a democracia?
Esse foi um período de sobrevivência, de perseguição, de violações dos direitos humanos. Mas isso não foi só de 1976 a 83 — a Argentina tem um histórico de muitas outras ditaduras. As perseguições de pessoas trans nascem em 1900 com a forma como éramos tratadas nos hospitais psiquiátricos ou na prisão. Embora nosso livro fale da última ditadura, que está mais próxima à vida cis-hétero destes últimos quarenta anos de democracia na Argentina, nós dizemos que temos onze anos de democracia — a nossa começa em 2012, quando deixamos de ser perseguidas pelo Estado por nossa identidade de gênero e orientação sexual. Temos como marco da nossa democracia a Lei da Identidade de Gênero.

Como o novo governo de Javier Milei, de extrema-direita, impacta a comunidade LGBTQIA+ na Argentina?

No dia seguinte às eleições, 20 de novembro, foi o Dia Internacional da Memória Trans. Tínhamos programada uma caminhada sob luz de velas, com os nomes das nossas companheiras assassinadas. Ficamos com medo, não sabíamos o que aconteceria nas ruas. E aconteceu. Jogaram garrafas contra nossa manifestação, gritavam “Viva, Milei!” no nosso caminho. Por isso, o resumo é que estamos sentindo medo. Medo que o Brasil passou, então há esperança de superação. Teremos de passar quatro anos lutando, imaginando quantas mortes acontecerão, como aconteceram no Brasil. Temos medo de perder os direitos conquistados, de voltar ao passado, desse despertar ultrafascista que promove a destruição do que conseguimos avançar nos últimos anos.

Este texto faz parte do especial “Livros e Livres”, sobre literatura LGBTQIA+, realizado com o apoio do Fundo de Direitos Humanos do Reino dos Países Baixos e publicado na edição #77 da Quatro Cinco Um

Editoria com apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos

Desde 2023, o Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos apoia a cobertura especial Livros e Livres, dedicada a títulos com temática LGBTQIA+

Quem escreveu esse texto

Renan Quinalha

É professor de direito da Unifesp e autor de Movimento LGBTI+: Uma breve história do século 19 aos nossos dias (Autêntica).

Matéria publicada na edição impressa #77 em novembro de 2023.